Como funciona o transporte público em Bauru e como ele pode mudar

Preço da passagem levanta discussão da proposta Tarifa Zero, que é realidade em 12 cidades brasileiras

Por Bibiana Garrido

Duas empresas operam o sistema de ônibus bauruense em regime de concessão pública: Cidade Sem Limites e Grande Bauru. São representadas por meio da Associação das Empresas do Transporte Coletivo Urbano de Bauru (TRANSURB), órgão responsável pela emissão de cartões de ônibus, venda de créditos tarifários e repasse da verba às operadoras.

As catracas giram aproximadamente 2,5 milhões de vezes por mês. É o que mostra cálculo feito com base nos dados de fevereiro de 2017, divulgados pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (EMDURB).

Vale considerar a margem dos 70% pagantes para ter uma ideia do dinheiro que sai de tudo isso: deixando de lado as passagens gratuitas de integração e para pessoas idosas e com deficiência, é possível estimar uma receita mensal de 6 milhões de reais, o que dá mais ou menos 72 milhões ao ano.

Conforme a Lei n° 5.349 de 21 de março de 2006, como remuneração dos serviços prestados cabe à concessionária, ou seja, à empresa de ônibus, a receita resultante da tarifa paga pelas pessoas transportadas. Todos os custos do sistema de ônibus estão dispostos em uma planilha no site da EMDURB.

É possível verificar, na página 132 da planilha, o quadro de salários, benefícios de cesta básica, plano de saúde, cotação de combustível, peças, pneus, óleos e reparos. Porém, quando tentamos entender o total de custos fixos e variáveis para a atividade de cada empresa, expostos a partir da página 151, damos de cara com números grandes e sem unidade de medida explícita— o que dificulta a interpretação.

Na falta de cifrões e vírgulas para a exatidão dos valores em reais, temos uma previsão do quanto cada empresa recebe no período de operação, que é, nos dois casos, de oito anos prorrogáveis por mais dois. Você pode ver os contratos aqui e aqui.

Para a empresa Cidade Sem Limites o valor total de contrato estimado é de 133,5 milhões. A prefeitura na época tomou por base o número médio de passageiros pagantes e a tarifa vigente em 2008, ano anterior à assinatura do contrato. A passagem aumentou 90% desde então. Para a Grande Bauru, de concessão firmada em 2014, o valor estimado é de 393,4 milhões.

“Redução de custos”

A insatisfação com a qualidade do transporte público em Bauru foi parar na televisão já em 1998. Foi quando movimentos sindicais e políticos bauruenses se mobilizaram contra o aumento de R$0,65 para R$0,90 centavos, autorizado pelo então prefeito Antônio Izzo Filho.

 

 

“Felizmente os trabalhadores organizados através dos sindicatos conseguiram revogar o aumento naquele ano”, comenta Matheus Versati, membro da Frente Anarquista Libertária da cidade. “As lutas contra o aumento da tarifa continuaram acontecendo todos os anos na cidade de Bauru, tendo uma explosão em 2013 perante as Jornadas de Junho, que tiveram como pauta principal a luta contra o aumento da tarifa de ônibus”.

Como justificativa para o aumento da tarifa a Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (EMDURB) apresenta gastos com manutenção dos veículos, combustível e salário dos funcionários. É uma política de “redução de custos”, da qual também faz parte o corte da função dos cobradores, diz Vitor Rocha Silveira, gerente de transporte coletivo da EMDURB.

Sobrou para os motoristas lidar com o trabalho acumulado. De acordo o gerente da empresa, eles “recebem um adicional por fazerem esse serviço”. Outro motivo para o corte dos empregos seria “a implantação do cartão eletrônico, [que] reduziu muito a necessidade de cobradores, pois somente 17% da população utiliza o dinheiro”.

Taxa de usuários que pagou a passagem em dinheiro chegou a 20% em dezembro de 2016, 19% em janeiro e 18% em fevereiro de 2017 (Fonte: EMDURB)

A movimentação de motoristas declarando a dificuldade enfrentada pelo acúmulo de responsabilidades foi documentada pelo ex-vereador Roque Ferreira (PSOL). Na hora de dar o troco da passagem paga em dinheiro, a contagem de moedas atrapalha o andamento dos ônibus. Para tentar resolver o problema, o prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSD) “revogou” o aumento de cinco centavos que tinha sido aprovado para agosto/2017 e o preço da passagem em dinheiro volta a ser R$3,75 a partir de 21 de janeiro.

Questionada sobre a viabilidade de restaurar a função dos cobradores no ônibus, a EMDURB afirma não ter recursos para pagar mais funcionários. “A política de transporte coletivo atual da cidade não contempla o retorno dos cobradores”, pontua Silveira.

Contra o aumento

Eusébio (CE), Anicuns (GO), Itatiaiuçu e Muzambinho (MG), Silva Jardim, Maricá, Porto Real (RJ), Paulínia, Agudos, Potirendaba (SP), Ivaiporã e Pitanga (PR) são as cidades brasileiras que adotaram a Tarifa Zero. Segundo levantamento do site FreePublicTransport, em português “transporte público gratuito”, o Brasil é o único país da América Latina a cumprir a medida, que já está em funcionamento na América do Norte, Europa e em alguns países da Ásia e Oceania.

Por aqui o projeto é de autoria de Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes no governo de Luiza Erundina (então PT, hoje PSOL) na cidade de São Paulo. No início da década de 1990, paulistanos gastavam em média 22% do salário com locomoção via ônibus e metrô.

Se tomarmos por base o salário mínimo em 2017 e a rotina do bauruense que pega quatro ônibus por dia útil, veremos que o gasto com transporte coletivo equivale a 32,4% dessa renda.

De acordo com a Secretaria de Planejamento (SEPLAN), a maior parte da população mora nas bordas da cidade e precisa de dois ônibus para chegar aos locais de trabalho e estudo, mais dois para voltar. É o que está comprovado no plano estratégico da EMDURB: as regiões Norte e Oeste são as de maior origem de viagens, correspondendo a quase 24% e 38% dos trajetos, respectivamente. Enquanto isso, a região Sul responde por pouco mais de 11%.

O Movimento Tarifa Zero Bauru oscila entre altos e baixos por não conseguir manter uma atividade frequente ao longo dos anos. Depois de mais um aumento aprovado para o segundo semestre de 2017, estudantes e trabalhadores tentaram buscar soluções para o problema.

Para Davi Cabeça, estudante trans, membro do PSOL e da organização Liberdade e Luta que participou do Tarifa Zero neste ano, “a notícia sobre a planilha de custos desatualizada da EMDURB animou os participantes do movimento”.

Isso porque foi divulgado documento com informações sobre a tabela utilizada para os cálculos do transporte público, baseada em dados de décadas atrás, que traz à tona a “injustiça que é o preço e a qualidade do ônibus” em Bauru. Para o estudante, “ter argumentos e provas irrefutáveis é fortalecedor”.

 

Ação do Tarifa Zero Bauru no centro da cidade, depois da notícia do aumento das passagens (Foto: Bibiana Garrido/JORNAL DOIS)

 

“A tarifa de ônibus é algo que afeta a maior parte dos cidadãos, seja trabalhador, seja estudante, seja o que for. O que era para ser um direito de todos está se tornando cada vez mais um direito apenas dos que podem pagar”, argumenta Matheus Versati, que também integrou o Movimento Tarifa Zero.

Depois dos boatos do aumento da tarifa no ano passado, noticiados oficialmente no mês de julho, o movimento estudantil da Universidade do Sagrado Coração (USC) puxou a primeira das tantas reuniões que seriam realizadas pelo nome de Tarifa Zero no coreto da Praça Rui Barbosa.

Na ocasião, estavam presentes representantes de diversas organizações e partidos políticos da cidade, estudantes, bem como cidadãos e cidadãs independentes de qualquer ligação com outros movimentos, interessados em discutir o transporte público.

“Então a EMDURB vem e diz ‘precisamos aumentar a tarifa para recuperar o déficit de usuários’, lógico que há uma perda de usuários, e essa perda vem acontecendo desde 1998. Estamos em um ciclo no qual a empresa aumenta a tarifa, perde usuários, então aumenta de novo, logo, perde mais usuários. É insano, a tarifa aumenta todo o ano e vai continuar aumentando, não é só uma questão técnica, é uma questão de lucro. Não devemos lutar contra isso apenas pelo fato do preço ser abusivo, mas devemos lutar para não permitir que a prefeitura nos faça de vítima de seus acordos com o interesse privado”, argumenta Versati.

Do mês de julho em diante, o grupo se articulou para estudar o tema e divulgar informações para a população. Foram organizadas panfletagens no calçadão e pontos de ônibus, conversas nas saídas de trabalho, em trocas de turno e escolas, além da colagem de cartazes pela cidade. Mobilização que culminou em um ato, realizado em frente à Câmara Municipal, contra o aumento da tarifa.

A manifestação contou com algumas dezenas de pessoas participantes, mas pouco repercutiu entre as autoridades do governo municipal. O Movimento Tarifa Zero perdeu força de atuação.

No pensamento do estudante Davi Cabeça, “somente com o povo ocupando espaços nas ruas e bancadas podemos alcançar resultados satisfatórios, uma boa qualidade de vida. As lutas estão todas interligadas: transporte, educação, segurança e saúde fazem parte do mesmo pacote”.

Tarifa gratuita

É por entender o transporte público como um direito reconhecido constitucionalmente que movimentos organizados defendem o fim da passagem de ônibus. A tarifa gratuita, para esses movimentos, seria a consolidação do direito à cidade, da liberdade de se locomover pelo espaço que pertence aos seus habitantes.

Se a medida fosse adotada em Bauru, poderia ser colocada em prática pela configuração já existente na cidade que é a da empresa municipal, como explica Lúcio Gregori, autor da proposta Tarifa Zero.

JORNAL DOIS teve a oportunidade de trocar algumas ideias com o Lúcio sobre o que poderia mudar no sistema de ônibus em Bauru. Confira abaixo a entrevista completa:

JORNAL DOIS: Em Bauru o serviço de transporte público é oferecido por uma única empresa, a Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (Emdurb). Na proposta do Tarifa Zero, existe alguma forma adequada de gestão para o transporte de ônibus, por exemplo, com o papel poder público exercido diretamente ou com parcerias público-privadas?

Lúcio Gregori: A Tarifa Zero pode ser feita por uma empresa municipal como a EMDURB ou por empresas privadas contratadas pelo sistema de frete. Ou seja, a prefeitura fretaria os ônibus das empresas, pagaria o frete, mas não cobraria nada dos passageiros.

J2: O sistema de ônibus em Bauru tem um histórico de aumento nas passagens de 90% nos últimos 10 anos. A justificativa da empresa é a alta do combustível e dos demais insumos para fazer rodar a frota. Até que ponto esse argumento pode ser considerado válido?

LG: Não há, necessariamente, relação direta de tarifa e inflação. Explico: o custo de um sistema de transportes é de 15 a 20% combustíveis e 40 a 50% aproximadamente, mão-de-obra. Os combustíveis podem subir acima ou abaixo da inflação e os salários também. Aliás, todos os demais componentes dos custos também.

Um reajuste tarifário pode ser maior ou menor que a inflação, dependendo, principalmente, desses custos de combustíveis e mão de obra. A resposta da EMDURB pode estar correta dependendo de uma análise detalhada desses custos.

J2: A cidade de Agudos, vizinha de Bauru, adotou a Tarifa Zero em 2003. Por ser uma cidade de pequeno porte, seu prefeito na época e responsável pela mudança Carlos Octaviani questionou, em entrevista, a viabilidade do projeto em grandes municípios. O tamanho das cidades e de sua população interfere na aplicação da Tarifa Zero?

LG: Pode interferir ou não dependendo de como a cidade cresceu. De um modo geral elas crescem espalhando-se muito por conta da especulação imobiliária. Aí faz diferença o tamanho da cidade. Mas, pode variar de cidade para cidade. Exemplo: Maricá, 150 mil habitantes, tem Tarifa Zero desde 2014. A receita per capita de então era R$ 3.727 e em São Paulo a receita per capita era de R$ 3.644, aproximadamente. Muito próximas.

No entanto, é muito mais complicado fazer Tarifa Zero em São Paulo do que em Maricá. Agudos a receita per capita era de R$3.237, Sorocaba R$3.591. Sorocaba tem tarifa de R$4,10! Já Bauru tem receita per capita R$2.710. Isso pode significar um município mais pobre ou uma política tributária municipal mais fraca.

J2: Muitas pessoas questionam que ao remanejar o dinheiro público para custear o sistema de ônibus outras áreas seriam prejudicadas, como a saúde e a educação. Isso é verdade? Quais seriam as possíveis fontes de financiamento do transporte público em Bauru caso fosse adotada a tarifa gratuita para todas as pessoas?

LG: Ninguém propõe tarifa zero tirando dinheiro de outros serviços públicos essenciais. Ao contrário, se propõe aumentar as receitas municipais como um todo, seja através de reforma de tributos municipais (ISS, IPTU, ITBI) seja por receitas transferidas do governo do estado ou federal. Então todos os serviços terão mais recursos e não, menos.

J2: Dentro da atual conjuntura política, que constitui um cenário de instabilidade no setor público administrativo e econômico, quais os desafios para a efetivação da proposta Tarifa Zero?

LG: Os desafios são agora e sempre a questão de receitas via tributação. Embora a mídia tenha vendido a ideia de que no Brasil os impostos são altíssimos, a verdade é que rico paga menos impostos que classes médias e pobres.

Exemplo: em 2016, Joesley Batista recebeu 2,2 milhões como diretor da JBS e 103 milhões como dividendos e lucros da mesma empresa. Pagou 15% líquido sobre o 2,2 milhões e 0% sobre os 103 milhões, porque lucros e dividendos recebidos por pessoa física não pagam impostos no Brasil. Essa política só existe aqui e na Estônia!

Então é isso, esse debate sobre impostos no Brasil precisa ser feito e independe do cenário de instabilidade existente. Ou melhor, é o que causa essa instabilidade. O Estado Brasileiro não gasta muito, salvo salários de certos funcionários, mas sim, arrecada pouco através de impostos pagos pelo mais ricos. Essa é a discussão…