Só a luta popular pode frear o aumento da tarifa de ônibus

O primeiro movimento contra aumento da passagem em Bauru aconteceu em 1963; desde lá, todas as conquistas referentes ao transporte público foram alcançadas através de manifestações nas ruas

Publicado em 26 de setembro de 2023

(Foto por Patrícia Domingos/Jornal Dois)
Por Matheus Versati, colunista do J2

Sem nem ao menos termos um terminal de ônibus em Bauru, a tarifa do transporte público no município hoje está R$4,75. Enquanto isso, na cidade de São Paulo, com linhas muito maiores que as nossas, o valor da passagem é R$4,40. Essa situação é um desrespeito com a população bauruense, e a gente deve sim se revoltar. Ou mudamos este cenário, ou em 2024 teremos o próximo reajuste, e será assim ano após ano. O preço vai continuar aumentando e nós, recebendo migalhas em troca.

Foi em 2013 que eu me aproximei dos movimentos sociais. Fui convidado pelo Roque Ferreira e por Silvio Durante para participar de uma reunião, com vários militantes fervorosos da cidade de Bauru. Entre eles, Paulinho dos Bancários, Igor Fernandes, do Instituto Formando Mentes Coletivas, Plínio e o próprio Roque. Naquela ocasião foi formada uma frente de luta contra o aumento da tarifa de ônibus, que mais uma vez, como todo ano, teria um reajuste. 

campanha

Como primeira medida da autoproclamada ‘Frente Em Defesa do Transporte Público e de Qualidade’, fomos ao Jornal da Cidade tentar fazer uma denúncia, que não teve êxito. Depois disso, nos unimos para fazermos um abaixo assinado contra o aumento da tarifa. Doce ilusão… Precisávamos de 8 mil votos, conseguimos muito mais, e então a Câmara de Vereadores engavetou o abaixo assinado, sem maiores explicações.

Nesse momento, eu aprendi a amarga lição: abaixo assinado e medidas de ação democrática raramente são levados em consideração pelo Poder Público. Nesse caso, o abaixo assinado iria de encontro com os interesses de famílias ricas locais, em especial de uma família muito poderosa que vamos abordar aqui.

Poucas semanas depois do engavetamento deste abaixo assinado, a pauta da tarifa de ônibus tomou o Brasil inteiro. Estudantes, trabalhadores, segmentos sociais e sindicais protestavam contra o aumento do preço da passagem. Na cidade de São Paulo, o Movimento Passe Livre (MPL) denuncia reivindica o transporte coletivo como um direito social. 

Donos do poder

A vida urbana tem como necessidade a locomoção rotineira, tanto para as empresas, quanto para o empregado, para os estudantes universitários ou secundaristas. Todos precisam de locomoção. Não é à toa que é chamado de Transporte “Coletivo”. Não é uma necessidade extraordinária, um luxo, é uma necessidade ordinária. As pessoas necessitam de locomoção para realizar os afazeres rotineiros, e o Estado tem a obrigação de atender essa ordinária demanda social.

Mas não é isso que acontece em Bauru. O Estado, aqui representado pela Prefeitura Municipal, beneficia os donos da empresa de ônibus ‘Concessionária Via Rondon’, responsável pela administração de 330 quilômetros do trecho oeste da rodovia Marechal Rondon, entre as cidades paulistas de Bauru e Castilho, na divisa com Mato Grosso do Sul. Os donos são nada mais que a família Constantino, proprietária de linhas de ônibus pelo Brasil inteiro.

O pai, Nenê Constantino, é acusado de assassinar trabalhadores que entraram em greve, popularmente chamado de “Dono da Máfia de Transporte”. Em 2019, Henrique Constantino, também dono da Gol, admite propina a políticos do partido MDB em troca de benefícios para a empresa, no valor de quase R$ 300 milhões. Henrique Constantino fechou acordo de delação premiada. Entre os nomes delatados por ele estão Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves, Geddel Vieira Lima e Michel Temer.

Isso não é novidade em Bauru: há anos movimentos sociais da cidade denunciam centenas de falhas – para não dizer corrupção – no processo de licitação e acordos com a empresa. Quem sai ganhando são os empresários, quem sai perdendo são os usuários.

Além de manter uma planilha obscura, que cobra do município reajuste todo ano, o Conselho Municipal dos Usuários de Transporte Coletivo aprova o aumento, todo ano, com o argumento de que as linhas de ônibus estão perdendo usuários; assim, para cobrir o déficit que a redução de usuários deixa no orçamento, precisam aumentar o valor da tarifa. 

Ciclo vicioso

Se você está de longe e distraído, pode até parecer sensato o argumento, mas a lógica, na verdade, é mais maquiavélica e canalha: a empresa aumenta a tarifa de ônibus, e por causa disso perde usuário. Se ela sempre aumentar a tarifa, sempre vai perder usuário.

Desta forma, usando as palavras do próprio Roque Ferreira em uma reunião do Conselho em 2014, “gera um ciclo vicioso. A empresa estará sempre aumentando a tarifa, justamente para atender cada vez menos usuários e receber o mesmo valor sempre”. Quem perde mais uma vez é a população, e quem ganha é a empresa, atendendo cada vez menos pessoas.

Pensem que o dono da empresa de ônibus de Bauru é o mesmo dono de um cartel nacional de licitações de transporte. Com tanto poder, que mesmo com vários julgamentos de assassinato, segue impune.

A seguir, vou relembrar o trecho de uma matéria do Jornal Dois sobre o tema, feita pelo jornalista Lucas Mendes, em 2019:

“O irmão de Henrique, Ricardo Constantino, é presidente do Conselho de Administração da concessionária Via Rondon, conforme ata da assembleia geral da empresa, realizada dia 29 de abril [de 2019].

Ricardo Constantino também figura como um dos administradores da empresa Transporte Coletivo Grande Bauru. Suas primas, Maraluce e Deise Constantino, aparecem como administradoras da Cidade Sem Limites, empresa responsável por operar 70 linhas do transporte coletivo em Bauru.

Entre 2008 e 2017 a tarifa de ônibus na cidade cresceu 90%, segundo dados da Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (Emdurb), que gerencia o transporte público na cidade. No mesmo período, a inflação acumulada foi de 74%”.

E como isso se reflete em Bauru, a Cidade Sem Limites? Vamos entender algumas coisas: fornecer transporte público é uma obrigação do município. O poder público municipal pode escolher entre reger linhas de ônibus estatizadas, ou seja, pagas e financiadas pelo Estado, ou abrir uma concessão com uma empresa privada. Esse segundo caso é o de Bauru.

E o que é uma concessão?

As concessões de transporte coletivo – no caso, de ônibus – ocorrem quando o município delega à iniciativa privada a exploração e manutenção desse serviço de caráter público. Em contrapartida, as empresas concessionárias são autorizadas a cobrar, na forma da passagem, os custos relativos às despesas e lucros com o sistema.

Pergunto ao leitor: você acha que um transporte custeado pelo usuário dá despesas ou lucro?

Se der despesas, porque esses empresários disputam o controle dessas linhas? Seria porque eles estão preocupados em atender o bem estar social?

Bom, é lógico que a resposta é que eles estão em busca de lucro. Não só no transporte coletivo, mas também nos serviços de fornecimento de água e energia, muitas vezes precarizados de propósito por setores do governo para conseguirem privatizá-los. Os políticos envolvidos no processo de sucateamento e licitação dessas empresas são beneficiados pelas mesmas, como é o caso do transporte coletivo de Bauru e do País.

Bauru, cidade de luta e resistência

Foi em 1963 que a luta sobre a tarifa de ônibus tomou as ruas de Bauru pela primeira vez – pelo menos dentro dos registros que temos. Estudantes universitários de duas faculdades da cidade se uniram ao movimento estudantil, e através de mobilizações conquistaram 25% de desconto na tarifa de ônibus para a categoria. Uma significativa conquista histórica dos movimentos sociais da cidade que perdura até hoje.

Em 1998, o então prefeito Izo Filho aumentou a tarifa de ônibus mais uma vez. De R$0,65 para R$0,90, um reajuste de 38%. Em resposta, a luta dos trabalhadores toma a mídia novamente. Nas palavras do apresentador Ulisses Serotini: “Bauru amanheceu como um verdadeiro campo de guerra”. Desta vez, protagonizado pelos movimentos sindicais e trabalhadores.

Logo no primeiro dia de aplicação do aumento da tarifa, movimentos sindicais se reuniram em frente à Câmara Municipal. Trabalhadores organizados fecharam a avenida Rodrigues Alves com pneus e atearam fogo. A denúncia era de que a planilha de custo do transporte estava desatualizada, e o aumento de ônibus baseado nessa tal planilha seria inconsistente com os atuais valores do mercado.

Na época, os trabalhadores ganhavam cerca de R$10 por dia. O aumento, sem responsabilidade social nenhuma, teve um salto. Para quem pegava 4 ônibus por dia, representaria R$3,60. Sendo assim, no final do mês a locomoção dos trabalhadores seria equivalente a ⅓ do salário mínimo da época.

A polícia imediatamente se deslocou para a Rodrigues Alves, e sob o comando de Kitazume, tentou dispersar o ato. Os trabalhadores resistiram, mas a polícia liderada por Kitazume partiu para a violência, reprimindo os trabalhadores com cacetetes, mangueiras de água e agressões. A repressão resultou em 12 pontos na cabeça do coordenador do Sindicato dos Professores (Apeoesp), Duilio Duka de Souza, após o policial acertá-locom o cacetete, entre outras pessoas feridas.

O sindicalista Roque Ferreira reclamou em entrevista que “a Polícia Militar, mais uma vez, usa de violência”, e ressalta: “A população que paga seus impostos deve ser respeitada”, e não agredida pela PM.

Mesmo assim, a repressão não foi suficiente para conter a garra dos manifestantes, que continuaram a manifestação.

Manifestações de 2013 em Bauru reuniram milhares em frente à Câmara Municipal (Foto: Reprodução/Facebook)

Em 2013, 50 anos depois das primeiras mobilizações estudantis de 1963 – que levaram às primeiras conquistas para a população referente ao transporte coletivo, após todos os ocorridos relatados acima – houve os levantes que ficaram conhecidos como Jornadas de Junho.

Os usuários do transporte coletivo se organizaram em uma frente chamada “Bauru Acordou” e realizaram diversas manifestações, levando cerca de 6 mil pessoas para as ruas de Bauru. Em um determinado momento, chegaram a ocupar a prefeitura da cidade. Esta ação levou o então prefeito Rodrigo Agostinho a realizar uma reunião com o coletivo Bauru Acordou. O encontro resultou no aumento do desconto do passe estudante de 25% para 50%, na instituição do passe integração e diminuição da idade mínima para isenção de tarifa aos aposentados, além de reduzir a tarifa de ônibus naquele ano.

O que fica como lição para nós, é que em todos os momentos que conseguimos reduzir o aumento da tarifa, foi com mobilização e organização popular nas ruas.

O que devemos reivindicar?

Como já argumentado aqui, pagamos mais caro que São Paulo na tarifa do transporte coletivo, a maior cidade do país, e repito: não temos nem um terminal de ônibus. Algo simples, que já existe em diversas cidades ainda menores, com passagens mais baratas que Bauru.

Abrir uma licitação para transportes públicos seria o mínimo de decência, e nós podemos ainda fazer melhor.

Tarifa Zero é uma realidade em várias cidades brasileiras, não precisamos ir muito longe. Temos aqui do lado a cidade de Agudos. Nela, encontramos uma situação importante de entender.

Nenhuma empresa vai nos ceder transporte gratuito, por motivo simples: o interesse primário das empresas é o lucro e não o bem estar social. Em Agudos, o município é quem arca. E sim, dá conta do recado.

Mas podemos fazer diferente. Primeiro, tirar das mãos de empresários corruptos que querem lucrar com a necessidade das pessoas, e então ESTATIZAR o transporte coletivo, para assim colocarmos uma tarifa acessível, no valor de R$1,00 ou R$2,00.

Assim como temos, até o momento, o Departamento de Água e Esgoto (DAE) como uma autarquia, teremos o transporte coletivo também se auto sustentando, oferecendo locomoção e qualidade de transporte.

Isso não é um sonho, é uma bandeira a ser levantada por todos nós. Por um transporte coletivo acessível, popular e que atenda às demandas dos usuários. Não podemos ficar enriquecendo empresários e políticos em cima de direitos básicos da população bauruense.

E por fim, mas não menos importante, precisamos parar de eleger políticos que servem aos interesses destes empresários. Que nessa cidade, são muitos.

*Matheus Versati é professor de História, conselheiro do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo (APEOESP Bauru) e militante do Coletivo Ação Libertária.

As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
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