Por que o Festival de Iacanga não aconteceria hoje

A liberdade buscada pelos hippies na década de 70 e 80 em Águas Claras. Os rolês barrados pela Lei das Festas Clandestinas em Bauru. E como o aparato da Polícia Militar continua sendo acionado para a repressão do entretenimento jovem

Reportagem publicada em 30 de janeiro de 2018

Recorte de reportagem publicada na revista Veja, em 1981, sobre a segunda edição do Festival de Águas Claras (Foto: aguasclarasfestival/Reprodução)
Por Bibiana Garrido

“Foi a maior manifestação do underground brasileiro”. É assim que Thiago Mattar, diretor do documentário O Barato de Iacanga,define o Festival de Águas Claras — evento que tomou conta da cidade a 50 quilômetros de Bauru, em pleno regime militar.

Iacanga tem hoje a população estimada de 11 mil habitantes. Na época do festival, calcula-se que 70 mil pessoas chegaram a passar pela região. “Era hippie para todo lado, e todo tipo de gente. Foram acampar até nas praças de Bauru”, comenta o diretor. A Praça Machado de Mello, em frente à Estação Ferroviária, foi a mais movimentada.

Thiago passou a infância em Bauru e só depois de grande ouviu falar de Águas Claras. “Meu pai trabalhou no festival como fiscal, cuidando pro pasto não pegar fogo, mas ele tinha só 15 anos”. Essa semana estreia na Itália a produção sobre o evento que ficou conhecido como o “Woodstock brasileiro”. No Brasil, a previsão para exibição é no segundo semestre.

Acima, o público em volta do palco de madeira; no meio, o panfleto com a localização e orientações para o acampamento; abaixo, Raul Seixas, Wanderléia e Leivinha, organizador do festival que cedeu a fazenda da família para o evento (Fotos: aguasclarasfestival/Reprodução)

O Festival de Águas Claras teve quatro edições: 1975, 1981, 1983 e 1984. Com ingressos a mil cruzeiros em 81, o gasto com a entrada representava 17% dos quase 6 mil que eram o salário mínimo. De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), essa conversão daria mais ou menos 113 reais atualmente.

Hoje, um festival na mesma pegada hippie e com a mesma duração é o Forró da Lua Cheia, que acontece em Altinópolis, também no interior do estado. O ingresso custa 360 reais, o que representa 36% do salário mínimo reajustado.

“Eu lembro que muita gente não pagava, eu não paguei uma vez”, diz Inês Ferreira, jornalista de Bauru, na época estudante, que frequentou todas as edições. “Tinha gente que não tinha dinheiro, aí juntava umas cem pessoas lá na frente e de repente entrava. Ou ia escondida dentro do porta-malas do carro. Não tinha como controlar. O dono do lugar acredito que visava o lucro sim, mas não barrava o pessoal”.

Malucos de estrada, hippies de boutique e jovens classe média se reuniram para curtir três dias de apresentações artísticas e viver em barracas ao ar livre. Membros da organização foram fichados no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) dos militares, órgão punitivo aos acusados de conspirar e questionar a ditadura.

Leivinha, filho do dono da fazenda onde acontecia o festival, foi um deles. “Era uma grande quermesse”, opina, sobre o evento que só foi liberado depois de assinar um termo de compromisso para não atentar contra “a moral e os bons costumes”.

A presença da Polícia Militar em Iacanga ficou marcada em registros fotográficos, mas não impediu que os shows continuassem rolando. Inês afirma que o ambiente era de liberdade. “O que unia a gente era o estilo de vida, muito mais que bebidas ou drogas, era estar ali pela música. Você imagina uma multidão de pessoas malucas quietinhas para ouvir o João Gilberto no palco? Era tudo mais filosófico, foi um momento único”.

Além de João Gilberto, nomes como Raul Seixas, Luiz Gonzaga, Wanderléia, Alceu Valença, Gilberto Gil, Tetê Espíndola e Almir Sater estiveram presentes. Os famosos da música brasileira chamaram atenção da população e da imprensa local, que divulgou e dividiu opiniões sobre Águas Claras.

“É preciso ter um olhar crítico sobre o passado para construir o futuro. As cidades de Iacanga e Bauru sabotaram o festival porque tiveram problemas com a superlotação e o conservadorismo da população”, avalia Thiago. O diretor do documentário pesquisou documentos históricos e fez entrevistas para saber como é que as coisas aconteceram na época.

No trailer d’O Barato de Iacanga, filmagem antiga mostra uma mulher que comenta ao repórter: “eu acho bastante depravação, eles abusam bastante”.

 

Quase 50 anos depois, o lazer da população jovem ainda é motivo de discussão e bate-ponto frequente da polícia nas cidades da região. Em Bauru, a Lei das Festas Clandestinas foi aprovada em 2017 e dificultou a realização de eventos universitários, rolês em barzinhos, casas e repúblicas.

No texto da lei está a exceção para quem pode festejar na cidade. Independentemente da venda de produtos e cobrança de ingressos, estão liberadas “festas para reunião familiar ou de amigos e aquelas com fins assistenciais, folclóricos/culturais, desportivos, religiosos ou filantrópicos, devidamente comprovados”.

Se não cabe nessa lista, a polícia manda todo mundo embora ou entra atirando mesmo.

O discurso que bombou para proibir as festas em Bauru não é muito diferente da conversa que já circulava décadas atrás. “Muitas pessoas não têm tranquilidade no seu sossego, no dia a dia, porque as festas [de jovens] acontecem absurdamente de segunda à domingo”, disse o vereador Benedito Meira (PSB) em entrevista.

O conservadorismo inflamado no período da ditadura militar — aquele mesmo que promoveu a caça aos “barbudos comunistas” — ganhou mais representatividade na política por conta dos últimos resultados eleitorais. Coronéis na Câmara, nos transportes, nos jornais, e seu discurso pela moral e os bons costumes acabam com a diversidade das manifestações culturais e de lazer na cidade.

Jovens passaram a organizar encontros às escondidas e já não é surpresa quando a PM aparece na porta. Ou o rolê acaba, ou o rolê acaba. Para quem não tem condição ou simplesmente prefere não pagar ingresso de balada, a lei praticamente determina que o jeito é ficar quieto.

“Esse lance da polícia foi acontecendo também durante o festival”, lembra Thiago, sobre o Águas Claras em Iacanga. “Teve galera infiltrada, à paisana, e alguns policiais. Nas primeiras edições, eles ficavam ali olhando para todos os lados, tinha gente pelada, gente fumando, mas não faziam nada. Na última já tinha uns policiais com cachorros em cima da galera”.

Na primeira imagem, de 81, um policial acende o cigarro de um músico; nas seguintes, já em 84, “o festival tinha crescido e aí fica meio careta”, comenta Thiago Mattar. O público joga objetos nos policiais, que circulam o local com cães farejadores (Fotos: Irmo Celso/Acervo)

O público dos festivais de música mudou, os preços salgaram, e não é mais todo maluco beleza que pode colar sem gastar muito para ver artistas famosos no palco. “Hoje é uma realidade totalmente diferente, os festivais são a maioria de grandes grupos e conglomerados”, afirma o diretor. “Como Águas Claras, ali, do jeito que dava, daquela maneira mais maluca, com palco construído de madeira, eu acho difícil acontecer de novo. Tudo mudou”,.

Desde o Rock in Rio, que começou em 1985 — dizendo na propaganda que era o primeiro evento do tipo no Brasil, na cara dura, um ano depois da última edição de Iacanga — , grande parte dos eventos musicais acontece nas capitais. Há os que resistem no interior do estado, como o Rock in Rio Pardo e o João Rock. De custo não tão caro quanto um rolê em SP — Lollapalooza e afins — agregam as pessoas da região que querem fazer algo diferente uma vez por ano.

“Águas Claras era bem mais barato, eu fui na primeira edição do Rock in Rio e era caríssimo. Mas era outra pegada, totalmente comercial. Fui pra nunca mais voltar”, pontua Inês, que chegou a ir escondida dos pais para o festival em Iacanga — e lá, ao pé da barraca, esbarrou no irmão que também tinha conseguido dar um perdido na família.

Se fosse para acontecer hoje, o Festival de Águas Claras teria outra cara, sujeito à divulgação de marcas e patrocinadores. Entradas mais caras, mais seguranças para barrar furões, outro festival. Para ter a permissão das autoridades locais e o aval da polícia, o evento teria de se encaixar nos moldes burocráticos.

E nomes como Gilberto Gil já não tocam por menos de 75 reais o ingresso.

“Não daria certo”, afirma a jornalista. “Lá todo mundo estava livre e próximo, foi o maior barato. Hoje seria uma coisa pra vender. Nunca que vão conseguir juntar 70 mil pessoas num lugar, com toda a liberdade, e não sair nenhum problema. Era diferente, tinha uma coisa mais romântica desse estilo de vida paz e amor”.

Caso alguém surgisse por aí querendo resgatar tudo do jeitinho que foi antigamente, o “agrupamento de pessoas” — termo que consta na lei antifestas — , que não é por reunião familiar, nem confraternização de empresa, nem tem cunho religioso, seria enquadrado em terras bauruenses como clandestino.

“É muita coisa que o Brasil quer apagar, e o mais incrível pra mim é que não tem um memorial sobre o festival”, critica o diretor do documentário O Barato de Iacanga. “Aconteceu ali nos últimos dez anos do regime militar, no último suspiro da ditadura, e acabou sendo enterrado junto com ela. Memória é uma coisa que não tem muito valor por aqui”.

Foram quatro edições que movimentaram a região de Bauru e Iacanga décadas atrás; de acordo com Thiago, ainda houve quem tentasse reorganizar um novo Águas Claras, desta vez em Brotas, mas os planos não foram para frente e pararam na captação de recursos (Foto: aguasclarasfestival/Reprodução)

 

Esta é uma reportagem opinativa. A apuração e checagem das informações expressas seguem o rigor jornalístico orientado por uma hipótese elaborada pela repórter.