Sábado Cultural no Assentamento Nova Canaã

Arte e transformação no extremo sul da cidade

Reportagem publicada em 13 de abril de 2019

Do nascer do sol as 23h da noite o barracão azul na sede da secretaria do Assentamento Nova Canaã foi ocupado com discussões, oficinas e poesia. (Foto: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)
Por Letícia Sartori
 

Olha, a gente pode cair”. Foi com essa frase que a ida ao assentamento Nova Canaã, organizado pelo Movimento Social de Luta dos Trabalhadores (MSLT), começou no sábado 30 de março. Bauru estava há alguns dias sem chover após uma sequência de temporais, a estrada de terra que liga a Rodovia Marechal Rondon ao assentamento estava completamente seca e em alguns locais, tomada pela de areia fofa. O desafio era vencer o sol quente e não cair da garupa da moto do amigo que se prontificou a me levar à terra prometida do assentamento Canaã.

Depois de algumas viradas e curvas no meio do caminho chegamos ao lugar certo. Eis que nos 45 do segundo tempo, com o lugar já à vista, a moto derrapa e vamos os dois pro chão. Levantamos, aquela risada pra marcar o momento, batemos a terra e seguimos em frente. Na entrada do assentamento um senhor já de idade avançada, sério, pitando um cigarro nos dá a letra: “Pra chegar na secretaria é só seguir essa rua. Vocês vão ver um barracão bem à direita”.

O motivo da minha ida ao Canaã é simples e direto. Um dia inteiro de programação artística no extremo sul da cidade, o projeto de um ‘Sábado Cultural’. Com Oficina de poesia, discussão com artistas, sarau e por fim, um filme pra fechar a noite. No decorrer do dia diversos produtores culturais passaram pelo assentamento. No começo da manhã, oficina de poesia com Renato RapNobre, um dos idealizadores do sarau mais conhecido da cidade, o Sarau do Viaduto, e do projeto Biblioteca Móvel 5º Elemento. À tarde, a presença do raper Dom Black para um bate papo e sarau — junto com outros mcs e organizadores de batalhas de rima em Bauru e entre outras atividades.

(Arte Divulgação)

Sol da tarde

Cheguei ao local às 15h30 da tarde — dia de outono comum, sol seco de rachar a cabeça e a distante promessa de frio assim que a noite chegasse. O barracão da secretaria estava lotado, a programação do Sábado Cultural seguia firme em sua segunda atividade: Oficina de geração de renda. Embaixo da lona da construção de madeira, cerca de 30 mulheres com diversas crianças ao redor conversavam com a Assistente Social e uma das organizadoras do evento, Ana Marta Álvares. Discutiam formas de ganhar dinheiro de maneira eficiente e sustentável — produção de sabão, criação de artesanato, produção de instrumentos musicais com frutas e cabaças que crescem na região e por aí vai. Ana Marta dialogava com as mulheres e crianças da roda dando exemplos de redes de economia que se formaram em outros assentamentos e ocupações ao redor do Brasil. Ao mesmo tempo em que as presentes pontuaram suas próprias influências e conhecimentos — de costureiras à artesãs e pessoas extremamente rápidas na arte da gambiarra.

Caímos então naquela velha e rotineira proximidade do interior brasileiro. Na discussão sobre a cabaça — utilizada para criação de instrumento musicais muito usados em religiões afro-brasileiras — uma das mulheres diz que sabe muito bem o que é a cabaça, uma vez que sua tia é de um grupo de Maracatu da cidade. A oficina vira então uma discussão sobre quem é a tal da tia e qual seu grupo — outras mulheres rapidamente reconhecem os nomes. As crianças mais do que atentas na discussão, relam, mexem e manuseiam todos os produtos mostrados pela oficineira.

O calor aperta, o sol se inclina a cada minuto e invade um pouco mais a sombra do barracão. Bruno, um dos organizadores do evento e morador do Canaã, me oferece água, cadeira e a sombra de dentro da secretaria. Nesse momento a luz parece aglomerar todos os adultos presentes no espaço, as crianças correm, andam de bicicleta e se movem de um lado pro outro. Bruno comenta sobre a construção do barracão onde se dá a oficina, gambiarra recente do assentamento. A estrutura anterior tinha o dobro do tamanho, segundo ele, mas com a última sequência de temporais, veio ao chão com a força da água.

Boneca Abayomi

Chega o momento seguinte da oficina de geração de renda, Ana Marta mostra como produzir uma boneca abayomi — boneca negra feita de pano e retalho de tecidos. Abayomi na lingua Iorubá significa aquele que traz felicidade ou alegria. Historicamente a boneca abayomi tornou-se além de uma técnica de artesanato, parte da resistência da cultura negra em terras brasileiras. Hora de concentração entre as diferentes faixas etárias presentes. A correria para por um breve momento e as crianças se empenham junto das suas mães para criarem uma boneca com os diversos tecidos à disposição.

No final da oficina, quando já estão recolhendo os retalhos, guardando os materiais e exibindo as bonecas criadas, é que conheço de fato as crianças que passaram a tarde brincando ao meu redor.

Estefani, Laura e outras crianças caem a me chamar de ‘Tia’ numa rapidez absurda — e vão mais tarde, numa braveza ligeira, implicar com o cigarro que acendi pra passar o tempo. “Faz mal tia, apaga isso!”. No final além do sorriso, da história e das fotos, ganhei uma boneca de presente.

Hora do intervalo na programação, as crianças correm pra casa — depois de pedir mais 5 minutos pra brincar algumas 500 vezes — tomar um banho e se trocar para as atividades da noite. As mulheres permanecem um pouco mais, seja ajudando a arrumar o barracão para a próxima atividade ou conversando sob a sombra que começa a se estender por ali.

No meio das atividades

A terceira atividade do dia, uma roda de discussão e sarau com o raper Dom Black vai atrasar. Esperamos a volta de uma das organizadoras, que foi buscá-lo na cidade.

Converso com Cristiana dos Santos, uma das coordenadoras do assentamento, em um rápido momento de calma. Cristiana tem três filhos e mora no assentamento Canaã há três anos com a família, para ela “é bom que os pais venham nos eventos. Ainda tem muitas pessoas que não estão acostumadas a participar”.

Segundo a coordenadora “a importância de eventos como o Sábado Cultural é mostrar (o evento) pro pessoal da cidade — tem muita gente que tem medo de entrar aqui dentro sabe? A importância é mostrar pras pessoas que somos unidos, que as pessoas aqui se conhecem”.

Enquanto falamos a arrumação e conversa continuam na secretaria. As crianças já foram quase todas embora, mas não há minuto que pare sem alguém passando na cancela da secretaria e falando sobre o show, sobre o calor ou simplesmente sobre o dia.

Pôr do sol

Dom Black chega, lá pelas 18h da tarde — acompanhado de outros mc’s locais: GRD, Bag e Estrofe, parceiros recorrentes de Dom e nomes de peso da cena hip hop bauruense nesta segunda década dos anos dois mil. Dividimos cigarros, o pôr do sol passa rápido e o vento começa a apertar. Antes que a luz solar suma de vez, todos já engataram na arrumação da luz, extensões e equipamento necessário para as próximas atividades.

No meio do barracão, os artistas convidados, organizadores, crianças de olhos arregalados e outros adultos do assentamento se sentam para um bate-papo com Dom Black. Julio Cezar, nome de batismo de Dom que se tornou uma das maiores referências do rap interiorano, se apresenta, agradece o convite e principalmente: pergunta de maneira sucinta sobre a realidade do assentamento e quer entender o porquê de ter sido chamado a se apresentar ali.

O que segue é uma breve explicação sobre a árvore genealógica dos assentamentos da cidade — como e porque surgiram, como foram os processo de reintegração e como o Canaã sobreviveu e se transformou durante seus três anos de existência. Os membros da secretaria e organização do assentamento, em conjunto com a assistente social Ana Marta e outros moradores, descrevem a história do assentamento, a necessidade de atividades culturais no dia a dia das pessoas e a importância da visita de Dom Black neste sábado.

Durante essa primeira roda de conversa adolescentes e adultos se acomodam e aprochegam-se do barracão. Bebem a água disponível na secretaria, pitam cigarros e paieros enquanto as crianças se dividem entre aquelas que estão correndo e aproveitando os últimos momentos de sol e as que sentadas escutam atentamente a conversa entre os artistas e organizadores.

É nesse momento que Teresinha chega. Moradora do Assentamento Canaã há 3 anos, me empresta o isqueiro e rapidamente proíbe que eu a chame de Senhora e já emenda com “Dona tá no céu também”. Teresinha conversa de maneira fácil, enérgica, incentiva as crianças a prestarem atenção e se envolve rapidamente na roda.

Em uma conversa mais pra noite, irá pontuar sobre o rapper: “Foram mensagens muito bonitas, ele trouxe mensagens muito boas pra gente, de autoestima — coisas que a gente realmente está precisando nesse momento que estamos vivendo”. E aponta, “na próxima vez que ele aparecer, com certeza vai ter mais gente porque isso passa de boca em boca, entende? A gente percebe pelo pessoal que ele conseguiu dar um ânimo em quem veio”.

Noite

Aproveito a brecha do cair da noite — enquanto terminam de arrumar o som e correm atrás da extensão para ligar a luz no barracão — para conversar com os rapers. Personagens constantes da vida cultural da bauruense, o encontro com GRD, Bag e Estrofe no assentamento Canaã é uma agradável surpresa, visitantes que somos de primeira viagem ao extremo sul da cidade. Entre cigarros e olhares sérios, os músicos discutem sobre a importância da cultura nesses espaços.

“Pessoalmente acho que o Universo tem uma forma muito louca de guiar a gente pra certas coisas que precisamos passar, aprender e entender”, começa Bag, Gabriel Miranda, músico e organizador Batalha da ZL, uma das principais batalhas de rap da cidade. “Agora, socialmente a maior importância da gente tá aqui, é a gente entender que vivemos por fora de muitas realidades. E entender que a nossa arte tem que estar presente nesses lugares mais do que em outros”.

“Também vejo assim” intervém Estrofe, vulgo de Wesley Lima, o rapper de 19 anos foi o ganhador da última Batalha da Panelinha, edição especial dentro de um dos maiores festivais de hip hop gratuito da América latina — a Semana de Hip Hop de Bauru — e referência dentro da cena artística do interior. “Acho que por mais que nós estamos trabalhando no dia a dia, fazendo nossas letras, nossos protestos, ainda não tá bom. Ainda tem muita coisa pra conhecer, pra acontecer e pra melhorar”. E já embala, “reconhecer as precariedades que existem nesses lugares — estar aqui é uma vivência a mais pra gente. A ideia é que a gente possa, pelo menos, entreter as pessoas que estão aqui, as crianças que merecem total atenção”.

GRD, João Martins, raper, organizador de batalhas na Zona Norte da cidade e MC da Batalha do Placo: “Mano, a molecadinha daqui tá crescendo pra ser pedreiro e outros trampos assim. Pão e circo. Agora, ver Dom Black cantando, o Bag, o Estrofe gente como eles; negros iguais a eles, vão se espelhar e pensar ‘pô, vou fazer acontecer também. Se ele conseguiu eu também consigo’. Tá ligado?”

Peço mais um cigarro pra GRD, meu maço acabou há algumas horas, e indago sobre a relação da arte com a responsabilidade social que o rap carrega. “A arte caminha junto com a política. Todo problema social, todos os problemas das pessoas a arte sempre vai tá envolvida. E nossa arte é rap, é a letra, as músicas e a responsa pesa” destaca Estrofe, e continua “a gente não pode esquecer dessas coisas. Ainda mais no Brasil, lembrando do país que a gente vive, do estado que a gente vive, na cidade onde a gente tá. A responsa não acaba nunca, parece. Então a arte caminha de mãos dadas com a política sempre”.

“Não é nada mais do que nosso dever vir aqui, fazer nosso papel — deixar aquele abraço pro Gazetta”. Rimos da colocação final de Estrofe, essa é a realidade da cidade e não só na cena hip hop. Além de músicos e organizadores de batalhas na cidade, os rappers participam da programação do Combo 5 elementos, iniciativa da Casa de Hip Hop Bauru que leva a cultura hip hop para as escolas públicas e bairros de periferia da cidade. A crítica vem daqueles que retratam em suas músicas e ações o dia a dia da juventude bauruense.

É nesse momento que o artista convidado se aproxima da roda, “é todo mundo que tem que mandar este abraço né. O que a gente pode fazer, apesar de ser alguma coisa é pouco. Sem o apoio e ajuda de quem realmente pode fazer uma coisa grande, não vai acontecer”, coloca Dom Black. “O dono do confiança tem que vir aqui ver essas crianças, o Gazzetta, os caras que se julgam os donos da cidade. Tinham que estar aqui vendo a dor dos outros, sentindo a dor dos outros, passar uma semana dormindo aqui. Aí iam entender”. GRD continua, “chamar os outros de vagabundo dormindo no seu colchão quentinho, no ar condicionado é fácil”.

Questiono Dom Black sobre sua participação no Sábado Cultural. “O convite vem de encontro com o que eu fiz a vida inteira. Que é cantar, não só pra minha mãe sorrir, mas pra dar voz para muita gente que passa pelas coisas que eu passava”. E continua, “espero voltar e fazer muito melhor do que estamos fazendo hoje. Eu não tinha noção da carência e de tudo o que eles passam. Agora que eu tenho, a responsabilidade cai no meu ombro de fazer alguma coisa. Eu sei que hoje eu vou trocar essa ideia aqui mas quero depois voltar e trazer muito mais gente”.

Dom Black dá a última letra antes de se dirigir ao barracão, “eu não vou contar uma história de um livro ou de nada, vou contar minha história. Então eles vão ver que na minha vida eu fiz o que eu quis, eu lutei e eu tô bem. Então eles podem ficar bem também, não abaixar a cabeça, enfrentar o que tem que enfrentar, não vai ser fácil. Mas dá pra fazer”.

Bag finaliza a entrevista pensando nas crianças que esperam o sarau e brincam ao nosso lado, “acho que o essencial pra gente colocar na cabeça dessa molecada é isso. Independente da sua realidade mano, você é tamanho do seu sonho. E toda realidade pode ser sonhada”.

 
Bag, Dom Black e Estrofe com Álvaro(12) e Peterson(10) momentos antes do Sarau (Arte: Letícia Sartori/JORNALDOIS)

O Sarau

Noite de várias estrelas e pouca lua, depois de tomar um gole d’água e tirar fotos com jovens e crianças, Dom Black se aproxima do palco.

Julio Cezar Bastos se apresenta e passa os próximos 40 minutos imerso em uma conversa franca com os moradores do assentamento Canaã. Lembra a infância e juventude, desde o nascimento na capital paulista, passando pelas dificuldades de crescer negro em um país racista como Brasil, trilhando seu caminho do tráfico até a carreira artística e a vida adulta no interior. Dom conversa, brinca com as crianças que alternam ora sentadas ou deitadas no espaço de lona na frente do palco. E fecha esse primeiro momento com lágrimas nos olhos.

Enquanto os jovens e adultos ocupavam as cadeiras, as crianças sentaram na frente do palco para acompanhar a conversa com Dom Black (Arte: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)

Sem tempo pra descanso, após as palmas no final da conversa, já se inicia o sarau. É aqui que Bag, Estrofe e GRD aparecem e reforçam a responsabilidade do artista com a sociedade. Traduzem a resistência do rap, das quebradas norte-americanas aos assentamentos e ocupações de uma latinoamérica que recusa ser submetida. Seja com suas poesias e músicas autorais ou então fazendo coro de clássicos do rap nacional — ‘Negro Drama’, do grupo paulista Racionais, puxado por Estrofe, foi cantado tanto por mulheres adultas que cresceram com o som quanto por meninos de 12 anos que olhavam atentos ao rapper no palco.

Mas não foram só os convidados que se deliciaram no palco do Canaã. Das cadeiras e cantos do barracão se ergueram músicos e poetas, mulheres, jovens e crianças que subiram ao palco para cantar sucessos do rap nacional e poemas criados na oficina de poesia na manhã do sábado.

Pipocas, sucos e projetores

Acaba o sarau, o frio já apertou de vez, a criançada já está agasalhada e continua a correr de um lado pro outro. A pausa aqui é a pra agradecer a presença dos rappers e logo em seguida arrumar o projetor e o som para a sessão de cinema. Na sede da secretaria, o corre corre não para, enquanto três pessoas se ajeitam para estourar a pipoca e fazer suco pra criançada. Aliás, não só para a parte mais nova, adultos, idosos e adolescentes se sentam e se arrumam no barracão esperando o filme começar.

Meu celular, companheiro de gravação e e anotações durante todo o dia pede arrego e vai pro carregador. Fico pela sede, abrindo saquinhos de papel e depois enchendo de pipoca junto com Teresinha e Viviane Rodrigues, ou Vivi como prefere ser chamada. Conversa vai, conversa vem, tem sempre alguém que chega para pedir um pouco mais de pipoca, outro que de passagem indaga qual filme está acontecendo e a criançada sempre inquieta que aproveita a luz da sede para se divertir.

Depois de dezenas de pacotinhos de pipoca distribuídos e litros e litros de suco prontos, paramos um pouco — dar uma pitada no cigarro que o frio tá forte, conversamos sobre como será o inverno deste ano. Peço uma entrevista para duas mulheres responsáveis pelo alimento de inúmeras crianças naquela noite. Elas dão risada e perguntam se era por isso que eu estava ali com elas até aquele momento. “Jamais!” digo, meu interesse era mesmo a pipoca e a companhia.

Teresinha e Vivi não pararam de conversar um minuto entre as tarefas de abrir os sacos, encher de pipoca e distribuir para o público. Quando o celular fica com carga suficiente, nos aproximamos do parapeito da sede, de inicio bate uma timidez que rapidamente se transforma em respostas longas e emocionadas sobre a programação do sábado.

Teresinha logo de cara já arremata: “Vai ter uma festa no Canaã? To dentro. Adoro fazer, adoro ajudar. É o que eu falo pras meninas, às vezes eu não posso, porque tô doente. Mas estando no meu alcance o que precisarem estou aqui. Pra fazer pipoca, brincar com as crianças, o que for. Às vezes eu não posso colaborar com dinheiro e essas coisas mas minha mão de obra tá aqui”.

Questionada sobre o que sente ao ajudar na preparação do sábado cultural Viviane coloca que se sente “Útil. A gente se sente importante ajudando com o pouco que pode. Eu sinto uma felicidade enorme, porque criança pra mim tudo né. Eu amo. Então tudo o que eu puder ajudar a fazer eu faço”.

Vivi, como prefere ser chamada, tem 42 anos e mora no Canaã há cerca de um ano e meio. Além do marido e filho, tem também uma filha que mora com o genro e a neta em outra casa do assentamento. Estávamos os quatro na cozinha da sede, Vivi e seu marido, eu e Terezinha — arrumando os saquinhos e conversando com as diversas crianças e adultos que passavam a todo momento.

Questiono a importância do evento não só para a comunidade mas especificamente para as crianças que moram no Canaã. “Eu acho muito importante, porque aqui a gente não tem muito entretenimento, muita diversão. As crianças, bem dizendo, não têm lugar pra brincar. Não tem um parquinho nem nada, se quiserem brincar é na rua ou no quintal de casa. Por isso é muito importante ter isso aqui, pros adultos também”, coloca Vivi.

Terezinha segue na mesma linha. “Elas têm muita pouca diversão aqui. Não tem lugar pra brincar. Lugar que elas têm é rua. Escola e rua — ou então dentro de casa”. E completa, “a alegria que teve hoje foi muito bom. De manhã com as crianças, foi maravilhoso. As crianças interagiram muito bem, souberam interagir com a poesia de uma tal forma que olha… eu não imaginava que as crianças daqui tivessem aquele poder que elas tiveram. Da palavra, de se expressar, entendeu. Uma coisa muito bonita, elas chegavam a brigar entre elas para ver quem ia subir no palco pra falar uma poesia. Foi lindo demais. Depois da poesia começaram a cantar músicas, quer dizer, foi aguçando a curiosidade deles da leitura e de várias coisas”.

Mesmo após o dia inteiro de atividades, ainda análise a sessão de filme na parte da noite “Um cineminha pra eles no final de semana é maravilhoso. Pra eles é o céu — porque, quantas crianças dessas nunca entraram no cinema? Acho que devem ter muitas aqui que nunca entraram, que não sabem nem o que é um cinema, pra eles isso é novidade. Então hoje, o dia de hoje foi maravilhoso. Deveria ter muito mais dias desse jeito”.

Pergunto se Vivi gostaria de deixar um recado pros artistas que ajudaram na construção do sábado cultural: “Queria agradecer, por tudo o que fizeram hoje aqui. Lembraram que somos pessoas, seres humanos. E não como muitos falam ‘um bando de vagabundo’. Isso a gente não é. A gente levanta às cinco, seis horas da manhã pra ir trabalhar e chega só a noite em casa”.

Desligo o celular e voltamos para dentro da sede, hora de beber mais um gole do suco e ver os últimos momentos do filme.

O final

Acaba o filme e numa rapidez e organização daqueles que já estão acostumados com o trabalho, se ajeita o barracão. As famílias se despedem, rumam para suas casas, ganho beijos e abraços das crianças que ficaram até este último momento, dou tchau Vivi e Teresinha no meio do frio.

Cristiana, Bruno e Ana Marta, presentes desde o começo da manhã, são as últimas pessoas a saírem da secretaria — após varrer o barracão, jogar fora o lixo e enfiar no carro da assistente social o projetor, as caixas de som e mais tantos equipamentos usados durante o dia. Nos despedimos, “boa noite, bom descanso e uma boa semana”. Aproveito uma carona com Ana Marta até o centro e a volta pra casa é com a sua filha, Maria, dormindo no colo, mais uma das crianças que cansou de correr durante o dia todo.

Dessa vez a terra fofa não é um problema, o carro segue e no meio das histórias e anedotas de Ana Marta sobre seu trabalho e dia a dia no assentamento, sigo pensando numa frase da artista negra Nina Simone, “é dever do artista refletir o seu tempo”. É isso que na prática aconteceu hoje durante todo dia. Não somente uma movimentação cultural, mas a transformação da realidade.

Peterson Costa tem 10 anos de idade, mora com os pais, dois irmãos e os avós no assentamento Canaã. E numa rápida conversa em frente a sede da secretaria me disse que “ver aquele moço”, pergunto “o Estrofe?”, um pouco perdida, “ele mesmo”, disse o estudante que cursa o 5º ano do Ensino Fundamental. “Ver o Estrofe no palco me dá coragem pra cantar”. Peterson, assim como Álvaro e outros tantos jovens brasileiros nunca haviam ido a um Sarau. E agora, por conta da organização do assentamento Canaã, de artistas e assistentes sociais comprometidos com seu trabalho, acompanhou um no bairro onde mora.

Da direita para esquerda: Peterson, Álvaro e Ana Luiza passaram a noite entre a sessão de cinema e brincadeiras a luz da sede da secretaria. (Arte: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)

“É aquela coisa”, me disse Bag no começo da tarde, “se você votou e não discutiu tá bom. Gente que discute dá problema pros outros”.