Um é pouco, dois é bom, três é demais
Filho recém-chegado e a gente, tantos anos à dois, se acostuma e aprende a viver e ser três
Publicado em 5 de junho de 2019
Por Karol Lombardi, colunista do Jornal Dois
Essa poderia ser mais uma das milhares cartas de amor que te escrevi nesses 7 anos de vida juntos. Poderia mas não é, porque enquanto escrevo tento pescar as palavras que me vêm a mente entre o choro manhoso do nosso filho.
A vida tá estranha ultimamente. Eu sei. As dores no corpo que antes eram resultado de uma série de exercícios na academia que a gente pagava e não ia, agora são resultado de uma série incansável de chacoalha bebê pra lá e pra cá.
Percebeu como estamos sempre com olheiras? E nem é de uma noite mal dormida porque saímos pra beber e depois namorar. É que a tal da rotina do sono não tem dado muito certo por aqui. Percebeu também que tá sobrando mês nos nossos salários? Eu nem lembro qual é o animal na nota de cinquenta.
É, de fato a vida está estranha. São tantas responsabilidades nos puxando pra todos os lados que quando percebo, estamos do lado oposto, mandando sinal de fumaça um pro outro, já que fumaça lembra fogo e a gente até esqueceu como acender as chamas entre nós.
Do lado oposto cada um vê o outro de cabeça pra baixo, e aí brigamos, brigamos porque só eu faço o jantar, brigamos por causa das contas, brigamos porque você lavou a louça noite passada enquanto eu sentei no sofá, brigamos porque você fica no banheiro mais tempo que eu, brigamos porque não nos reconhecemos mais como antes, e parece que estamos o tempo todo com água até o pescoço, mesmo se equilibrando na pontinha do pé.
Entre nós, dezenas de roupinhas pra lavar, um monte de brinquedos pra juntar, uma lista de itens de bebê pra comprar, intermináveis boletos pra pagar… e a gente mal se fala a não ser “pega a mamadeira”, “traz a toalha do bebê”, “ele dormiu?!”
Ufa! Ele dormiu.
No espelho entre o gargarejo e a primeira escovação do dia encaro uma mulher bem diferente da que eu era antes. Mais magra, com os ossos saltando a bochecha, com entradas enormes porque o cabelo começou cair em tufos, com olheiras que nem um corretivo da MAC conseguiria cobrir, e o famoso coque que não é desfeito a dias afinal, quando é que eu vou conseguir lavar esse cabelo? Ignoro, dou umas beliscadas nas bochechas pra ver se fico menos acabada.
Sentamos no sofá exaustos, deixamos a TV quase no mute pra não correr o risco do bebê acordar, embalamos numa discussão rasa sobre previdência, reclamos que a TV cultura está ficando conservadora, falamos mal do Bolsonaro e de repente o silêncio se instala. Não porque não temos o que falar, mas nesses momentos o sono é melhor que o sexo, e rolar o Instagram é mais relaxante do que uma conversa.
Eu te olho sobre a tela do celular e te vejo longe, mas não me sinto infeliz. Mesmo não sendo como antes, eu fico feliz por você estar aqui. E mesmo odiando falar e até mesmo pensar naquela ideia clichê do “juntos para sempre”… sinto que vou precisar de você.
Vou precisar de você pra me dizer que vai ficar tudo bem quando eu chorar no primeiro dia de aula dele. Vou precisar de você pra esconder uma moeda sob o travesseiro dele quando o primeiro dente cair.
Eu vou precisar de você quando ficar embaraçada pra falar sobre higiene íntima com ele. Eu vou precisar de você pra me acalmar quando receber um telefonema dizendo que ele brigou na escola. Eu vou precisar de você pra segurar minha mão quando ele decidir que vai sair de casa.
E mais do que precisar de você, saiba, eu quero você! Eu quero você em cada passo desse caminho, mesmo que isso signifique sentarmos um em frente ao outro num silêncio constrangedor enquanto esperamos essa fase da vida passar.
É difícil lembrarmos que somos um casal, e que tudo continua ali, cheiro, gosto, arrepio, só que tão guardado que é difícil lembrar o caminho de volta pra nós. Temos sido melhores pais do que casal.
Me aproximo pra sentir a textura do seu cabelo da nuca que sempre gostei tanto. Embaixo do pijama largo não tem mais aquele corpo que me dava a segurança de ficar a vista na luz total, tá tudo diferente e a insegurança me faz mais acanhada do que antes. O espírito femme fatale abandonou esse corpo já faz uns meses.
A gente tenta se encaixar num beijo que finalmente não é um selinho, quanta estranheza em alguém que eu costumava conhecer tão bem… de repente um berro ecoa na sala estática, corremos os dois pro quarto, você pega o bebê, balança um pouco, ele grita mais ainda, pego ele, dou o peito e ele se acalma, dorme em menos de 2 minutos, te entrego e você bota de volta no colchão, ele parece bêbado de leite, entregue a um sono angelical, de repente já é meia noite e a gente tá ali, parados redesenhando cada curvinha do corpo dele com o dedo, sorrindo baixinho quando ele dá risada dormindo, e a gente não cansa de falar: “Nossa mor, ele é tão lindo né? Como ele tá grande…”.
Você pega o celular e vê o vídeo que eu gravei a tarde, que coisa mais fofa ele comendo caqui! Quase dormindo você diz “que sorte a nossa”! Deitada entre vocês dois eu fecho os olhos, sinto ambas as respirações e penso, “é, que sorte a nossa! Sermos três é bom demais!”.
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