Ferrovias: agora não adianta chorar o leite derramado
Como e porque se abandonou os trens no Brasil
Publicado em 12 de junho de 2019
Por Roque Ferreira, colunista do Jornal Dois
Volta e meia, tanto em redes socais como em matérias de rádio, jornal e teve, a temática das ferrovias é tratada. O mais engraçado é vermos nos mesmos veículos de comunicação e em suas reportagens, figuras públicas que defendiam publicamente as privatizações.
Elas agora choram pelas beiradas porque a circulação de mercadorias monopolizada pelo setor rodoviário provoca aumento de custos em toda cadeia logística, aumentando substancialmente os preços de todos os produtos, inclusive em Bauru – que já foi o maior entroncamento rodoferroviário da América Latina.
Em 1990 Fernando Collor era a renovação, o caçador de marajá do PRN. A serviço dos interesses do capital instituiu o PND – Plano Nacional de Desestatização incluindo a RFFSA (Rede Ferroviária Federal).
Na época ele utilizava as ferrovias e os carros para fazer sua propaganda privatista contra o que “seria” o atraso. Quem o apoiou tem responsabilidade na destruição das ferrovias, pois foi cúmplice de um dos maiores crimes praticados contra o povo brasileiro em nossa história.
Depois que Collor foi cassado, assumiu Itamar Franco, que não teve força política para implementar o Programa Nacional de Desestatização.
Fernando Henrique Cardoso assumiu e iniciou processo de privatização da RFFSA em 1996. Nesta história entrou até o BANESPA. FHC pressionou o então governador Mario Covas para privatizar o banco, em troca a RFFSA assumiria a FEPASA para ser privatizada – o que ocorreu em 1998.
Os ferroviários lutaram de forma vigorosa em todo território nacional combatendo as privatizações e lutando para implantação de uma Rede Ferroviária Nacional de caráter público e estatal, cuja finalidade seria de planejar, regular, operar e manter o sistema nacional ferroviário para atuar no setor de cargas, passageiros e passageiros urbanos, devendo estar integrado a um novo Plano Nacional de Viação, Transportes e Mobilidade, que priorizasse como matriz o modal ferroviário. Apresentamos projetos técnicos, porém nenhum foi aceito.
Houve uma campanha muito grande de ataque à ferrovia e aos ferroviários, principalmente pelos meios de comunicação. Bauru no estado de São Paulo, onde havia o maior entroncamento rodoferroviário da América Latina, foi um exemplo.
Centenas de artigos em jornais, matérias em rádio e televisão defendendo as privatizações. Tivemos muito pouco apoio na cidade na luta contra as privatizações, o que ocorre até agora, pois os ferroviários em nível nacional nunca deixaram de lutar para a recuperação do modal ferroviário e pela implantação de um novo Plano Nacional de Transporte e Mobilidade, que aplique a intermodalidade dos modais de transportes.
O quê fazer?
Para dar consequência a esta nova política de uma Rede Ferroviária Nacional, que deverá traduzir o novo Plano Nacional de Viação, Transportes e Mobilidade, consideramos como condição imperativa que governo decrete a Caducidade dos Contratos de concessão das Ferrovias, colocando-as sob administração especial do Estado, que deverá assumir suas responsabilidades de controle, planejamento, financiamento, gestão e operação, além de proceder a uma rigorosa auditoria no sistema para que a União seja ressarcida dos eventuais prejuízos provocados pelos operadores privados.
A ferrovia para recuperar sua capacidade inclusive de escoamento, deve alterar o foco do negócio para poder recuperar as cargas tipicamente ferroviárias que ao longo dos anos migraram para o modal rodoviário, como os granéis agrícolas (soja, feijão, arroz, etc.), derivados de petróleo, produtos siderúrgicos, produtos industrializados, desenvolver o uso de contêineres e até mesmo minérios de maior valor agregado.
Neste cenário, a concepção em voga de estimular a competição com base na lógica do livre mercado entre os modais de forma predatória revela-se extremamente danosa para todos os envolvidos diretamente e, principalmente, para a economia do país, como estamos vendo agora.
Matriz de Transportes no Brasil
Cargas: Ferroviário 18,4%, Rodoviário 59,6%, Aquaviário 4,6% e outros 17,4%.
Nestes 22 anos de operação privada a participação do modal ferroviário na matriz de transportes caiu de 22,4% para 18,4%. Se retirarmos o transporte de minério, a participação do modal gira em torno de 7%. Isto quer dizer que na movimentação de cargas gerais no mercado interno, representado pelo transporte de produtos e insumos industrializados, a participação das ferrovias é de 7% (ainda assim, para atender corredores de exportação), contra 91% da modalidade rodoviária.
Esta situação foi extremamente agravada pós-privatização, ocasionando perdas para o setor produtivo, em decorrência do preço do frete e da falta de capacidade de movimentação.
As causas de tamanha distorção em nossa matriz de transporte vinculam-se:
a) A fatores históricos de país dependente e exportador de matéria prima;
b) As pressões da indústria automobilística para a valorização do transporte rodoviário;
c) A falta crônica de capital, que favorece investimentos em rodovia, de custo de implantação menor, mas de custo social e econômico muito maior.
Crise do modal rodoviário
A situação do modal rodoviário é extremamente complexa, existindo uma série de fatores que criam obstáculos para a multimodalidade, sendo o principal deles os aspectos fiscais, com elevadas diferenças entre os Estados e os vários modais.
As rodovias sobrecarregadas e precárias, não conseguem atingir índices positivos de eficiência no transporte de cargas, gerando um desperdício avaliado em 150 milhões de dólares anuais, e oneram de forma significativa os custos dos produtos brasileiros, reduzindo a competitividade do país.
Outro fato que podemos destacar como um vetor que contribui para o agravamento da crise no setor rodoviário é o superdimensionamento da frota, que acaba gerando um excesso de transporte rodoviário.
No Brasil existem 2,7 milhões de veículos de cargas. As empresas são donas de 53% da frota nacional, já os autônomos ficam com 46% do total. Vale destacar que no transporte leve (até 29 toneladas) o caminhoneiro autônomo ainda é maioria.
São em torno de 500 mil transportadores autônomos e cerca de 10.500 empresas de transportes disputando um mercado onde impera a livre competição. Importante destacar que 13,3 anos é a idade média da frota nacional, mas os veículos dirigidos por autônomos são, em média, 8 anos mais velhos que os das empresas. São 17,9 e 9,8 anos respectivamente.
Em alguns segmentos a idade média passa dos 20 anos, como é o caso dos caminhões de 8 a 29 toneladas, que têm média de 24,8 anos quando nas mãos dos autônomos. Metade da frota que está nas mãos do caminhoneiro autônomo é velha, e tem em média 30 anos.
A “livre competição”, levou a uma pulverização do mercado. O ingresso na atividade de transporte de cargas é totalmente liberado, não dependendo de concessão ou autorização. Esta desregulamentação ocorreu em 1995. Hoje a ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres prevê simplesmente o registro burocrático de operadores junto à agência.
Os dados mostram que atualmente existe um superdimensionamento da frota em relação às reais necessidades. O resultado imediato é um frete aviltado e muito abaixo do custo. Isso dificulta a competitividade de outros modais, em particular a ferrovia, e a integração dos transportes, mesmo a longa distância.
Esta situação leva as grandes operadoras a adotarem uma logística de atuação, com o foco centrado no transporte rodoviário de curta e média distância, objetivando otimizar custos.
Essa fato impõe ao caminhoneiro autônomo a disputa pelos percursos de longa distância, composto em sua grande maioria de cargas de baixo valor agregado, com fretes que minimamente cobrem os custos, precarizando ainda mais as condições de vida e trabalho.
Juntando todos estes fatores, com as repercussões da crise econômica e a política de internacionalização do preço do óleo diesel, estava aceso o pavio para a explosão do movimento de paralisação que ocorreu em maio de 2018.
Este modelo atual de transporte sustentado por uma matriz energética dependente começou a ser implantado no governo de Getúlio, se intensificou no governo de Juscelino, e até hoje todos os governos trabalharam para favorecer um modal de alto custo para o país, mas muito rentável para empreiteiras, indústrias do petróleo, indústria automotiva, empresas de pedágio etc. Não temos transporte ferroviário, hidroviário e tão pouco de cabotagem.
Este é o retrato de um país colonizado, onde o pau-brasil foi o primeiro commodity a ser exportado, e agora grãos e minérios. A tão famosa plataforma agro-mineral do programa de aceleração do capital ruiu com os efeitos da crise econômica de 2008, que se aprofundou levando Bolsonaro a ganhar as eleições e desenvolver um programa de terra arrasada de privatizações e de ataques a todas as conquistas da classe trabalhadora.
As colunas são um espaço de opinião. As posições e argumentos expressas neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do JORNAL DOIS.
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