Ronda Escolar: entenda o serviço que levou à morte jovem negro bauruense
Empresa contratada por R$ 7 milhões levará recursos da Educação para realizar serviço de vigilância patrimonial; Ronda 24 horas, falta de especificação sobre atividades dos vigilantes e assassinato de garoto em setembro marcam os dois meses de atuação
Publicado em 22 de novembro de 2019
Por Lucas Mendes e Vitor Soares
No dia 22 de setembro, um domingo, o adolescente negro André Eduardo Alves Costa, o Dudu, foi morto após ter sido baleado por uma policial militar no bairro Santa Cândida, em Bauru. Foram dois tiros, na versão da PM, que o levaram a óbito a caminho do hospital – sem a chance de se despedir de seus pais e amigos.
À época, a imprensa da cidade entendeu o caso como sendo apenas mais um no cotidiano do noticiário policial: um jovem rouba um carro com outros comparsas, foge em disparada pelas ruas de seu bairro e reage armado à abordagem policial. A vida seguiu e, pelo menos nos grandes jornais, ninguém mais falou no assunto.
Havia um fato diferente, no entanto, nos eventos que levaram à morte Dudu Alves, às vésperas de seu aniversário de 16 anos. Nas fotos veiculadas pela mídia, era possível ver que o suposto carro roubado, encontrado próximo a um matagal naquela noite, estava adesivado com logo da Prefeitura de Bauru.
O veículo, novo, pertence à Essenza Segurança Patrimonial. Criada em abril de 2018, a empresa venceu um processo de licitação da Prefeitura de Bauru e foi contratada por R$ 7 milhões para, durante 30 meses, fazer o serviço de ronda nas escolas da rede municipal de ensino de Bauru.
Por volta das 4h da manhã do dia 22 os dois funcionários da empresa envolvidos no caso estavam com o carro da ronda parado em uma rua do bairro Santa Cândida, momentos antes de Dudu ser assassinado com dois tiros. Segundo a prefeitura e a empresa encarregada pelo serviço, os vigilantes da ronda pararam o carro para fazer a vistoria na Escola Municipal Aracy Pellegrina Brazoloto e foram abordados por indivíduos, que levaram o carro.
Por se tratar de uma morte envolvendo um serviço público, o assunto chegou imediatamente às esferas do poder público, na Câmara Municipal, onde a vereadora Chiara Ranieri (DEM) questionou a utilização de recursos da Educação para a contratação de um serviço de segurança patrimonial, por 24 horas diárias, fora dos horários de aula.
É a partir desta repercussão que o Jornal Dois começou a analisar o Caso Ronda para apurar os acontecimentos envolvendo a morte de Dudu Alves e o contrato firmado entre a empresa Essenza e a Prefeitura de Bauru.
O ponto de partida dessa investigação é uma imagem enviada à reportagem por uma fonte anônima, no dia 10 de setembro, mais de uma semana depois da publicação dos contrato no Diário Oficial do Município. As fotos, registradas em uma avenida da cidade de Irapuru, a 300 quilômetros de Bauru, mostram a viatura da Essenza parada em frente a uma padaria da cidade – longe de seu local de serviço.
A reportagem entrou em contato com os donos da padaria onde a imagem foi feita e confirmou a localização do veículo. Os detalhes desta historia, do contrato entre Prefeitura e Essenza e a versão não contada sobre a morte de Dudu Alves estão disponíveis a partir daqui.
O carro em Irapuru
Um carro adesivado com logotipo da Prefeitura de Bauru estacionado a 300 quilômetros da cidade saltaria aos olhos de qualquer cidadão, mesmo que rapidamente. Visto no dia 10 de setembro, no entanto, o veículo só voltaria a gerar interesse 12 dias depois de ter sido fotografado em Irapuru, devido à morte do adolescente Dudu Alves.
A ligação entre a cidade paulista e a Essenza Segurança Patrimonial, responsável pelo serviço de ronda escolar em Bauru, está na família dos representantes da empresa. O advogado Leone Lafaiete Carlin, creditado pela Prefeitura de Bauru como “sócio da empresa”, é irmão de Luana Carlin, proprietária da Essenza. Leone é quem assina o contrato do serviço da ronda escolar. Os dois irmãos estiveram na cerimônia de lançamento do serviço, na Praça das Cerejeiras, onde fica a Prefeitura de Bauru.
Leone Carlin consta no cadastro da Receita Federal como produtor rural de cultivo de banana com endereço na Chácara São Lucas, localizada em Irapuru. Em resposta ao Jornal Dois, a proprietária da Essenza cita que seus pais moram em Irapuru há mais de 50 anos e que possuem uma chácara na cidade.
Pelo menos desde 2015 os irmãos Leone e Luana comercializam banana nanica com as penitenciárias da região, principalmente a de Junqueirópolis, cidade que fica entre Irapuru e Dracena.
Uma rápida olhada no mapa do estado de São Paulo mostra a proximidade entre a cidade de Irapuru e o município de Dracena, onde fica a sede da empresa de segurança. Cerca de 27 km separam os dois municípios.
Questionada sobre a motivo de o carro ter sido visto em Irapuru, a 300 km de Bauru, Luana Carlin respondeu que teria comprado os carros e guardado na chácara da família.
Ela não respondeu sobre os motivos que justificam a presença da viatura em frente à padaria Ki Pão, em horário comercial, na cidade de Irapuru.
Já o Departamento de Vigilância do Município, por meio de nota oficial do diretor Aloísio Ramos, explicou que o contrato prevê prazo de 20 dias, após recebimento da ordem de serviço, no dia 30 de agosto, para início das atividades da empresa contratada. O carro foi visto no dia 10 de agosto, 11 dias após a ordem. No contrato, essa informação foi confirmada por nossa reportagem.
Ainda assim, o Executivo municipal não se pronunciou a respeito do uso, em Irapuru, de um veículo com o logo da Prefeitura e comprado para realizar serviços em Bauru.
Poucos recursos para a Educação
À época do assassinato de Dudu Alves, a vereadora Chiara Ranieri apontou possível ato de improbidade administrativa na utilização de recursos da Educação para um serviço de segurança, como é a ronda escolar.
Um mês antes de a Essenza Segurança Patrimonial, de Dracena, começar a realizar serviços em Bauru, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) emitiu um alerta à prefeitura, e mais especificamente à secretaria municipal de Educação.
O documento, assinado pelo relator Dimas Ramalho, da Unidade Regional de Araraquara, apontava uma tendência ao descumprimento das metas fiscais da Educação de Bauru. Nele, o TCE apontou que o município, até aquele momento, não estava utilizando o orçamento mínimo previsto pela Constituição Federal para a manutenção do ensino básico – que é de 25% dos recursos da cidade.
“Se a gente considerar que os recursos da educação devem ser aplicados na educação, mesmo que se entenda que é permitido o uso desses recursos para a preservação do patrimônio da escola, nós estamos falando de um ronda que não está dentro de uma escola”, disse a vereadora.
O relatório de Acompanhamento da Gestão Fiscal do TCE previa ainda a possibilidade de “sanções de ordem administrativa e penal” em caso de não cumprimento das exigências descritas pelo TCE.
Confrontada sobre a irregularidade fiscal, a Prefeitura de Bauru tentou amenizar a baixa dotação orçamentária aplicada ao ensino da cidade.
Segundo a nota oficial enviada ao Jornal Dois, o não cumprimento do mínimo mensal é devido ao fato de que essa exigência só pode existir “ao final do exercício em questão, pois a sua obrigação é averiguada após o final de cada ano”, uma vez que “a arrecadação dos tributos não têm um comportamento linear, face à sazonalidade que lhe é própria”
Apesar da afirmação do Executivo, o relatório de Acompanhamento da Gestão Fiscal previa, já em agosto, a possibilidade de “sanções de ordem administrativa e penal” em caso de não cumprimento das exigências financeiras descritas pelo TCE.
Para a vereadora Chiara Ranieri, ouvida por nossa equipe, há a possibilidade de investigação a respeito do tema. O que ela vê com dificuldades, por outro lado, é a abertura de um processo de cassação com a atual configuração das bancadas na Câmara Municipal de Bauru .
“A discussão política nós já começamos a fazer, mas hoje não temos um fato consumado [que possa gerar um processo]. O que nós fizemos foi um alerta, para que o serviço não fosse pago com dinheiro da Educação”, explicou a parlamentar, ao analisar que pode haver ligação entre a falta de dotação orçamentária e a contratação do serviço de ronda.
Sobre esse fato em específico, a Prefeitura não se pronunciou.
“Se há a possibilidade de esse serviço ser custeado com recursos destinados ao orçamento da educação, isso deveria estar previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano anterior”. É o que afirma José Francisco Martins, advogado do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Bauru e Região (Sinserm). “Se você faz uma licitação para esse tipo de contratação, é preciso ter estabelecido previamente a dotação orçamentária, ou seja, de onde esse dinheiro vai sair”, pontua.
Em todo caso, o advogado explica que a verba da ronda escolar não entra na conta da obrigação de investir 25% em educação. “Os 25% devem ser destinados à atividade fim do ensino”, salienta.
Problemas no Orçamento
O serviço de ronda escolar contratado pela Prefeitura de Bauru, por R$ 7 milhões, por um período de 30 meses, não constava, em 2019, na Lei Orçamentária Anual (LOA).
A prefeitura alega que essa despesa será paga com recursos da secretaria de Educação inseridos na LOA como custeio de manutenção dos ensinos fundamental e infantil, das creches e das pré-escolas. Esse gasto consta nas previsões do governo.
Ainda assim, foi esse fato que, mesmo antes do início do funcionamento do serviço de ronda, gerou dúvidas em Bauru sobre a regularidade da utilização dos recursos da prefeitura.
Segundo Martins a princípio não há nada de errado na contratação, uma vez que a dotação de custeio ou administração, prevista na LOA, pode envolver o gasto com a ronda escolar. “Mas digo isso ainda sem analisar a LOA e o contrato”, alertou.
O advogado do Sinserm alega que faltou debate antes da ronda começar a operar na cidade. “Se essa era a melhor alternativa, faltou diálogo com a população. O debate com a sociedade é uma obrigação do poder público. A partir do momento em que se contrata a toque de caixa, aparecem os questionamentos”.
A vereadora Chiara Ranieri defende a tese de que o serviço, prestado em horários fora dos períodos de aula, não corresponde a uma defesa do bem-estar dos alunos.
O evento que culminou com a morte de Dudu Alves, de 15 anos, ocorreu na madrugada de sábado para domingo. O local do suposto roubo, segundo o governo, teria sido próximo a uma escola.
O trabalho dos vigilantes
Com o serviço da ronda escolar a prefeitura espera criar um “envolvimento” dos vigilantes com a comunidade. Para atingir esse objetivo, os trabalhadores que estiverem em ronda deverão “manter contato direto com a população” para “oferecer um serviço mais adequado a cada região de Bauru”.
O diretor da Divisão de Vigilância de Bauru, Aloísio Ramos, informa que é de responsabilidade da empresa exigir a capacitação dos funcionários, por meio do curso para vigilantes.
A empresa Essenza esclarece que o contrato prevê ronda interna e externa, guarda e vigilância patrimonial em todas as escolas municipais da cidade. O contato com a população, quando feito, ocorre durante o serviço e de acordo com as escolas que necessitam de “uma atenção maior pela localidade onde se encontra”.
Para o trabalho é exigido curso em escolas de formação credenciadas pela Polícia Federal, e a empresa assegura que todos os seus funcionários são habilitados. A cada dois anos é preciso fazer uma reciclagem para continuar trabalhando na área. A empresa não esclareceu se os vigilantes são capacitados para o diálogo com a população nem como poderão atuar para adequar o serviço a cada região da cidade.
A Essenza é cadastrada no sistema de Gestão Eletrônica de Segurança Privada. Desde o dia 19 de novembro está com alvará de funcionamento vencido, com autorização para continuar funcionando normalmente. A empresa entrou em outubro com pedido de renovação do alvará e aguarda manifestação da Polícia Federal, que tem até o dia 19 de janeiro de 2020 para confirmar.
A prefeitura informou que “os serviços prestados pelos vigilantes ora contratados são exclusivamente para as unidades escolares”, e que foram a saída encontrada para casos de “escolas depredadas” nos últimos anos. Casos de vandalismo, invasão ou depredação são mais frequentes nas unidades escolares, esclarece o executivo.
O governo municipal já emprega servidores públicos como vigias, em locais considerados prioritários, de acordo com estatísticas de vandalismos e furtos. Existe ainda uma ronda veicular esporádica do município. Segundo a prefeitura, esse trabalho pôde ser aprimorado após a contratação da ronda escolar, devido ao reduzido número de servidores da Divisão de Vigilância.
“É uma política perversa”, considera Martins. “O que a gente vê são essas mudanças apontadas pelo Governo Federal, com a reforma administrativa, aumento das terceirizações. Cada vez mais você privatiza ou terceiriza serviços públicos, e isso compromete a carreira e, obviamente, os regimes de previdência”.
As versões sobre e a morte de Dudu Alves
Quando a família do jovem Dudu se reuniu no último mês para uma homenagem ao garoto, a falta de explicações sobre a noite de 22 de setembro ainda ecoava entres as pessoas.
André Costa, o pai do menino, lamentava que, no dia 21 de outubro, dia anterior à homenagem, Dudu não pôde comemorar seus décimo sexto aniversário. Já a mãe, às lágrimas, falava das acusações que o filho vinha sofrendo desde sua morte.
Outro fato, que dá margem para investigações sobre os eventos de setembro, é que Dudu não sabia dirigir, já que o tio, Gilson de Souza, ainda estava ensinando ao garoto como conduzir um veículo.
A família aponta ainda uma série de imprecisões na versão da polícia. Segundo os pais, pertences de Dudu, como boné e relógio, não foram encontrados junto ao corpo. E os chinelos, apesar de encontrados, estavam em um lugar diferente daquele em que o carro e corpo de Dudu foram achados.
O veículo apontado como objeto do roubo passou por perícia da Polícia Civil. Em menos de 24 horas a viatura foi liberada para voltar a atividade. O carro estava com pequenos ralados no retrovisor e para choque.
Sem respostas
O Jornal Dois tentou obter acesso a cópias dos depoimentos dos envolvidos na morte de André Eduardo Alves Costa, o Dudu, mas os registros foram negados.
A empresa Essenza Segurança Patrimonial informou ter dado apoio à família de Dudu no dia de sua morte, e que acompanhou o caso por meio do seu preposto o “senhor Claudecir”. Ao Jornal Dois, a empresa relatou que o gasto mensal com combustível para a ronda escolar fica entre 12 e 14 mil reais. Os gastos com equipamento, uniforme e demais aparelhos foram contabilizados em 200 mil reais para a implantação do serviço. “Estes valores foram suportados pela empresa e não se confundem com valores licitados/contratados”, pontua.
A Prefeitura de Bauru disse que está acompanhando o caso e a investigação policial. O Departamento de Vigilância do Município informou que desconhece a existência de outros municípios que tenham ronda escolar no mesmos moldes do aplicado em Bauru.
José Francisco Martins comunicou que vai pedir cópias do contrato para análise e, caso entenda que há irregularidades, o Sinserm vai notificar o Ministério Público.
A família do adolescente morto pela PM ainda espera respostas das autoridades, enquanto o serviço de ronda funciona normalmente na cidade de Bauru
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