“O sistema não recupera ninguém”: como é voltar para o mercado de trabalho sendo egresso do sistema penitenciário

Para reeducandos a procura por emprego está relacionada com a conquista da própria liberdade. Dois bauruenses que já estiveram presos contam suas trajetórias na busca pela reinserção no mercado de trabalho

Reportagem publicada em 24 de Abril de 2019

Egressos do sistema penitenciário dizem que falta de atividade e opressão dentro do cárcere são os principais fatores que tornam o local “a escola do crime”. (Foto: Flickr/ Mariele Góes)
Por Paula Bettelli

13,1 milhões é o número de trabalhadores sem emprego no país, segundo pesquisa divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em relação ao primeiro trimestre de 2019. Se a gente colocar na conta a população subutilizada e os desalentados — aqueles que desistiram de procurar emprego por falta de condições emocionais ou financeiras -, temos 32,8 milhões de pessoas sem carteira assinada no país.

Entre elas, estão os egressos do sistema penitenciário que procuram se reinserir no mercado.

João* é músico, saiu do cárcere em 2017. De lá para cá, ele conta que entregou mais de 200 currículos por Bauru e até hoje não conseguiu um emprego. “Se não tem [vaga] para pessoas que nunca foram presas, imagina para mim”, reflete. “A impressão que eu tenho é que não está ao meu alcance, aí eu fico tentando achar motivo. Mas se for buscar com a razão o motivo disso tudo, não é a gente que é culpado”.

O músico, que hoje faz parte da parcela de desalentados, afirma que o preconceito social é a maior barreira enfrentada na procura por vaga no mercado de trabalho. “Muita gente depois que sabe que você é egresso [do sistema penitenciário] muda de ideia. É o preconceito, né. O medo. Por a gente ser egresso, ser preto, ser pobre. Por mais que você tente andar para frente as pessoas querem segurar você no passado”.

Pedro*, skatista que esteve no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Bauru, conseguiu trabalho registrado como atendente de hotel nove anos depois de sua saída. Ele conta que conquistou a vaga através da indicação de um amigo. “Só arruma mesmo se for esse caso”, avalia.

Assim como João, Pedro já tinha entregado currículo em várias empresas. “Minha ficha preenchia todos os requisitos, fazia entrevista, e no final falavam que iam me ligar. Eles vão puxar seu RG, seu CPF e vão ver que você tem antecedente criminal. Tô esperando a ligação até hoje”. Para ele, o contrato no atual emprego aconteceu porque seus patrões não sabem de suas passagens pelo CDP.

Antes de trabalhar no hotel, Pedro era autônomo e afirma que a rotina não era fácil, agora o dia a dia está mais estável. “Você está em um trabalho registrado, você está garantido. Seu salário não é tudo aquilo, mas você sabe que todo mês está ali”.

E o Estado com isso?

Para Marcus Portoni, presidente da Comissão de Assuntos Carcerários da OAB Bauru, os três Centros de Progressão Penitenciária da cidade têm o trabalho como possibilidade. “Tem várias fábricas nos barracões do presídio que se instalam justamente para eles fazerem esses trabalhos. O Estado fornece o espaço e a fábrica monta. Com exceção do CDP, que é detenção provisória”. O advogado pontua alguns dos trabalhos: “costura, agricultura, faxina, cozinha”.

Os ex-reeducandos entrevistados afirmam que dentro das prisões em que estiveram — no período até 2017 — não havia políticas para auxiliá-los no mercado de trabalho depois de libertos, nenhuma atividade profissionalizante ou preparatória.

João foi preso cinco vezes, em presídios diferentes do estado de São Paulo, e Pedro foi detido duas vezes, ambas no Centro de Detenção Provisória de Bauru.

Pedro faz parte da estatística levantada pelo Banco Nacional de Monitoramento de Presos e divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual revela que 65% de pessoas privadas de sua liberdade no Brasil não foram completamente julgadas.

Tanto João, ex-preso, quanto Pedro, ex-detido, analisam a falta do que fazer como o maior perigo dentro das instituições carcerárias. “A cadeia no Brasil serve mais para fazer ladrões do que para ‘regenerá-los’. A pessoa entra numa instituição para pagar pelo que fez e a intenção é que a pessoa se recupere, se reintegre na sociedade. Só que convivendo dia a dia com extorsão, vivendo de forma desumana, sob opressão, no meio da ladroagem do mesmo jeito, ela não vê exemplos”, aponta João. E completa, referindo a si mesmo: “A pessoa vai sair, não tem um emprego, no meu caso eu não tenho nem família, não tenho para onde voltar, vou fazer o que? Eu pensei assim por muitos anos”.

Com trajetória diferente, Pedro conta que o apoio de sua mãe e família foi fundamental para recuperar forças e se reintegrar, tanto na sociedade quanto no mercado de trabalho. Comenta, ainda, que a maior parte dos detidos que viu saírem e se reinserirem o fizeram através de ajuda externa.

“Se não fosse minha mãe me ajudando nisso, ou eu já estaria lá de volta preso ou eu já estaria morto. As coisas mais pesadas que eu ouvi e senti foi lá, não na rua por experiência própria”. E conclui: “O sistema não recupera ninguém, essa é a verdade”.

Lucro

Para Pedro, a questão do desemprego de egressos está diretamente relacionada com a superlotação do sistema carcerário — a qual ele diz alimentar um ciclo de violência. “Na real é o próprio sistema que cria. Eu conheço gente que nem era criminosa e se tornou criminosa”, lembra. “Uma cela que é para doze detentos tem trinta ou até mais de trinta. E aí não tem nada de bom né. Não vai ter um preso lá com uma mentalidade boa, porque o ambiente é pesado. Só papo de crime”.

Dados coletados pela Secretaria de Administração Penitenciária mostram que, em Bauru, os Centros de Progressão Penitenciária I, II e III somados, têm 981 presos a mais que sua capacidade, o que representa uma defasagem de 21,6%. No Centro de Detenção Provisória a porcentagem de excedentes sobe para 44,3%.

O skatista acredita que se aumentasse o investimento em saúde pública, a quantidade de presos diminuiria bastante. “Dos muitos que eu vi, bem poucos eram bandidos. A maioria é viciado em droga. Aí você vê que é um problema de saúde pública mesmo, porque superlota a população carcerária, tem ser humano literalmente vazando pela grade, e não tem tratamento. Os caras que estão na rua estão ao léu, jogados. E a partir do momento que o cara tirou um matinho da calçada aqui, pediu ali e não conseguiu uma grana para suprir o vício dele, ele vai roubar”, reforça.

Tanto Pedro quanto João criticaram a forma que o sistema funciona, segundo eles visando lucro através do controle dos corpos de presos e detidos. “É mais lucrativo fazer presídios do que escolas”, aponta João. Ele relata que, por conta das condições oferecidas nas penitenciárias — banho gelado, comida de baixa qualidade, falta de equipamentos — o custo de um reeducando é, na prática, R$ 600. “Para o governo, é R$ 2 mil cada preso; então dá lucro para eles, é uma máquina”

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a média de custo por preso no país é de R$2.400.

Para quem já esteve preso, a dificuldade em encontrar trabalho é aumentada pelo preconceito social. (Foto: Flickr/ Daniel Carrera)

Sem CLT

Em julho do ano passado foi assinado o Decreto nº 9.450, pelos então ministros da Segurança Pública, Raul Jungmann, e dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, que discorre sobre a Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional.

A partir dela, o regime de trabalho dos presos não é regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e sim pela Lei de Execuções Penais (LEP), que prevê uma remuneração de ao menos três quartos do salário mínimo — um piso de cerca de R$ 748,50.

Por meio do convênio, regulamentado pela LEP, as empresas ficam isentas de encargos trabalhistas, como FGTS, 13º salário e férias, o que representa uma redução de aproximadamente 40% na despesa com o funcionário reeducando.

‘Não é o que eu sou’

Pedro lembra o dia em que saiu do CDP. Diz que naquele momento tudo o que queria era comer aquilo que tinha ficado na vontade por tantos meses. Mas depois de satisfazer o desejo, a sensação de liberdade foi substituída pela realidade social oferecida. “Depois você fica mal visto, as pessoas não querem ter proximidade. Você meio que se sente envergonhado, eu não gosto dessa parte da minha vida. Não é o que eu sou”.

João, mesmo sem conseguir emprego formal, afirma ser grato por aquilo que tem. “Eu ainda tenho disposição de sair todo dia da minha casa para ir parar em um cruzamento e cuidar de um carro. Esses dois anos que eu estou egresso estou bem. Estou tranquilo, graças a Deus”.

O músico começou a estudar teclado com oito anos, e aos 10 iniciou os trabalhos com shows. “Em barzinhos, choperias, universidades”. Conta que sabe tocar 16 instrumentos no total, e que o maior motivo de procurar trabalho registrado é voltar para a música. “Só está me faltando o que? A segurança de um emprego registrado. Isso com certeza iria me ajudar bastante para conseguir montar um som bacana, para poder comprar um instrumento legal. Me inserir novamente na minha área de trabalho. Eu vivo de música, não sei fazer outra coisa”, afirma.

Pedro diz ter vontades, mas não as chama de planos. Comenta sobre o sonho de abrir um bar com uma mini rampa e fortalecer a cena do skate na cidade. “Dá pra acontecer, é que é difícil. A gente se mata de trabalhar e o pouco que a gente ganha mal dá para as necessidades básicas. Quando arruma um trampo é sempre uns trampos ruinzinhos, mesmo que você tenha qualificação”.

Em 31 de dezembro, o presidente Jair Bolsonaro, em seu primeiro discurso no cargo, afirmou que o Brasil é um país com direitos em excesso — se referindo aos direitos trabalhistas. “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, declarou Bolsonaro.

No sábado, 22, quatro meses depois, em entrevista ao canal Record, o presidente criticou a metodologia de cálculo de desemprego adotada pelo IBGE, alegando que a pesquisa aumenta a real quantidade de desempregados no país, e não apresenta propostas de como resolver a situação.

Para João, as precárias condições de vida para a maior parte da população brasileira dificultam o desenvolvimento do país: “O brasileiro nasce num país sem muita expectativa, sem uma boa educação pública, sem um bom emprego para os seus pais, sem um ambiente tranquilo na sua casa. Dificilmente a pessoa sorri com a barriga vazia. A pessoa ir atrás de um livro com a barriga vazia? Não vai. Então eu acho que tudo tinha que começar com a educação das nossas crianças”, sustenta.

“A gente precisa educar nossos jovens para não precisar reeducar os nossos adultos, entendeu? As pessoas precisam de ajuda, mas somos todos órfãos do Poder Público”. Ele diz que é o que queria para si: ter crescido com expectativa de vida.

Até o fechamento desta reportagem a Secretaria de Administração Penitenciária não respondeu aos e-mails informando se há dados que estimem a quantidade de ex-presidiários empregados e procurando empregos, nem comentou se existem políticas na cidade que reconheçam e lidem com a questão do desemprego de egressos.