Galeria a céu aberto: nas calçadas de Bauru, artistas de rua encantam a rotina da cidade
No calçadão, nas ruas e avenidas, artistas de rua se espalham pela cidade e trazem a possibilidade de contemplação no meio da correria do dia a dia. Mas a rotina que eles enfrentam também não é nada fácil
Reportagem publicada em 12 de fevereiro de 2019
Por Paula Bettelli
“A arte é liberdade, se você não tiver liberdade para você criar, para você tentar, de quê adianta?”, é o que questiona o caricaturista Greifo ao ser perguntado sobre a decisão de apresentar sua arte na rua, rejeitando a ideia de limitar seu trabalho às quatro paredes das galerias.
Greifo expõe suas ilustrações diariamente no calçadão do centro de Bauru e aos domingos na feira do rolo — são caricaturas e também desenhos realistas que compõem seu portfólio. Apresenta sua arte na rua por amor, mas não nega que do outro lado da balança a falta de estabilidade salarial pesa bastante. “Você acha que eu não gostaria de estar em um escritório agora, comandando o pouco que conheço?”. No final do dia, ele diz, a possibilidade de ser seu próprio chefe e trabalhar com o que gosta o faz permanecer com sua apresentação na rua. “Um banquinho, um lápis e um papel e eu sigo a vida. Eu tenho um ideal, então eu quero assim”.
Na mesma quadra que Greifo se instala no calçadão, bem à sua frente, o artista visual Décio Alexandre expõe suas pinturas e seus quadros de areia. Pinta paisagens diversas, que concebe misturando imaginação e sua bagagem de memórias. Por não possuir materiais, o artista se organiza com o que tem: faz suas criações em azulejos, pratos de papel e telas de madeira diretamente com os dedos, sem pincel.
Décio começou a pintar após sofrer um acidente de trabalho e perder a visão do olho esquerdo. “A pintura para mim hoje funciona que nem uma terapia, eu consigo entrar dentro da paisagem”. Apesar de ter na pintura uma forma de desabafo, de conforto, ele conta que seu sonho mesmo é ser cabeleireiro.
Começou a cortar cabelo aos 13 anos de idade. Hoje com 55, conta que veio para Bauru há 20 anos para fazer um curso e aperfeiçoar a habilidade. Chegou até a montar um salão na cidade, mas acabou ficando sem espaço depois que o terreno estourou. “Aí infelizmente eu abandonei, assim, mas ainda espero realizar esse sonho: ter o meu salãozinho — se Deus quiser e há de querer”, torce o artista.
Não existe unanimidade nas razões que levam os artistas a trabalhar na rua. Gabriel Lagrotta, malabarista nascido em Bauru, viu na apresentação circense um modo de sustentar a forma com a qual deseja viver — viajando. “O malabares caiu para mim como essa funça de ser uma coisa que ia me dar o dinheiro que eu preciso, e ao mesmo tempo ele é bom de outras milhares de formas. Para a minha saúde, exercício físico. É bom para a cabeça”.
O que prejudica Gabriel na realização do seu trabalho, segundo ele, é o preconceito que precisa enfrentar em sua rotina. “Às vezes a criança sorri o pai vai lá e fecha o vidro. Essas coisas assim machucam, né. Então você sempre vai se machucar umas vezes ao dia. Quando eu vou pro farol eu já sei disso, que eu vou ter que enfrentar uma parada dessas”.
Em sua percepção das cidades pelas quais passou, o comportamento do público é influenciado pela localidade que se encontra — se é no centro ou em bairros de elite. “Trabalhar na Duque de Caxias e na Getúlio Vargas em Bauru é muito diferente. Às vezes não o financeiro, mas o tratamento que você recebe. Você é mais uma atração na Getúlio, ou você vai ser ignorado. Na Duque você é uma atração e considerado um trabalhador também, pelos trabalhadores. Tem muito esse reconhecimento”.
Para Roque Ferreira, ex-vereador de Bauru pelo Partido dos Trabalhadores, autor do Projeto de Lei que regulamenta a apresentação dos artistas em espaços públicos, Bauru é uma cidade excludente. “Se apropriar dos espaços públicos não é uma tarefa tão fácil assim. [Bauru] é uma cidade que nós podemos definir como uma cidade sitiada, então a importância de você garantir que os artistas de rua possam desenvolver sua arte e através dessa arte também lutar pela sua subsistência acaba sendo uma tarefa de muita resistência”.
Aprovada em 2015, a Lei Municipal 6668 (Lei Municipal 6668/2015) garante que esses artistas possam expor e comercializar seus trabalhos nas ruas da cidade. O ex-vereador explica que a ideia da lei veio através da percepção de necessidades concretas desses artistas, que tinham muita dificuldade em exercer suas atividades sem sofrerem repressão.
Roque elucida que eles não precisam de espaços físicos, mas sim conseguirem ocupar os espaços já existentes. “Toda vez que você fala de recuperação desse espaço que é o calçadão, primeiro eles trabalham o processo de assepsia, uma assepsia social e uma assepsia racial. Ou seja, é preciso higienizar a cidade. E nesse processo de higienizar a cidade quem são os mais atingidos? São aqueles que trabalham no que se chama de cultura marginal, ou seja, são aqueles que não se encontram dentro desses espaços de Teatro”.
Décio afirma que, ainda que a lei tenha sido homologada, sua aplicação por muito tempo deixou a desejar. “Tem essa lei, só que o pessoal não respeita a lei, sabe. Toda vez que a gente estava aqui a gente tomava advertência da polícia, isso se não pegassem nossa mercadoria. E assim a gente vai vivendo, né. Tentando sobreviver.Graças a Deus eles estão deixando a gente trabalhar um pouquinho”.
Como Roque aponta, as dificuldades enfrentadas por artistas de rua se acentuam de acordo com raça, gênero e orientação sexual. Yandi Iriarte, malabarista uruguaia que vive no Brasil há três anos, sente que suas maiores dificuldades enquanto artista de rua são causadas por ser mulher. “É muito diferente. Para o cara ele chega e não importa a roupa que ele está. Já para a mulher importa. Eles já chegam perguntando se você é casada, te desrespeitam”.
Em meio aos três anos que está no Brasil viajando pelo país, a malabarista passou seis meses morando em Bauru. “Eu me senti acolhida para caramba em Bauru. Fiquei muito tempo lá por isso. A galera se surpreendia, não era uma cidade que tinha muita gente fazendo malabares”, comenta.
Yandi é uma artista autodidata, aprendeu as artes circenses sozinha e vai aprimorando as técnicas nos encontros de malabaristas que participa e com os treinamentos diários. Assim viaja de cidade em cidade e se sustenta, sem endereço fixo e sem certezas.
Dos quatro artistas entrevistados pela reportagem Jornal Dois, todos concordam quanto à arte de rua ser uma atividade invisibilizada, tanto no meio artístico como pela sociedade como um todo.
Yandi acredita que a tecnologia é responsável em grande parte por isso: “você pode estar fazendo o que você quiser, se tiver o WhatsApp ninguém vai te olhar. É um desafio muito grande conseguir, hoje em dia, que as pessoas assistam seu show e ainda gostem”, revela.
Já Décio analisa a crise financeira como o provável motivo do desinteresse de muitos: “Hoje em dia dificilmente as pessoas param. Antigamente paravam bastante, mas agora o pessoal não olha nem pros lados mais. Muita gente gosta de artesanato também. Infelizmente como a gente está nessa crise o pessoal não está conseguindo comprar alguma coisa que gostaria de comprar”.
A assimilação em relação ao funcionamento das calçadas da cidade, e a vivência enquanto artista de rua varia de acordo com o local que a pessoa se encontra e com a posição social que ocupa. Sobre o período de eleição, momento em que os ânimos dos brasileiros estavam aguçados e aconteceram diversos ataques físicos e psicológicos pelo país, Gabriel Lagrotta diz que sua interação com o público não foi alterada. “Na época rolou esse papo entre os malabaristas: como é que vai ficar o farol agora?, e pô, diferença zero. Não tive nenhum problema diferente nesses meses, nem com polícia nem com nada”.
Em contrapartida, Yandi confessa que está no caminho de volta para o Uruguai porque desde o início da campanha eleitoral em 2018 passou a ter uma recepção mais agressiva nas ruas. “Quando eu cheguei aqui estava tudo bem, eu — estrangeira, mulher e tudo bem. Já agora, pelo meu cabelo eu sou a estrangeira sapatão que tem que morrer. Eu estava trabalhando e no dia eram mais de três pessoas que me falavam alguma merda. E isso também mexe com a energia, mexe com o psicológico”, explana.
A arte de rua quebra as barreiras físicas e imaginárias entre arte, artista e público. Nela todo público é alvo, por isso as relações acabam por ser mais surpreendentes, às vezes de forma desconfortável, mas muitas vezes positivamente. “Um causo massa que teve em Bauru esses tempos foi um cara que me parou na rua e falou ‘comentei de você lá na igreja com um irmão meu’. Falou que eles trocaram ideia sobre os truques, tal. Aí que eu me sinto bem como artista, assim de rua. Porque você tá levando para espaços como a igreja uma discussão sobre arte, mesmo que mínima”, narra o episódio e reflete Gabriel.
Não existem dados que estimem a quantidade de artistas de rua que trabalham em Bauru, no entanto é possível vê-los em quase todas as ruas entre a Praça Rui Barbosa e o final do calçadão. Para muitos passam despercebidos, mas estão sempre presentes trazendo a possibilidade de contemplação da arte, contemplação do outro e de si mesmo.
“Quem sabe um dia se eu for reconhecido… só espero que quando for reconhecido eu esteja vivo. Depois de morto já não me interessa mais”, desabafa Décio. Esses artistas são personagens que quebram a rotina, causando uma mudança social efêmera, mas com a capacidade reverberar por muito tempo dentro de cada um. Tudo depende da atenção com que os olhamos. São também parte da movimentação econômica da cidade, mas mais que isso são parte da própria cidade. Nos atentarmos aos artistas nas ruas, além de ser importante pelo valor que essas artes têm, é um favor que fazemos a nós mesmos. Como seria Bauru sem esses artistas?
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