Gritos de Outono: Protesto Estudantil na Escola Estadual Ernesto Monte

Entenda o caso de racismo que levou estudantes a passarem uma manhã em protesto em frente à unidade educacional

Reportagem publicada em 23 de março de 2019

Dezenas de alunos se reuniram na manhã do dia 21 de março em protesto a postura da coordenação em relação a diversos casos de racismo que teriam acontecido na unidade (Imagem: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)
Por Letícia Sartori

Amanhã da última quinta feira, 21 de março, amanheceu tomada por mudanças tanto pela troca das estações quanto no dia a dia da Escola Estadual Ernesto Monte. Mesmo com o frio do outono dando as caras pela primeira vez, estudantes se reuniram a partir das 7h da manhã em protesto a diversas situações de racismo que aconteceram na escola desde o começo do ano.

Sob gritos de “Fora o Racismo”, “Marielle Presente”, “Fora a homofobia” e outros brados, estudantes transformaram uma manhã rotineira na escola. A estudante Géssica Santos, que cursa o 3º ano do ensino médio na unidade, coloca que: “Estamos aqui nos manifestando por conta de vários casos de racismo que aconteceram na escola. Não só de racismo, mas outros tipos de preconceito também que vem acontecendo com muita frequência ao longo dos anos”.

A estudante Géssica Santos membro fundador da Frente Negra da escola Ernesto Monte no ano de 2018 (Imagem: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)

Géssica define a condição histórica dos alunos da escola: “A vontade de nos manifestarmos existe há muitos anos. Sempre teve a vontade, sempre vieram denúncias e relatos. Só que teve um caso em específico que aconteceu semana passada com uma amiga nossa. E com várias testemunhas, foi no meio do período de aula, dentro da sala, todo mundo resolveu se mobilizar. Foi um caso de racismo muito claro na hora. Aí a partir desse caso nós resolvemos nos mobilizar, usar esse caso como a base e juntar vários outros relatos pra fazer esse protesto”.

A última gota

Segundo os estudantes o estopim para a manifestação estudantil foi a declaração racista de uma professora da unidade. Os alunos afirmam que após retirar uma aluna de sala de aula a profissional teria declarado aos outros estudantes que “alunas como essa daí é o que causam o massacre como o que aconteceu em Suzano”. No começo do mês de março dois atiradores assassinaram cinco estudantes e duas funcionárias de uma escola estadual na cidade de Suzano, na região metropolitana de São Paulo, à 373 km de Bauru.

Indignados com o comportamento da professora, alunos de diversas salas do ensino médio da escola organizaram um abaixo-assinado que foi entregue à direção da escola. A falta de resposta da instituição aos alegados casos de racismo levaram à organização do protesto do dia 21 de março.

A família da adolescente que acusa a professora,, uma estudante de 15 anos, entrou com boletim de ocorrência contra a professora sob a acusação de injúria. Se comprovada a acusação a professora pode pegar de um a seis meses de detenção — ou então, pode haver acordo mediante pagamento de multa. O crime de injúria consiste na agressão verbal — xingar, ofender ou insultar de forma grave — a uma pessoa ofendendo a sua dignidade.

Contexto Brasileiro

O país é um país onde a maior parte da população, cerca de 54%, se considera negra ou não branca, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E dentro de um sistema educacional público onde a taxa de alunos negros é maior do que a de brancos, da pré-escola ao ensino médio, seria de se estranhar que alunos de uma escola pública enfrentasse ataques racistas cotidianamente.

 
Dados do Censo de Educação Básica 2018, produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

No entanto mais do que olharmos para os dados brutos a respeito da realidade brasileira é preciso interpretar a influência que 400 anos de sistema escravocrata trouxe para o país. E consequentemente a falta de políticas de reparação econômica e social para a comunidade negra nos anos seguintes.

O estudo Mapa da Violência 2015— Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasilproduzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais aponta que no que diz respeito à taxa de assassinatos de jovens no país, jovens negros entre 16 e 17 anos tem 173% maior possibilidade de serem assassinados do que jovens brancos na mesma faixa etária. E que em 10 anos a taxa de homicídios de mulheres negras aumentou em 15,4%

O caso que motivou a manifestação na Escola Estadual Ernesto Monte não está isolado na realidade contemporânea. A sociedade brasileira é racista. Lidar com este fato e lutar para transformá-lo é uma necessidade da população brasileira e uma dívida histórica que a população branca tem com a comunidade negra.

Essa transformação em Bauru, no entanto, veio através das vozes de diversos adolescentes que tomaram as rédeas da situação e se posicionaram diante da omissão da instituição.

A construção

Em 2018 os próprios alunos organizaram uma frente negra dentro da escola, fruto de um projeto do Dia da Consciência Negra. Com o tempo a frente se expandiu e organizou discussões sobre temas raciais com alunos de 14 e 15 anos da unidade.

Segundo Géssica, a última integrante da frente que ainda frequenta a escola, a organização “teve bastante impacto porque todo mundo reconheceu que o racismo é uma coisa que tem que ser discutida e debatida. Aí esse ano, nenhuma situação de racismo nós estamos achando normal ou pensando ‘ah, isso passa’, não. A gente resolveu realmente se mobilizar, não deixar mais essas situações passarem em branco”.

A presença de membros do Conselho da Comunidade Negra em palestras e oficinas na escola contribui para o aprofundamento do debate racial na escola. Greice Luiz, presidente do Conselho fala sobre debates abertos à comunidade que aconteceram no Ernesto Monte e em outras unidades de ensino de Bauru. Falamos “Sobre a construção da história do Brasil, intolerância religiosa, discriminação, preconceito e oficinas de turbantes. Mas a gestão, seja direção, coordenação ou professores, eles te convidam no 13 de maio e 20 de novembro — nas datas comemorativas. Pra eles ser negro é apenas isso, nesses dias”.

Maisa Crespa e Greice Luiz são membros do Conselho da Comunidade Negra de Bauru pelo biênio de 2018 a 2020 (IMAGEM: Letícia Sartori/JORNAL DOIS)

O trabalho do conselho dá frutos então pela ação dos próprios estudantes. “As palestras que acontecem nessa escola sobre racismo, sobre luta, pra direção pode não ter significado nada, mas pros alunos sim”. Coloca Greice Luiz: “Os alunos acabaram assimilando porque quando você fala sobre racismo não é apresentar slide e deixar. Mas apresentar o nosso histórico, o nosso cotidiano. Chegar no aluno, perto deles e falar ‘Olha, eu como mulher preta já sofri racismo por conta disso, disso e disso’. E aí eles se reconhecem vê o seu semelhante que também está denunciando”.

Duas representantes do conselho, Greice Luiz e Maísa Crespa estiveram presentes durante o ato acompanhando, sem interferir, as ações dos estudantes. O Conselho da Comunidade Negra de bauru é um órgão ligado à Secretaria de Cultura Municipal “que tem como foco orientar as pessoas que sofrem a violência do racismo, auxiliar as pessoas. Esse é um dos nossos papéis, chegar nesses alunos e apresentar pra eles a realidade que o conselho existe e que qualquer tipo de violência que eles sofram, seja na escola, no trabalho, no dia a dia; nós estamos aqui para orientar eles sobre como deve ser feita a denúncia, etc” explica Greice Luiz. E pontua o respeito à atuação dos estudantes: “No caso, como os alunos no Ernesto nos procuraram e eles são menores de idade, nós não podemos construir o ato junto com eles. Então eles mesmos se organizaram, criaram os cartazes, os gritos de guerra e isso mostra como eles são independentes”.

Repercussão e próximas ações

Segundo Géssica Santos a experiência de estar em um protesto “às vezes dá um pouco de medo porque nós somos jovens, e nós temos uma base, mas são experiências próprias sendo compartilhadas aqui então dá medo, dá receio. Mas é muito emocionante ver que várias pessoas estão apoiando a gente. Tanto de dentro como de fora da escola estão indignadas com a situação e resolvendo se manifestar”.

A estudante afirma que a comunidade acadêmica não botou muita fé na ação dos estudantes até os encontrarem com cartazes na quinta-feira de manhã. “Vários professores apoiam a gente, mas não participam por medo de serem prejudicados. Muita gente gostou e apoiou, mas pouca gente veio porque as pessoas tem medo de tocar nesse assunto, tem medo de botar a cara à tapa. Mas muita gente ficou gritando da janela da sala pra gente”.

Maísa Crespa, membro do Conselho da Comunidade Negra de Bauru, que esteve presente no protesto coloca que para ela a manifestação “é de extrema importância” e “um marco pra essa cidade”. E completa: “Por muitos anos, não só esses estudantes que estão hoje aqui estudando nessa escola; mas vários alunos sofreram racismo durante seus anos de estudo e sofrem calados. E não conseguiam se mobilizar porque não tinham voz pra denunciar um caso como esse”. E completa “Então é um marco, chega a emocionar a gente ver os jovens nessa idade já se mobilizando e entendendo que isso aí não está certo”.

Sobre o futuro, Géssica pontua: “O que a gente quer é que a nossa ação cause efeito nas outras escolas. Que alunos de outras escolas não fiquem calados e se manifestem junto com a gente. O Ernesto Monte é uma escola de referência na cidade, o pessoal de Bauru não saber o que tá acontecendo isso é muito grave. Então que as pessoas venham e tomem uma posição sobre isso”.

Os impactos do protesto já foram sentidos em plena quinta-feira por quem presenciou o momento. “Eu estou me sentindo representada pelos alunos”, afirma Maisa. “Eu tenho 29 anos e quando eu estava na escola também passei por situações de racismo, mas nunca tive meios e ajuda pra entender que isso era racismo e que era errado.” E declara “Me sinto representada por mim na época da escola, pelos jovens que estão aqui hoje e pelos que vão vir. Eu tenho sobrinhos, vou ter filhos e o que vai acontecer no futuro?” Falando sobre o que pode acontecer Maísa coloca “Futuramente pode ser um filho meu passando por isso nessa ou em qualquer outra escola. Eles (os professores e a direção) precisam aprender que tá errado que não podem fazer isso”.