Comissão da Verdade “Irmãos Petit” simboliza a luta de bauruenses contra a ditadura militar
Tendo Roque Ferreira como um de seus idealizadores, a Comissão da Verdade local produziu relatório sobre a repressão na cidade e promoveu atividades pedagógicas pela região
Publicado em 06 de abril de 2023
Por Caroline Campos, Giullia Colombo e Vitor Tenca
Edição Michel Amâncio
Após um ciclo de ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos na América Latina, diversos países da região passaram a ter comissões da verdade. Uma comissão da verdade é um órgão temporário que tem o objetivo principal de expor violações contra os direitos humanos e esclarecer os contextos histórico e social nos quais os crimes de regimes ditatoriais se passaram.
Em geral, uma comissão é instalada após períodos de governos autoritários para responsabilizar os autores de seus crimes. O processo é feito por meio de coleta de depoimentos, resgate de documentos e reconstrução dos fatos, para enfim chegar a um relatório com recomendações e sugestões de reformas institucionais para reparação histórica. Em alguns casos, os responsáveis identificados são julgados pelos crimes cometidos.
Em alguns vizinhos latino-americanos, as comissões da verdade foram instaladas imediatamente após o fim dos regimes de exceção. Na Argentina, por exemplo, a ditadura militar acabou em 1983, mesmo ano em que a Comissão da Verdade iniciou seus trabalhos. Ao todo, mais de duas mil pessoas foram processadas nos tribunais argentinos até hoje, tendo sido condenadas 416 delas até setembro de 2013, de acordo com o relatório mundial de Direitos Humanos da organização Human Rights Watch (2014).
Já o Chile teve sua ditadura encerrada em 1990, também dando início a sua Comissão da Verdade no mesmo ano. À época, 355 pessoas foram condenadas por crimes cometidos durante o regime militar e concluiu-se que 2.279 pessoas estavam desaparecidas ou foram mortas pelos militares. Posteriormente, novas comissões foram formadas e o número de vítimas subiu para 40 mil, sendo 3.225 apenas de mortos ou desaparecidos.
Em um Brasil com longo histórico de impunidade, a responsabilização individual não aconteceu e o direito de justiça foi negado. A criação da nossa Comissão da Verdade foi proposta em 2008, na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos. O nome originalmente atribuído ao órgão temporário seria Comissão Nacional da Verdade e da Justiça. Nelson Jobim e Paulo Vannuchi, à época ministro da Defesa e ministro dos Direitos Humanos, respectivamente, divergiam em opinião. O primeiro queria a substituição de “Justiça” por “Reconciliação”. O segundo, insistia na permanência de “Justiça”. O então presidente Lula deu o veredito final e removeu “Justiça”, mas não incluiu “Reconciliação”. Assim, 30 anos depois de seu último período não-democrático, o Brasil instalou sua primeira Comissão da Verdade.
Para acompanhar o ritmo e ramificar a atuação da Comissão Nacional da Verdade, unidades municipais, estaduais, universitárias e setoriais começaram a pipocar pelo país. Ao todo, foram 120 comissões espalhadas pelo Brasil. No relatório da CNV, o objetivo de sua atuação é definido como o de “expandir a coleta de testemunhos e investigações locais”.
As mesmas cumpriram seus papéis, especialmente aquelas que trataram de se dedicar a grupos sociais marginalizados, como a Comissão Camponesa da Verdade e a Comissão da Verdade da Escravidão. No caso de Bauru, em 2012 foi instalado o Grupo de Trabalho “Bauru: Memória e Verdade”, conhecido como Comissão da Verdade de Bauru “Irmãos Petit”.
Comissão da Verdade é criada em Bauru
Clodoaldo Meneguello Cardoso, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp de Bauru, e que também foi integrante da comissão, conta que, do início ao fim, as reuniões do grupo aconteceram de maneira espontânea e informal, puxadas por Roque Ferreira, vereador, militante de movimentos sociais e sindicalista. Roque, que faleceu em setembro de 2020 por complicações decorrentes da Covid-19, foi quem encabeçou a organização e os trabalhos da Comissão da Verdade de Bauru.
Para compor a comissão, foram escolhidos militantes dos direitos humanos da cidade. Além do próprio Clodoaldo, foram recrutados Maria Orlene Daré, psicóloga com ênfase nas questões de saúde mental, infância e adolescência no enfrentamento a práticas de tortura; Gilberto Truíjo, advogado trabalhista; Arthur Monteiro Junior, advogado e jornalista; João Francisco Tidei Lima, historiador; e Carlos Roberto Pittoli e Darcy Rodrigues, militares que atuaram diretamente na luta contra o regime.
Em pouco tempo, Darcy Rodrigues abandonou seu posto na comissão por problemas de saúde, de acordo com o relatório oficial. Clodoaldo conta que o ex-militar sentia um estranhamento com a universidade e que não entendia o seu envolvimento com a resistência. De acordo com o professor, Darcy tomou a decisão de sair quando percebeu que o trabalho envolvia uma penca de burocracias que não faziam seu feitio: “Ele é uma pessoa muito autêntica, mas tem algo de dureza, o que é natural quando se leva em consideração o que ele passou”.
Assim, a Comissão da Verdade de Bauru (CVB) seguiu seus trabalhos com um integrante a menos, todos sob regime de dedicação voluntária parcial. O objetivo da CVB não era fazer um levantamento histórico abrangente sobre o regime militar em Bauru, nem investigar casos que poderiam ser tratados no âmbito da CNV. Por sua vez, o órgão bauruense priorizou a pesquisa sobre a Frente Anticomunista (FAC), o movimento-eixo de repressão da ditadura na região, e seus respectivos movimentos de resistência.
Entre os destaques do relatório final está o depoimento de Augusto Cesar Capella, o único membro da FAC que aceitou ser entrevistado sobre a organização. Outros seis membros foram identificados e convidados a comparecer à reunião da comissão, que pretendia ouvir a experiência dos integrantes; contudo, nenhum deles respondeu às cartas.
Bauru está entre as primeiras cidades do Brasil a constituir uma comissão da verdade na esfera municipal. O documento final da CVB explicita seu caráter especial. Além do pioneirismo, sua distinção reside no fato de que, enquanto cidade média do interior, a investigação é complexa. Há dificuldade em colher testemunhos e comprovar fatos informais por conta do que o relatório final descreve enquanto “a mistura entre relações públicas e privadas”.
A escolha pela pesquisa sobre a Frente Anticomunista não foi por acaso. Bauru não teve um presídio para prisioneiros políticos – a repressão era simbólica e se materializava na esfera institucional. A Frente Anticomunista foi fundada em 1962, com o objetivo de reproduzir, em Bauru e região, as ideias de oposição ao governo de João Goulart. No começo, suas atividades eram resumidas a reuniões, relações com o poder público e influência de discursos anticomunistas que corroboravam com o clima da época.
Com o golpe civil-militar de 1964, a atuação da FAC na cidade passou a se enquadrar como uma iniciativa paramilitar. O trabalho da comissão identificou que participantes da FAC tinham cargos na promotoria, outros faziam parte da elite empresarial e, quando não estavam dentro do grupo, cediam apoio com recursos financeiros para o desempenho das atividades. Poder, dinheiro e exército sentavam lado a lado na cidade.
Entrevistas dos membros do grupo aos jornais da época, como o Diário de Sorocaba e Diário de Bauru, além do relato de Capella à Comissão da Verdade de Bauru, confirmam que os integrantes eram submetidos a treinamento político e militar. O treinamento foi usado para repreender aqueles que denunciavam as atividades da FAC, bem como para perseguir e prender os opositores ao regime ditatorial.
Resiste, Bauru
O único partido de esquerda com sede em Bauru era o Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, com a instituição do bipartidarismo pós-golpe, se filiou ao MDB. Além disso, o único movimento de resistência que existiu na cidade foi o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), fundado na década de 70 e dissolvido em 1982.
Entre os grupos setoriais que faziam resistência, estavam os movimentos ligados a políticos de esquerda, desmobilizados; os movimentos sindicais com suas reivindicações trabalhistas sufocadas; o movimento estudantil e de docentes, o mais expressivo, mas também prontamente reprimido pela FAC; o movimento artístico-cultural, que tinha um quê de vanguarda, mas agia dentro dos limites permitidos pelo poder municipal; e, por fim, o movimento religioso, de mesmo caráter. Clodoaldo atuou nesses dois últimos.
O estudante de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) se formou em 1970, envolvido no movimento estudantil e cultural. Peças de teatro, passeatas e atividades político-educacionais materializavam a sua atuação contra o regime militar. Com o diploma em mãos, decide pela pós-graduação no Rio de Janeiro, mas, ao chegar lá, encontra uma efervescência política desfavorável para um jovem sem parentes ou conhecidos estudar e divulgar suas ideias.
Em 1972 decide vir para Bauru, onde moravam seus pais, e passa a lecionar Filosofia na então Universidade do Sagrado Coração (hoje Unisagrado). Pelo seu histórico com o movimento cultural, Clodoaldo encontra na arte-educação, mais uma vez, uma maneira de realizar seu trabalho de resistência – a novidade é o pano de fundo católico, que lhe abriu portas para exercê-lo.
Assim, enquanto a Comissão Nacional da Verdade trabalhou para esclarecer os fatos, reunir informações sobre mortos e desaparecidos políticos e oficializar crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Estado, a Comissão da Verdade de Bauru atuou na conscientização. As ações não tiveram cobertura ou repercussão na imprensa local e tampouco na Câmara dos Vereadores. Até hoje, o relatório final não foi disponibilizado no site da Câmara, como foi acordado na instalação da comissão.
Com isso, o documento não foi publicado pelo poder municipal e a população não encontra informações pelos canais oficiais de divulgação. Além do arquivo em formato PDF que está nos computadores dos participantes, uma cópia extraoficial pode ser encontrada na Internet e vem sendo disponibilizada pelo Jornal Dois em nosso site. No entanto, a repercussão do relatório final não existiu à época. “A gente sabia que ou montávamos um projeto nós mesmos para divulgar o que foi o regime militar, ou morreríamos na praia“, confessa Clodoaldo.
Foi a trajetória do professor universitário na educação que deu o tom do objetivo final das atividades da CVB. Depois da apuração sobre a FAC e da coleta de depoimentos, o grupo montou um projeto político-educacional para divulgar nas escolas de ensino fundamental de Bauru o que foi o regime militar.
Em sua sala do Observatório de Educação em Direitos Humanos no câmpus da Unesp, Clodoaldo abre os inúmeros armários com livros e material didático para mostrar o que usou no projeto: “Eu busquei material de exposições para levar até as escolas. Escrevi para a Secretaria dos Direitos Humanos do Governo Federal e eles me enviaram um CD multimídia com todas as informações do Projeto Direito à Memória e à Verdade”.
Clodoaldo conta que o material foi elaborado pelo Ministério dos Direitos Humanos durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República e a intenção era que fosse encaminhado a todas as escolas do Brasil. No entanto, o conteúdo nunca chegou às salas de aula porque o Ministério da Educação, encabeçado à época por Fernando Haddad, não autorizou a sua distribuição, já que era necessário um projeto pedagógico e metodológico.
Além disso, cenas sobre o Festival de Iacanga, conhecido como Woodstock brasileiro, foram classificadas como inadequadas para crianças em idade escolar. Ou melhor, não teria chegado às salas de aula se não fosse pelo professor, que promoveu palestras com os membros da Comissão da Verdade pelas escolas de Bauru.
Quando questionado sobre a relevância de falar sobre a ditadura militar ainda nos dias de hoje, o professor Clodoaldo respira fundo e faz cara de quem precisa explicar o óbvio pela enésima vez: “A memória histórica do brasileiro é fraca; é uma dificuldade cultural que impede a institucionalização. Para falar disso hoje eu preciso fazer um ato de fé. Como eu faço isso? Fazendo uma ponte entre o hoje e o ontem. Preciso puxar todo o fio para explicar que o hoje é resultado do ontem”.
“Uma população sem visão histórica compõe a narrativa que assegura a falta de justiça, enfraquece a noção por trás da verdade e, por fim, corrompe de um ponto de vista institucional, social e cultural a memória de determinado período”, completa Clodoaldo.
Na visão do professor, a educação é uma empreitada alternativa que estudiosos e militantes dos direitos humanos no Brasil têm se disposto a traçar frente a inação do Estado. “Veja, não é desanimar, mas é que o processo é lento. Nós não conseguimos nem publicar o relatório como livro para ser vendido. A própria CNV não conseguiu justiça. Você tem um documento belíssimo, mas a própria legislação não consegue se fazer valer. O que a gente fez foi encontrar uma via pela educação”, finaliza.
A homenagem que a resistência local, como a família Petit, recebe em Bauru demonstra a eficácia de tantos anos dessa política de esquecimento. Por estarem localizadas em condomínios fechados, as ruas Irmãos Petit, no Jardim Vitória, e Julieta Petit, na Villa Dumont, tiveram sua função social esvaziada.
O principal líder da Frente Anticomunista na cidade, Sílvio Marquês Júnior, também é homenageado com uma rua no bairro Novo Jardim Pagani. Dessa vez, no entanto, é possível acessá-la, por se tratar de uma via pública, residencial e frequentada. Não há indicações de quem foram os homenageados em nenhuma das três situações.
Com isso, é possível perceber que nem o Brasil, nem Bauru, superaram o fosso que os anos de chumbo abriram na sua história. Ainda há um longo caminho para remendar esse capítulo sombrio de nossa história, e ele só será percorrido ao lado da memória, da verdade e da justiça.
Essa foi a última de três reportagens sobre a ditadura militar em Bauru. As reportagens anteriores, em ordem de publicação, foram as seguintes:
1) “Foi um período maldito”: o que a ditadura militar deixou para trás em Bauru.
2) Nostalgia militar: o desmonte sistêmico das políticas de memórias no Brasil.
Como ficou claro nessa terceira e última reportagem, o relatório final da Comissão da Verdade “Irmãos Petit” não é concedido oficialmente à população nos canais da política institucional. Por conta disso, o Jornal Dois decidiu disponibilizar o documento permanentemente em seu site através deste link, onde também explicamos as razões pelas quais consideramos o relatório algo fundamental para a democracia bauruense.