Crise hídrica em Bauru: poços podem secar até 2034, alerta especialista
Se mantido cenário atual de gestão e consumo, nível de água no aquífero reduziria impossibilitando captação; em entrevista ao J2, engenheiro que participou do Plano Diretor de Águas avalia que o descumprimento do estudo agrava a crise hídrica e que perfurar novos poços não é o bastante
Publicado em 16 de setembro de 2021
Por Michel Amâncio
Edição Bibiana Garrido
Bauru vive uma crise de abastecimento de água que se prolonga, ao menos, desde 2014. Para entender melhor esse cenário, o Jornal Dois conversou com Vinicius Boico, engenheiro ambiental que participou da elaboração do Plano Diretor de Águas (PDA) do município. O objetivo era mapear a disponibilidade de água, bem como identificar problemas e soluções para a crise hídrica que já surgia naquele momento.
Contratado em 2013 pelo Departamento de Água e Esgoto (DAE), o Plano Diretor de Águas custou aproximadamente R$ 1,3 milhão e foi entregue em 2014 pela empresa em que Vinicius trabalhava, a Hidrosan Engenharia, indicando quais deveriam ser as ações do DAE para contornar a crise hídrica em Bauru. Troca de hidrômetros, reformas de infraestrutura e outros investimentos foram algumas das metas estabelecidas. Pelo documento, todas deveriam ser cumpridas no prazo de 20 anos – entre 2014 e 2034. Em 2021, sabe-se que o planejado ainda não é realidade, e que dificilmente o será até 2034, o que levou a Câmara Municipal a instaurar uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) para investigar por que o PDA não foi executado.
Desde o início dos trabalhos da Comissão, em maio de 2021, foram ouvidas 20 pessoas, entre elas atuais e antigos diretores, presidentes e funcionários do DAE. Também prestaram depoimento o ex-prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSDB) e o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB), prefeito de Bauru à época em que o estudo foi realizado. A CEI foi finalizada em agosto do mesmo ano, com um relatório que conclui que alguns dos motivos para a falta de execução do PDA foram a limitação financeira do DAE e o crescimento do município. Além disso, vereadores como Estela Almagro (PT) e Coronel Meira (PSL) afirmam que pode ter havido omissão por parte das autoridades responsáveis pela implementação do PDA ao longo dos anos.
Vinicius, que é pesquisador e mestre em engenharia hidráulica e saneamento pela Universidade de São Paulo (USP), contou ao J2 sobre seu trabalho no PDA, e explica por que somente a abertura de novos poços não é suficiente para solucionar o problema da falta de água em Bauru. Ele também comenta sobre as defesas de privatização do DAE e ressalta a importância da preservação ambiental para a solução do déficit hídrico municipal.
Jornal Dois: Como foi sua participação na elaboração do Plano Diretor de Água? Explica um pouco sobre como funcionou esse trabalho de engenharia.
Vinicius Boico: Esse trabalho foi feito pela Hidrosan, empresa em que eu trabalhava, e eu não era o engenheiro principal do projeto no começo. Lá eu iniciei como estagiário em 2013, ano em que eu já comecei a trabalhar com o Plano Diretor de Água (PDA). Fui contratado em 2014 e continuei trabalhando com o plano até o fim daquele ano. [A Hidrosan] é uma empresa pequena, havia o dono, dois sócios e os engenheiros. No PDA nós éramos em dois engenheiros. É claro que a gente não fez sozinho, tem os sócios da empresa que também eram responsáveis pelo projeto e também são engenheiros. Eu fiquei responsável pela parte de caracterização da cidade, tem um documento inteiro só pra isso. Foi um projeto bem amplo que analisou praticamente todos os aspectos com relação à disponibilidade de água em Bauru, mas também tem a parte de tratamento de água.
Enquanto eu lia o plano diretor, vi um trecho em que se afirma que “a disponibilidade de água para abastecimento no município de Bauru é limitada espacialmente e quantitativamente”. O que isso significa na prática para o abastecimento de água na cidade?
Dependendo de onde você tá em Bauru, a fonte de água disponível é diferente. Então tem lugares que são mais aptos pra gente instalar poços, e outros lugares que são menos aptos. Tem lugares que a gente pode captar água de rio e usar pra distribuição, mas tem outras regiões, lá pro lado do Vista Alegre, por exemplo, que é inviável porque a gente não tem fontes de rios suficientes em Bauru. Tem regiões, por exemplo, que já têm muitos poços, e aí não pode perfurar. Isso é o que significa ser espacialmente limitado. E sobre a quantidade ser limitada, é similar. Mesmo o Rio Batalha tem uma vazão máxima que a gente pode extrair, e por isso não pode simplesmente aumentar a captação. Já o Córrego Água Parada é muito distante, então a gente teria que instalar uma adutora (que é uma tubulação de um diâmetro muito grande) por quilômetros de distância, o que ficaria muito caro.
O PDA indica que o Rio Batalha deve ser a única fonte de água da superfície utilizada na vigência do plano, até 2034. E também orienta que o Córrego Água Parada só deve ser explorado após esse período. Por que o PDA não indicou a utilização do Água Parada antes, considerando a falta d’água em Bauru?
Basicamente porque havia uma necessidade imediata de abastecimento pra cidade entre os anos de 2014 e 2019, porque já faltava água e a população já estava crescendo e demandando mais. Então optou-se pela instalação de novos poços, que é algo muito mais simples [do que a captação de água de rio]: você precisa fazer um estudo da geologia, perfurar o poço, instalar a bomba e conectar a um reservatório. Enquanto que extrair água do Córrego Água Parada exige um estudo topográfico da região, a construção de uma barragem e de uma estação de captação de água, e bombear essa água até uma estação de tratamento que ainda nem existe. Fora que quando você faz uma barragem no rio você tem que desapropriar algumas áreas. E água de poço não precisa de tratamento igual água de rio, então é muito mais simples.
O plano diretor previa que a perfuração de novos poços localizados em pontos estratégicos da cidade possibilitaria a erradicação do déficit hídrico em Bauru entre 2014 e 2019. Hoje a população bauruense vive uma situação de desabastecimento. O que você acha que pode ter faltado pra que o plano se concretizasse?
Eu acho que em parte isso se relaciona a uma das conclusões que nós chegamos no PDA, que é sobre a perda de água. Parte dessa perda poderia ser resolvida com investimentos como troca de hidrômetro. Se o DAE pudesse controlar a água que os medidores não estão medindo corretamente, ou identificar aqueles que tenham alguma gambiarra, ele já teria mais dinheiro pra investir no próprio sistema. Como se perde muita água por erro de medição e também por vazamentos, controlar a pressão nas redes seria essencial pra reduzir essas perdas. Bauru tem um índice de perdas muito maior que em outras cidades no interior de São Paulo, a exemplo de Limeira, que tem um índice muito baixo. Agora, pra controlar as perdas não é rápido, tem que reinstalar hidrômetros, reinstalar algumas tubulações, instalar novos reservatórios pra controlar a pressão… Eu acho que tratar esse problema de forma séria e com prioridade talvez reduziria a falta de água em Bauru. Outra importante solução também é reduzir o consumo. Existe a parte da conscientização das pessoas, mas tem muitos consumos que não são residenciais, e sim industriais ou agropecuários. Eu não sei o quanto eles interferem no ecossistema da cidade, mas eu sei que muito do consumo industrial em Bauru vem de poços particulares, ou seja, o DAE não interfere. Isso significa que a água que falta na sua casa não vem do mesmo lugar da água dos particulares. São 460 poços particulares que a gente mapeou e que estão lá no plano, que são ativos e cadastrados, e tem outros que não são cadastrados. É claro que os poços do DAE extraem muito mais água que os poços particulares cadastrados, mas a gente identificou dois poços de um frigorífico que extraem muita água, quase no mesmo nível de um poço do DAE.
Quais são os riscos ambientais da exploração de poços que não são cadastrados, ou seja, aqueles que são usados por entes particulares e não são regularizados?
Isso é interessante, porque os poços do DAE geralmente extraem água do aquífero Guarani, a dezenas de metros de profundidade, às vezes centenas. E os particulares extraem do aquífero Bauru, que é mais raso e por isso é mais suscetível à contaminação. Os particulares também podem interferir bastante na vazão do Rio Batalha, porque o aquífero Bauru abastece o Rio Batalha. Então quanto mais você extrai de poços, menor vai ser a vazão de rios. Claro que há outros fatores, já que a vazão do Batalha vem parte do aquífero Bauru e parte das chuvas.
O plano traz dados que indicam que poços mais antigos perdem vazão com o tempo. Isso significa que até os novos poços têm um prazo de validade e que daqui a alguns anos eles não vão ser suficientes?
Eles perdem vazão porque o reabastecimento dos aquíferos é muito mais lento que o reabastecimento de um rio. O problema de tirar água de um rio é que vai faltar depois, a jusante [rio abaixo, depois da nascente]. O problema de extrair água de um poço é que o nível de água nos aquíferos diminui. E dependendo da vazão que você tá extraindo, vai ser extraído um volume tão grande e o nível vai reduzir tanto que pode ser que em algum momento o poço fique improdutivo. Aí a gente tem que perfurar o poço ainda mais fundo. No aquífero Guarani, se os poços estiverem espaçados, isso é difícil de acontecer, porque ali tem muita água e muita vazão. E no aquífero Bauru, que é uma água mais jovem que depende do regime de chuvas, da infiltração do solo, da vegetação, você vai conseguir extrair água por mais tempo e a água vai ser recomposta mais rapidamente se tiver esses fatores. Então não é todo poço que você extrai que tem um limite, tudo depende de vários fatores. Um fator crítico em Bauru, que eu até tava vendo o Agostinho falando na CEI, é que o DAE bombeia água 24 horas por dia, o que não é recomendado. Nesse cenário, onde não há uma pausa e você capta o dia todo, todos os dias, o poço vai ter um tempo de vida limitado. A solução seria fazer uma pausa na captação, que é recomendada pelo Departamento de Água do Estado de São Paulo, de quatro horas por dia.
Quais conclusões a respeito do uso dessa água do subsolo podem ser tiradas da sua pesquisa científica “Avaliação do rebaixamento potenciométrico no Sistema Aquífero Guarani em Bauru”?
O nível no Guarani vai diminuir quanto mais você tirar água, e eu estudei o quanto isso ia interferir no abastecimento em Bauru nesses próximos anos. Nessa pesquisa eu analisei alguns cenários: quanto o Guarani já reduziu até hoje, quanto reduziria se fossem instalados todos os poços do PDA… E teve alguns cenários que eu elaborei no caso de diminuição da vazão de cada um dos poços, o que seria mais sustentável. A conclusão principal foi de que, com o cenário atual, haveria rebaixamento expressivo no nível do aquífero, o que talvez não garanta as vazões necessárias pro consumo de água em Bauru em 2034. Porém, se a gente reduzir a vazão de todos os poços pra uma vazão recomendada, dá pra garantir que o Guarani aos poucos recupere o seu nível. Tudo isso considerando que o PDA estivesse sendo aplicado, ou seja, que o índice de perdas estivesse reduzindo com o decorrer dos anos. Se você tem menos perdas, significa que precisa de menos água pra abastecer a população. E a população vai aumentar, o que obrigatoriamente aumenta o consumo.
O PDA lista algumas alternativas complementares à perfuração de poços. Quais você considera as mais essenciais e possíveis de serem viabilizadas? Como resolver o problema da falta de água em Bauru em curto prazo?
Eu acho que vai faltar água mesmo, nesse ano e nos próximos. Porque além da maior parte do PDA não ter sido implementada, que seria principalmente por meio do controle de perdas e da reparação dos hidrômetros, a gente tá passando por uma seca ainda maior do que nos últimos anos. E tem uma questão importante também no PDA: os poços vão trazer mais água pra cidade inteira, mas em alguns bairros vai continuar faltando. Alguns poços podem até ter vazão pra abastecer a cidade inteira, mas em alguns lugares estratégicos não vai chegar. O que eu acho que deve ser feito em curto prazo, nos próximos anos, é o investimento na setorização pro controle de perdas, o que inclui não só alterar as tubulações, mas instalar medidores de pressão, instalar uma central de controle operacional no DAE, pra fazer o controle da pressão da rede de forma automática. E seria imprescindível controlar o uso e ocupação do solo na bacia do Rio Batalha e proibir o uso e ocupação na área de preservação permanente, o que deveria ser a lei.
O atual diretor de finanças dos DAE, que foi um dos depoentes na CEI da Água, disse à Comissão que a rotina de trabalho dos funcionários da autarquia poderia dificultar a execução do PDA. Como avalia essa declaração?
Pelo que eu conheci do DAE faz sentido, porque eles têm uma capacidade limitada pra tratar a cidade de Bauru – que é enorme. E eu tive contato, quando participei do PDA, com um engenheiro do DAE. Eu lembro que o problema de não ter pessoal suficiente lá era real, já existia na época. Eles têm encanadores que estão sempre trabalhando, e não têm pausa. Os técnicos do DAE que eu conheci são comprometidos com o trabalho, e se tivesse mais investimento eles fariam um trabalho melhor.
Aproveitando sua resposta, queria puxar pra uma questão mais política. Muita gente defende a privatização da distribuição e abastecimento de água em Bauru. Você concorda com essa visão?
Nenhum sistema que trata de água deveria ser privado. Água é um bem essencial pra vida, pra tudo. Pra beber, pra lavar, pra produzir alguma coisa, e não deveria estar nas mãos de nenhum setor privado, mas sim o máximo possível no controle da população. Então em termos gerais, independente do DAE, a água nunca deve ser privada. Tem exemplos de empresas que foram privatizadas na Europa e que tiveram que retornar para o setor público… Há vários problemas associados com a privatização que vai além de Bauru. Por exemplo, o acesso à água em bairros mais afastados: talvez pra uma empresa particular não fosse interessante oferecer água de qualidade para aqueles lugares. Enquanto as regiões centrais, que consomem mais ou são mais ricas, se beneficiariam de uma água de maior qualidade. Sobre o DAE, os engenheiros e engenheiras que conheci são muito capacitados, e tinham um conhecimento muito além do que eles estavam fazendo. Eu tive que conversar com um técnico do DAE que conhecia na palma da mão a rede de distribuição de água de Bauru. Então o problema não é falta de conhecimento técnico. Não sei como acontece a escolha do presidente do DAE, quais são os jogos políticos envolvidos. Mas eu não acho que isso se resolveria privatizando. E acho que ninguém deveria lucrar com água. Falar em privatização tira o foco de um problema que iria continuar existindo, e a tarifa ainda iria aumentar de um dia pro outro se fosse privado. A gente tem que dar um jeito de resolver de forma pública, porque todo mundo tem direito de ter água de qualidade e a gente precisa dela todo santo dia. Ninguém deveria se preocupar em ter dinheiro pra ter água de qualidade. É um bem essencial à vida e que não pode se tornar mercadoria.
Vinicius, pra encerrar. Pode explicar como a questão ambiental se relaciona à crise hídrica em Bauru?
Nossa, eu conheço mil pessoas que poderiam falar melhor do que eu sobre esse tema (risos)! Mas claro que o desmatamento está relacionado. A gente sabe que tem o desmatamento da Amazônia, das florestas que são densas e produzem muitas nuvens e chuva. A gente acha que a maior parte das nuvens vem do oceano, né? Eu achava isso. Mas hoje já tem pesquisas que mostram que os rios voadores deixaram de ser uma palavra mística e infantil pra ser realidade. A maior parte das nossas chuvas vem das florestas, e estudando agora no doutorado o ciclo da água, estou vendo que a evapotranspiração traz um retorno de água pra atmosfera muito grande. Muito grande mesmo. Se você corta todas as árvores, o que acontece? Você reduz a infiltração no solo e aumenta o escoamento superficial. Assim a água vai escorrer sobre o solo ao invés de infiltrar. Tendo menos água infiltrando no solo, você tem menor recarga dos aquíferos. Então a crise hídrica que afeta o estado de São Paulo, inclusive o município de Bauru, é causada também pelo desmatamento que acontece lá no norte do país, já que a vazão dos rios é muito influenciada pelas chuvas. Com relação à degradação aqui na região, o próprio aquífero Guarani, que abastece milhões de pessoas no Brasil, tem sua área de recarga no Cerrado. Quando se aumenta o desmatamento em área de Cerrado, diminui a infiltração da água no solo e diminui a recarga do aquífero Guarani que abastece nossa cidade. E tendo maior escoamento superficial da água, você vai ter mais enchentes, que é um problema muito grave em Bauru.
No Jornal Dois já fizemos trabalhos sobre o desmatamento como consequência da ocupação humana em áreas de preservação ambiental, inclusive em áreas próximas a rios. É uma questão relacionada ao chamado “destravamento” da cidade, que nada mais é que a flexibilização de leis ambientais pra ocupação urbana do solo.
Fora a poluição e contaminação que a ocupação pode ocasionar, em questão de esgoto. Eu lembro que quando a gente fez o zoneamento da cidade de Bauru, tinham loteamentos previstos pra serem construídos em áreas protegidas. E a pressão do setor imobiliário é muito mais forte que a pressão para a proteção ambiental dos rios, mesmo daqueles que estão em áreas protegidas.