Nostalgia militar: o desmonte sistêmico das políticas de memórias no Brasil

Ataques à democracia no 8 de janeiro mostram um país que ainda acena ao passado ditatorial e não superou histórico de impunidade

Publicado em 24 de fevereiro de 2023

Manifestantes de extrema-direita escalam a cúpula do Senado no dia 8 de janeiro e exigem intervenção militar (Foto: Joedson Alves/Agência Brasil)
Por Caroline Campos, Giullia Colombo e Vitor Tenca
Edição Michel Amâncio

15 de abril de 2016: Jair Messias Bolsonaro, na época deputado federal, vota pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”. 28 de outubro de 2018: Jair é eleito o 38° presidente do Brasil, com 55,13% dos votos válidos. 26 de fevereiro de 2019: ao anunciar as novas autoridades da hidrelétrica de Itaipu, o já presidente homenageia o líder da ditadura paraguaia Alfredo Stroessner como um homem “visionário e estadista”. 4 de maio de 2020: Bolsonaro recebe Sebastião Curió Rodrigues de Moura de forma extraoficial no Palácio do Planalto.


Em uma ação de naturalização da barbárie, e seguindo a narrativa do então governo federal, a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) celebrou esse último encontro como um fato histórico, agradando os aficionados pela ditadura. Em suas redes sociais, o órgão exaltou os feitos de Curió em livrar o país do “totalitarismo socialista”, além de considerá-lo herói de guerra das Forças Armadas por acabar com a mobilização da Guerrilha do Araguaia.

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Um dos principais símbolos da ditadura militar, o Major Curió foi o oficial do Exército responsável por comandar a repressão à guerrilha. O ex-militar, que faleceu em 2022, foi denunciado pelo Ministério Público Federal por tortura, homicídio e ocultação de cadáver. No ano de 2009, Curió afirmou que executou 41 pessoas que combatiam no Araguaia – sob o pretexto de que precisava de ordens superiores e de que tinha problemas clínicos, Curió nunca depôs na Comissão Nacional da Verdade.

Após a publicação, ainda em 2020, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) concedeu direito de resposta à postagem da Secom solicitado por Laura Petit, Amelinha Teles, Criméia Schmidt, Tatiana Merlino, Angela Mendes e Suzana Lisboa, todas vítimas e parentes de vítimas da ditadura. No entanto, em menos de um mês, tal veiculação foi desobrigada em decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Post da Secom foi denunciado na época à Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Instituto Vladimir Herzog, pelo Núcleo de Preservação da Memória Política e pelo PSOL (Foto: Reprodução/Secom)
Sem anistia! 

O apreço pela ditadura é naturalizado por governanças que herdaram suas “patentes” e construíram suas carreiras a partir do período – e que, inclusive, fazem questão de ressaltá-lo. Vivian Mendes, presidenta do Diretório Estadual em São Paulo da Unidade Popular pelo Socialismo e candidata ao Senado na última eleição, foi uma das poucas que incluíram em seu plano de campanha o fim da impunidade dos militares. “Fez-se um pacto de democratização ‘por cima’, de uma forma que se mantiveram impunes e intactas as instituições daquele período, responsáveis pelas graves violações dos direitos humanos”, analisa a militante.

Tão intacto que não foram poucas as vezes nas quais Jair Bolsonaro acenou positivamente ao passado ditatorial. Em discurso pelo 58º aniversário do golpe, em 2022, o presidente afirmou, se referindo ao movimento militar golpista, que “o trabalho naqueles anos foi difícil também, uma luta da verdade contra a mentira, da história contra a ‘estória’, do bem contra o mal. E o Brasil resistiu”.

Vivian, que é formada em Relações Públicas pela Unesp de Bauru, se debruça justamente nessa estratégia bolsonarista para explicar que o chamado “pacto de redemocratização” é reflexo de uma política cotidiana que não prevê verdadeiras mudanças. “A sociedade não fez parte desse pacto, e nós estamos falando de um pacto de cúpula, de elite. Nesse processo, criou-se uma ideia de que o caminho para construir a sociedade brasileira se baseava em virar a página, não cobrar as contas”, comenta.

No Brasil, o período de redemocratização não levou à superação do histórico de impunidade da ditadura. Nas últimas três décadas, não foi colocada em pauta a punição efetiva de ex-militares, na melhor “característica brasileira”, como exemplifica Vivian Mendes, analisando a influência que as Forças Armadas possuem no Estado brasileiro desde a sua origem: “Eu até reconheço [os crimes], eu até indenizo [as vítimas], mas não se pode mexer na casta [militar]”.

Os efeitos das mortes e dos desaparecimentos cometidos pelos militares não estão restritos às vítimas diretas da repressão. A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil surge em 1995 com o intuito de reconhecer a responsabilidade do Estado pelos crimes praticados e pelas violações aos direitos humanos durante o período ditatorial, e com isso preservar a memória violada dos militantes. Para Vivian, que também integra a Comissão, “tudo que sabemos hoje sobre o período da ditadura, nós devemos a esses familiares”.

Um dos muitos frutos do esforço dos familiares foi promulgado há 44 anos. No dia 28 de agosto de 1979, a lei nº 6.683, conhecida como Lei da Anistia, institucionalizou o esquecimento de todos os crimes políticos cometidos durante o período de 1961 a 1979. Ao mesmo tempo que permitiu o retorno dos exilados e presos políticos, a lei foi responsável por criar uma cortina de fumaça que escondeu e perdoou agentes do Estado. O que tinha a intenção de aliviar o sofrimento daqueles que estiveram nas mãos dos militares, se provou como uma estratégia que impediu o processo de justiça.

O histórico de apagamento da memória, que se perpetua no Brasil ao longo de sua formação, implica em um “desenrolar de páginas em branco”, como observado por Vivian. “Quando a gente olha para a situação de impunidade do nosso cotidiano, é importante entendermos a história por trás disso. Qual o impacto de 400 anos de escravização do povo negro hoje? A página é sempre virada sem ter medidas devidamente tomadas sobre os períodos anteriores”, opina a militante.

Em julho de 2022, Vivian compartilhou em seu Instagram o encontro com Amelinha Teles, Criméia Almeida e Adriano Diogo, ex-presos políticos, e Vera Ranu, da associação Mães em Luta (Foto: Reprodução/Redes sociais)
“Você acredita em Comissão da Verdade?”

Disse Bolsonaro, em 2019, após ser perguntado sobre a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, militante morto pela ditadura militar. A fala está inserida dentro do contexto de desmonte de políticas de memória como a Comissão da Verdade. Em dezembro de 2022, o ex-presidente conseguiu aprovar o fim da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que investigava crimes cometidos durante o regime militar. Bolsonaro não foi reeleito, mas seu governo deixa um legado de desarticulação de um grande projeto de preservação da memória coletiva do país.

Nomeado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, que assumiu seu terceiro mandato em 2023, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, sinalizou que planeja reativar a Comissão extinta e criar a Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade. “A gestão que se encerra tentou extinguir, sem sucesso, a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Não conseguiu”, reforçou o jurista em sua cerimônia de posse.

Dias depois, no entanto, Brasília foi invadida por manifestantes golpistas que realizaram atos terroristas no Congresso Nacional, no Superior Tribunal Federal e no Palácio do Planalto. Os golpistas, que desde a eleição de Lula se posicionavam na frente de quartéis pelo Brasil para exigir intervenções militares na democracia, invadiram a Praça dos Três Poderes sem resistência da Polícia Militar e depredaram prédios públicos vestidos com camisas verdes e amarelas em defesa do ex-presidente Bolsonaro.

Para a presidenta da Comissão da Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, a tentativa de golpe que ocorreu em 8 de janeiro de 2023 foi criada por anos de negação da ditadura e de falta de responsabilização pelos crimes cometidos naquele período. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Almeida afirmou que “esquecer ou fingir que nada aconteceu no período da ditadura armou uma bomba-relógio, e essa bomba explodiu no dia 8 de janeiro”.

No dia 9 de janeiro, Bauru reuniu dezenas de pessoas em manifestação contra o golpe, com concentração em frente a Câmara Municipal (Foto: Guilherme Matos)

Após o evento, manifestações em defesa da democracia pipocaram pelo Brasil exigindo que Bolsonaro e seus apoiadores sejam devidamente julgados e punidos pelos ataques ao Estado democrático. O movimento, intitulado “Sem Anistia!”, ganhou força e busca evitar que os erros do passado ditatorial se repitam, pressionando para que o novo governo não aceite o caminho da reconciliação e do esquecimento dos crimes cometidos nos últimos quatro anos de gestão bolsonarista.

Esta foi a segunda de uma série de três reportagens sobre a ditadura militar em Bauru. Para ler a primeira reportagem publicada pelo Jornal Dois, acesse o link clicando aqui.

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