Autonomia Universitária

Autonomia de gestão sem recursos para que ela possa ser praticada é equivalente a dizer que a autonomia não existe

Publicado em 09 de setembro de 2019

"Bolsonaro nomeia reitores a favor do “Future-se”, da censura, do fim da pesquisa e da privatização das universidades" (Foto: Patrícia Domingos/Jornal Dois)
Por Roque Ferreira, colunista do Jornal Dois 

As universidades modernas tiveram sua origem na idade média, entre os séculos 12 e 15. Neste período, foram fundadas as universidades de Oxford, Bolonha e Paris. Coimbra (Portugal) foi criada em 1290. As datas de fundação não são precisas – os documentos históricos registram datas diferentes, mas a sua instituição é sempre através do reconhecimento oficial de sua existência. Essa fundação se faz por bula papal ou por decreto imperial, que reconhece a sua independência frente aos poderes locais.

De forma geral, ao ter esta origem, elas são independentes das autoridades eclesiásticas e feudais onde se localizam. Em outras palavras, como o imperador e o papa estão longe, elas são autônomas. Essa autonomia é resultado e, ao mesmo tempo, origem de conflitos com as autoridades. As universidades reúnem de tudo, desde renegados do sistema que lá buscam abrigo, jovens em busca de desenvolvimento, aventureiros, filósofos, doutores, pesquisadores. Vão assim produzir um conhecimento resultado do debate de diferentes posições filosóficas e teológicas, que servirá aos embates futuros da burguesia contra os senhores feudais.

É importante salientar que é um elemento histórico de sua constituição a eleição do reitor. Inicialmente as universidades eram divididas em colégios ou nações e existia um representante do papa ou do imperador que dirigia tudo e resolvia as pendências. A reunião dos colégios começa por indicar um reitor e este vai depois assumir o poder e representar a universidade.

A universidade de Oxford vai constituir um centro de pesquisas empíricas que dará origem aos grandes pesquisadores e cientistas como Newton. A universidade de Paris vai ser o caldo de cultura onde vão vicejar os enciclopedistas e os humanistas, que deram o suporte ideológico à Revolução Francesa (que, contraditoriamente, já que a Universidade era dominada pela igreja, se viu obrigada a fechá-la assim que derrubou a monarquia em 1792).

No Brasil, as universidades se constituíram no início do século 20. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (então capital do Brasil) foi constituída em 1920 (fusão das faculdades de direito, engenharia e medicina) e em 1925 as universidades da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. A USP foi criada de fato em 1934.

Essa criação tardia é fruto do atraso de Portugal e, além disso, do medo da burguesia frente às revoltas universitárias como a de Córdoba (Argentina, 1918). Lembremos que a Espanha espalhou universidades pela América Latina (26 ou 27). Essas persistem até hoje.

A conquista da autonomia universitária no Brasil sempre foi uma luta incessante. Durante a ditadura militar (1964-1985), as universidades sofreram intervenções, seus reitores e professores foram cassados e a autonomia universitária deixou de existir. Com a Constituição de 1988, uma autonomia limitada, com a eleição de reitores em lista tríplice para escolha do presidente ou governador, a situação melhorou, embora a escolha dos dirigentes das universidades públicas tenha se mantido até hoje muito longe de ser algo realmente democrático.

As escolhas de Bolsonaro mostram os limites desta forma de eleição. Rompendo a autonomia universitária, Bolsonaro questiona na prática o modelo vigente e o “respeito” que estava sendo praticado nestas eleições, onde o mais votado era geralmente o escolhido. Com uma política direitista e obscurantista, anticientífica, abrindo caminho para a privatização e destruição da universidade enquanto tal. Bolsonaro nomeia reitores a favor do “Future-se”, da censura, do fim da pesquisa e da privatização das universidades.

Se as universidades são os centros de pesquisa e ensino, os cortes de verbas, as restrições orçamentárias que vêm sendo praticadas desde o governo Dilma, mostram a outra parte desta faceta. Afinal, ter autonomia de gestão sem recursos para que ela possa ser praticada é equivalente a dizer que a autonomia não existe.

A revolta dos estudantes, como se mostrou no Cefet-RJ e na Universidade do Ceará, que explodiu após a designação e reitores não eleitos, é um sinal das lutas que virão. Da luta da juventude de hoje depende a existência da ciência, do ensino e da pesquisa que a universidade hoje proporciona.

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