Luiz Vitor Martinello: poesia bauruense que foi pra fogueira
A história de um poeta marginal que escreve por entre os sinos de igreja e as tentações dos shopping centers
Publicado em 04 de novembro de 2019
Por Rebeca Almeida, em colaboração ao Jornal Dois
Luiz Vitor Martinello apareceu pra mim de forma inesperada. Numa breve folheada em um de seus livros, suas poesias me despertaram risos e expressões de encanto de quem lê um bom poema. Me vi fisgada pelo poder repentino de suas palavras dispostas, pela crítica contida de quem não guarda segredo, mas o revela num alívio suave de uma poesia que aparece, traça seu caminho e finda. Seus versos são ora curtos, ora longos, mas sempre certeiros, completos. Mais que apenas poesia, eu encontrei um poeta que viveu dentro do movimento poético bauruense em décadas passadas -numa história que revela muito sobre a própria história cultural de Bauru.
Martinello nasceu em Adamantina (SP), estudou em Bauru, Itajubá (MG), Pirassununga (SP), e cursou filosofia e letras. Deu aulas em escolas de Bauru e região e possui 6 livros de poesia, 3 livros infantis – tema mais explorado por ele atualmente- além de ter participado de uma antologia e duas coletâneas. Seus poemas possuem a forma do poema-piada, um tipo de poesia curta e cômica que surgiu após o modernismo. Agora, seus textos ganham fôlego com a compilação de obras antigas e inéditas, em uma edição denominada “S’obras Poéticas – poesia revisitada”, que será lançada no dia 5 de novembro.
Como se faz um poeta
A história de Vitor se funde com a história cultural de Bauru a partir do fim da década de 1970. Mas, para contar a história de um poeta, o ponto de partida é quando pessoa e poesia se encontram. No caso de Vitor, isso aconteceu dentro de uma sala de aula, no Seminário em que estudou em Pirassununga. O poeta, hoje com 71 anos, teve aula com o Padre Humberto Campobianco, que o influenciou a ler e recitar poesias, pois era um de seus métodos de ensino de literatura e gramática. “Nós devemos muito ao Padre Humberto, a maior parte dos alunos da minha sala se tornaram escritores”, frisa Vitor.
Após cursar filosofia na Unicamp (SP), Vitor voltou para Bauru, onde vivia sua família, e começou a dar aulas em escolas e cursinhos. Inevitavelmente, adotou a postura do padre que lhe habituou à poesia: que o professor recite poesia e que os alunos façam o mesmo! Porém, para estar na sala de aula Martinello teve que derrubar algumas barreiras.
Estamos falando de um professor de filosofia em Bauru na década de 70, época que o Brasil vivia uma plena e nefasta ditadura militar: não havia lugar para as aulas de filosofia. O professor foi, então, reivindicar seu espaço e sustento: “eu fui na Delegacia de Ensino de Bauru, que na época ficava na Duque de Caxias. Briguei mesmo. Disse que ninguém mais podia pensar nesse país! Aí um velhinho, no canto da sala, que fumava um cigarro, disse: O que foi menino? Eu repeti toda a minha revolta e ele gostou. Me arrumou aulas de filosofia e história pra ministrar”, rememora o poeta.
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Depois que o misterioso velhinho lhe deu trabalho, Martinello começou então sua carreira de professor nas escolas de Bauru, ministrando filosofia na E.E Cristino Cabral, hoje localizada na rua Gérson França. “Netinho”, como era chamado pelos professores mais velhos da escola, falava sobre Platão, Sartre, Heidegger, Kant, Descartes. Nesse momento, o poeta bauruense já tinha uma série de poemas escritos na época em que estava estudando para ser padre. Em Bauru, ele continua escrevendo, com outros estímulos criativos.
A Batista de Carvalho
A escrita de Vitor segue o estilo da Poesia Marginal – chamada também de Geração Mimeógrafo. A semelhança de estilo, no entanto, não se limita apenas ao modo de escrever, que, no caso de Vitor me fez até confundí-lo com Paulo Leminski. Os poetas bauruenses, assim como Hélio Oiticia e Chacal, realizavam performances, jogavam livros e poesia do alto do prédio, como um gesto de liberdade além de as colocarem no chão do Calçadão da Batista para serem lidas ao acaso, pisadas e questionadas.
Banca do poeta: Itinerante, a banca percorria o centro da cidade com poesias. Imagem extraída do livro “Pirataria poética” (disponível na Biblioteca Municipal). O título nomeia também um grupo de poesia da década de 80 em Bauru.
A avenida Batista de Carvalho está no âmago desta história. Foi lá que aconteceu o evento “Onde os poetas se encontram”, numa manhã de sábado de 1979. Organizado por Celina Neves, professora e incentivadora cultural de Bauru, o encontro de poetas foi uma das primeiras interdições da avenida -já que antes os carros ali circulavam livremente. Lá, os poetas se reuniram expondo suas obras, autografando livros e declamando poemas.
Para a classe artística da cidade, que incluía escritores, músicos, poetas e atores, a poesia não era apenas o verso, mas uma porta de entrada para trocas intelectuais, para a vida social e emocional. Nesse sentido, a presença da poesia no centro comercial de Bauru foi se tornando mais frequente e o grupo se destacou por ocupar a Batista todo sábado de manhã: O “Pirataria Poética”, composto por João Nicodemos, José Waldery e Jony Rosa saía pela cidade com a Banca do Poeta, uma barraca de feira adaptada para a exposição de poesias. O trio tinha uma visão de uma poesia fragmentária, em que os elementos cotidianos, ideológicos, eram ingredientes usados “para desmistificação, construção e socialização da arte poética”, como afirma Jony num manifesto do livro “Piratatia Poética”.
Martinello conta que conheceu o poeta Nicodemos, do Pirataria Poética, no Sesc em 1980. A semelhança entre os dois foi logo descoberta por um comentário da filha de Vitor: “Pai, tem um cara que escreve poesias que achei que fosse você”. Inconfundivelmente, a pessoa era o Nicodemos.
O que o poeta escreveu
O primeiro livro lançado por Martinello em Bauru foi “Mãos Nos Bolsos” (1978). A poesia que nomeia a obra fala sobre individualismo de pessoas fechadas, que se negam e se omitem frente a impasses. A maioria dos poemas dessa obra são curtos e retratam temas como família, relacionamentos, vida urbana e cotidianos. A influência religiosa permeia o livro, pois os poemas foram escritos quando ele, ainda seminarista, tinha mais contato com os temas sagrados.
Em uma análise de “Mãos nos bolsos” feita em 1980 por Adazil Corrêa Santos, a poesia de Vitor é identificada como moderna, devido ao abandono de sinais de pontuação, frases rápidas, curtas e objetivas, além da linguagem substantiva: “O poeta usa A palavra, não usa DA palavra. O verso (?) e a estrofe (?) são apenas disposição disposição tipográfica para os olhos”, interpreta Adazil.
Nessa época já existia em Bauru um grupo de poesia chamado “Apenas” formado por Luiz Vitor Martinello, Raul Aparecido Paula, Alberto Sérgio Sanches, Luiz Carlos de Oliveira e Rubens Gonçalves Paula, que fazia as ilustrações. O grupo foi o responsável por aumentar a divulgação da poesia na cidade, e ganhou destaque nos jornais em Bauru. Vitor levava os integrantes do Apenas e também do Pirataria Poética para realizar performances nas escolas em que dava aulas, gesto que angariava interesse dos alunos e aumentava e divulgação cultural local.
A segunda materialização de sua obra foi “Os anjos mascam chiclete” (1983). O título, sugestivo, foi alterado: forças maiores fizeram que, ao invés de servir coca-cola aos anjos, eles tivessem chicletes nas bocas. Nessa obra, a crítica ao consumismo – um dos temas mais colocados em sua obra- se torna mais concreta e sagaz. Martinello aborda desencontros, o existencialismo, além de uma irreverente sensualidade que se mescla à negação do romantismo.
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A concepção sobre o consumismo diz respeito ao que Vitor esclarece, em uma reportagem ao Jornal da Cidade em 1983, como uma crítica à sacralização do consumismo. O ser humano moderno deixou de divinizar a natureza e se voltou para “as tentações feéricas dos shopping centers”. A crítica, irônica, aproveita para justamente, desmistificar a relação entre o homem e o vício do consumismo.
Martinello lançou também os livros de poesia “Me apaixonei por mim mesmo mas não fui correspondido” (1984), “Lixeratura” (1993), “Gosto dos dias de muito sol só pra ficar na sombra”(2010) , “Jogando poesia fora” (2016), “Poemas da quase religiosidade” (2010) e “Para o sol dia de chuva é feriado (2016)”
Para um poema blasfemo, a fogueira da purificação
Mas há quem não entenda a poesia por trás do versos. O poema “Final feliz, Natal”, que pertence à obra “Os Anjos Mascam Chiclete” foi inserido em um livro didático, intitulado “Reflexão e Ação”, de Marilda Prates, o que foi gerou uma polêmica, impulsionada por um poderoso e desconfortável incômodo na classe conservadora da época.
Numa reação não muito diferente de algo que poderia ocorrer em 2019, um vereador de São Carlos (SP), chamado Paulo Duarte (PMDB), se espantou com o que dizia o poema e buscou uma ofensiva: anular o ato que liberava o uso do livro nas escolas. O motivo? O poema foi considerado contrário aos valores cristãos. Como se não bastasse, o bispo Dom Constantino Amstalden, vereadores da cidade e mais forças conservadoras pretendiam queimar o livro em praça pública, na “fogueira da purificação”.
O jornal Folha de São Paulo reportou o enfrentamento à censura em 9 de setembro de 1985, quando um dossiê seria entregue ao então Secretário de Educação do Estado, Paulo Renato Costa Souza. Segundo o jornal, uma comissão de dez pessoas, entre elas professores de português, mães de alunos, um diretor de escola da rede estadual e o vereador Azuaite Martins França (PMDB), lideravam um movimento em defesa do livro em São Carlos (SP), cidade em que a polêmica teve início.
Em 11 de setembro daquele ano, o jornal o Estado de São Paulo falava com Vitor sobre a polêmica: “Em Bauru, o professor de Português Luiz Vitor Martinello pediu ontem que ‘as pessoas deixem de analisar o meu trabalho através de uma visão sensacionalista, mas procurem nele ver a proposta principal, que é a de abordar o homem atual, mostrando simbolicamente o seu sofrimento […]”.
No mesmo dia, Mariza B. Teixeira Mendes escrevia na coluna Tribuna do Leitor, do Jornal da Cidade (Bauru): “Em que época estamos vivendo? Na década de 1920 ou 1930, quando a igreja condenava obras literárias consideradas “atentado à moral cristã”, e os livros de Monteiro Lobato eram queimados em praça pública e proibidos em colégios católicos?”.
Veja mais sobre a polêmica nos comentários do próprio acusado sobre esse retorno à idade média na década de 1980:
As s’obras poéticas
Agora, toda a obra do poeta blasfemo está reunida no mais novo lançamento, intitulado “S’obras poética – poesia revisitada”, financiado pelo Programa de Estímulo à Cultura (PEC), da Secretaria de Cultura de Bauru, pelo edital 2017. O evento será no Centro Cultural “Carlos Fernandes Paiva”, às 19h28 do dia 5 de novembro de 2019.
O livro foi editado por Tiago Augusto Corrêa graduado em letras pela Unesp e pós-graduado em Gestão cultural pelo Centro Universitário Senac Santo Amaro. Ele conheceu Martinello quando foi seu aluno no cursinho “D Incao”. Em 2019, o projeto se desenvolveu pelo Programa de Estímulo à Cultura de Bauru. O objetivo era tornar a obra de Vitor mais conhecida, principalmente pelo público contemporâneo da cidade.
Além dos poemas de Vitor, o livro contém ilustrações de quatro artistas bauruenses: Ana Zequin, Caroline Gomes, Greifo e Mosca.
Tiago nos conta mais sobre “S’obras poéticas – poesia revisitada”:
Neste ano, a obra de Luiz Vitor Martinello foi parar nas redes sociais. Semanalmente, Vitor divulga um vídeo declamando um poema na conta @lvitormartinello no Instagram.
Serviço
Lançamento do livro “S’obras poéticas”
Dia 5 de novembro, às 19h28, no Centro Cultural “Carlos Fernandes Paiva”, localizado na Av. Nações Unidas, 8-9.
Acompanhe o poeta também pelo facebook https://www.facebook.com/lvitormartinello/
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