“Me deixa brincar!”: como um livro infantil quase foi vetado nas bibliotecas públicas de Bauru
De autoria do Pomar Coletivo, história e ilustrações envolvem crianças, professores e responsáveis para falar sobre diversidade e o respeito às diferenças
Publicado em 22 de maio de 2019
Por Bibiana Garrido
Um grupo de crianças se diverte no quintal com seus brinquedos esparramados pela grama, quando um deles, menino, resolve brincar com uma boneca. Assim começa o livro “Me Deixa Brincar!”, de autoria e ilustrações por Maria Gabriela Gama, Carolina Batista, Karen Uehara e Luiz Gandolpho. Os estudantes do curso de Design da Unesp Bauru resolveram levar para fora da sala de aula o que seria apenas mais uma tarefa da faculdade. Surgiu o Pomar Coletivo.
“Chegamos ao projeto de um livro pra mostrar que ser diferente é algo bom”, conta Maria Gabriela. “Pensamos na história, nos personagens, todo mundo junto. Entregamos o projeto e um professor sugeriu que a gente participasse de uma lei de incentivo. Acabamos ganhando o edital do Proac”. Assim como o Jornal Dois, o Pomar Coletivo foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
O fomento serviu para publicar o livro e organizar as atividades de contação de histórias nas escolas e bibliotecas públicas da cidade. Lançado em 2018 no Centro de Artes e Esportes Unificados de Bauru – CEU das Artes, “Me deixa brincar!” já foi entregue para centenas de crianças bauruenses. Isso porque o Pomar presenteia as e os participantes com um exemplar do livro. Em cada local participante, são realizadas oficinas de desenho e recreação.
Entre os espaços que já receberam as apresentações, estão o Seara de Luz, do CEAC – Centro Espírita Amor e Caridade – em parceria com a Secretaria Municipal do Bem-estar Social, no Ferradura Mirim; a EMEF Dirce Boemer Guedes de Azevedo, no Tangarás/Ferradura Mirim; a Biblioteca Ramal Núcleo Geisel; a EMEF Lydia Alexandrina Nava Cury, também no Geisel; e a Biblioteca Ramal Vila Falcão “Maria Raquel Zanni Arruda”.
Junto com Maria Gabriela, quem hoje está tocando o Pomar é o designer Paulo Soares. A organização recebe participantes voluntários para ajudar a cuidar das crianças nos dias de evento. “A ideia é organizar eventos nas bibliotecas de maneira aberta para quem quiser ir. Temos percebido um resultado positivo nas atividades e queremos levar a contação de histórias para as bibliotecas ramais restantes, e também as escolas que se interessarem”, comenta ele.
Na história do livro, depois de demonstrar interesse em brincar com a boneca, o menino escuta de um amiguinho: “Boneca é coisa de menina. Escolhe outra coisa!”. Um macaco, o Caco, aparece e foge com alguns brinquedos, inclusive a boneca. A narrativa segue como um conto de fadas no meio do jardim, no qual as crianças conhecem seres mágicos em busca dos brinquedos perdidos.
Um mago da floresta veste roupas coloridas e ensina que todo mundo pode vestir o que faz sentir bem. “O importante é se divertir!”, diz o personagem na história. Uma capitã de navio pirata e suas aliadas sereias guerreiras do mar falam sobre as mulheres em posição de liderança. Xerifes animais – ou animais xerifes – protegem uma cidade na qual vivem criaturas de todas as raças e todas as cores. “Nessa cidade existem famílias de todos os tipos e tamanhos, mas ainda assim são famílias muito felizes”, comenta um dos xerifes.
A jornada das crianças continua até que encontram Caco com os brinquedos perdidos. E todos aprenderam a lição de que cada um pode brincar com o brinquedo que quiser, até mesmo se for de boneca.
“São metáforas de ensinamento pras crianças. A ideia de levar o livro com a contação de histórias nas bibliotecas é fazer esse debate: o que é a diversidade que a gente vive hoje?”, reflete Maria Gabriela. Ela e Paulo contam que os pequenos frequentadores das atividades do Pomar Coletivo se enxergam na história do livro porque eles mesmos têm famílias de constituição diferente, gostos, cores e tamanhos diferentes. “As alunas e alunos entenderam a importância da oficina, do respeito com as pessoas”, completa Paulo.
Nem todas as famílias no entorno das bibliotecas ramais receberam bem a conversa sobre diversidade no brincar das crianças. Uma contação de história estava prevista em abril para a Biblioteca Ramal Mary Dota “Antonio Silveira”, mas não aconteceu porque os responsáveis desaprovaram “Me deixa brincar!”. Falar sobre meninos brincando de boneca e homens com roupas coloridas incomodou os moradores do bairro.
“Nós estamos perdendo a oportunidade de debater um tema sério, de respeito à diversidade”, aponta José Luiz Coutinho, chefe de Seção de Extensão da Divisão de Bibliotecas da Secretaria Municipal de Cultura de Bauru.
E mais do que isso, tem uma coisa muito grande que é a ignorância das pessoas, falando que o livro não tem conteúdo”. Zé Luiz, como é conhecido, é responsável por levar projetos culturais e educativos às bibliotecas.
A Secretaria Municipal de Cultura autorizou todas as atividades do Pomar Coletivo nas bibliotecas ramais. Quando chegou a vez da biblioteca do Mary Dota, o projeto foi suspenso por conta da reação dos pais.
Além das bibliotecas, “Me deixa brincar!” foi apresentado em escolas, e para Rick Ferreira, secretário de Cultura de Bauru, esse teria sido o momento em que pais começaram a prestar atenção no material dos filhos.
Zé Luiz conta que o livro passou a ser procurado, tanto pelo interesse que o cancelamento da atividade na biblioteca do Mary Dota gerou, quanto pelo receio de outros responsáveis como o pai que levou a história à Câmara. “Tinha gente ligando pra saber se tava na biblioteca, se tava na escola. E onde é que eles tavam no lançamento do livro no CEU? Eles tavam fazendo o quê pras crianças da periferia?”, questiona.
O secretário de Cultura entregou “Me deixa brincar!” nas mãos do prefeito Clodoaldo Gazzetta para tentar resolver a situação. Em entrevista ao Jornal Dois, Rick conta que as duas autoridades leram o livro em conjunto e constataram que as atividades poderiam ser retomadas.
“Alguma pessoas chegaram até mim pra falar que o conteúdo era de apologia à homossexualidade, de ideologia de gênero. É lamentável que esse conteúdo não possa ser apresentado. Eu li o livro quatro vezes e não tem nada disso”, opina o secretário.
Depois da movimentação no poder público e nas bibliotecas, o Pomar Coletivo começa aos poucos a dar seguimento ao trabalho. “Ninguém [da organização] queria que a gente cancelasse na biblioteca do Mary Dota”, conta Maria Gabriela, “todos foram contra fazer isso, mas achamos melhor esperar resolver. Nós temos o aval do Proac para cumprir com nosso projeto. A atividade lá foi suspensa, mas vai acontecer”.
Entre os próximos passos do grupo está marcar uma nova data para a atividade que havia sido vetada. Provavelmente, a ser realizada no mês de junho.
“Nosso objetivo é atender a todas as bibliotecas ramais de Bauru, e quem sabe expandir pra mais escolas públicas também”, projeta Paulo. “O que precisamos é de voluntários. A gente se organiza em comissões de recreação, organização, comunicação, monitoria e a contação de histórias. Cada apresentação são várias crianças pra cuidar, além de todo o trabalho por traz disso, até chegar os dias de evento. E claro, qualquer pessoa pode participar!”, convida o organizador.
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