Saúde mental da população negra: como o racismo adoece os negros no Brasil

Gênero, raça e classe são indicadores de vulnerabilidade para transtornos mentais na universidade

Publicado em 10 de agosto de 2018

Mulheres são as que mais sofrem com transtornos mentais no Brasil, mas as vítimas de suicídio são — em valores absolutos — os homens (Ilustração: Ana Carolina Moraes/ JORNAL DOIS)
Por Ana Carolina Moraes

Entre novembro de 2017 e junho de 2018 — um período de sete meses — dois estudantes da UNESP em Bauru cometeram suicídio. O que as vítimas tinham em comum era o fato de serem homens negros.

Homens não-brancos são as maiores vítimas de suicídio no Brasil. Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, indicam que, de 2011 a 2016, eles representaram 79% das mortes. Sobre os homens negros, a taxa de mortalidade a cada 100 mil habitantes foi de 7,6. Suicídio é a terceira causa de mortes de homens entre 15 e 29 anos de idade.

“O racismo da nossa sociedade adoece as pessoas a ponto do sofrimento psíquico ser quase que insuportável”, observa Jussara Felipe, psicóloga especialista em saúde mental. Para Felipe, a forma com a qual as práticas racistas acontecem no país — “de forma velada”, como ela apresenta — dificulta a identificação do racismo no sofrimento e na fase de vida em que a pessoa começou a adoecer.

Giddeão Gasparini, estudante de Psicologida da UNESP e membro Coletivo Negro Kimpa, compreende que o racismo está além das atitudes discriminatórias. Para ele, a estrutura social é racista e a universidade reproduz isso.

Transtornos X Crises

De acordo com a psicóloga Jussara Felipe, a saúde mental é compreendida como a capacidade que o indivíduo tem de tomar decisões em relação a sua própria vida, de se organizar interiormente e organizar o que está em sua volta.

Felipe ressalta que a importância de diferenciar transtornos mentais de crises é reconhecer os cuidados necessários à saúde mental. Isso porque, segundo a psicóloga, tanto os transtornos quanto as crises estão ligados à saúde mental.

“Tem que ter cuidado em relacionar esse termo [saúde mental] a condições para alguém deixar de fazer alguma atividade. Porque há pessoas que têm transtorno mental, e aí a gente já está falando de patologias, como depressão, de transtorno de personalidade, borderline, afetivo bipolar, sociopatia. Outra situação é quando você passa por um período de crise devido a uma mudança na sua rotina”, explica.

Dados do Institute for Health Metrics and Evaluation, da Universidade de Washington, nos EUA, mostram que 9,97% dos brasileiros sofriam com transtornos mentais em 2016. O infográfico a seguir apresenta as estatísticas sobre a incidência de transtornos mentais por gêneros na população brasileira:

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a depressão como a doença que mais contribui com a incapacidade no mundo; ela também é indicada como a causa de 800 mil mortes por suicídio por ano.

Até setembro do ano passado, 70 suicídios foram registrados em Bauru, segundo o Centro de Valorização da Vida (CVV). A média local de óbitos a cada 100 mil pessoas é 2,72 maior do que a taxa nacional, que é de 5,01 óbitos a cada 100 mil pessoas, segundo os dados do DataSUS (2013).

Homens não vão

De modo geral, o que se percebe da relação entre gênero e os cuidados psicológicos é que a saúde mental não recebe a devida atenção — principalmente entre os homens.

Apesar de as pesquisas indicarem o perfil masculino como maior vítima de suicídio, eles são minoria na busca por cuidados psicológicos e também em estudos sobre o diagnóstico de saúde mental.

Observação que se comprova na prática.

Durante a graduação, Giddeão Gasparini, estudande de psicologia e membro do Coletivo Negro Kimpa, trabalhou no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), um serviço de saúde mental público. Foi nessa experiência que ele percebeu que homens não vão em busca de atendimento. “O único tratamento que eu via mais homens, que eles eram quase 99%, era o de dependência [química]. Depressão, bipolaridade, ansiedade, só vão mulheres”, pontua.

Universidade

Tanto para a psicóloga, Jussara Felipe, quanto para o membro do Coletivo Negro Kimpa, Giddeão Gasparini, estudantes negros tendem a sofrer mais com problemas de saúde mental por conta da estrutura social racista.

Felipe destaca o racismo institucional e a cultura organizacional das instituições de ensino superior como fatores que adoecem. “Pela questão do racismo institucional, esse jovem que está construindo sua personalidade se depara com um ambiente hostil, com a ideia de que a universidade é um espaço que ele não deveria estar”, explica.

Já para Giddeão, a construção da masculinidade também é um motivo que dificulta a busca por tratamentos:

“A expressão de sentimentos, principalmente sentimentos ruins, em homens é muito reprimido. Algo que eu percebi nesse estereótipo da negritude é que o homem negro é sempre visto como o cara de boa, e quando você o vê ‘para baixo’, você estranha, mas você espera que logo ele vai voltar ao normal”, complementa.

O integrante do Coletivo Negro Kimpa relaciona os cortes nas políticas de permanência estudantil na universidade à saúde mental. “Desde que as cotas foram implantadas, os investimentos para a permanência estudantil não acompanharam a proporção de ingressantes que precisam dos auxílios”, afirma.

Giddeão observa que a problemática envolve a falta de acesso, no sentido de tempo e dinheiro: “têm estudantes com dificuldade socioeconômica que, além disso tudo, se preocupam em como vão se manter aqui, algo que a gente sabe que aconteceu com o Rodrigo”.

 

Manifesto redigido pelo Coletivo Negro Kimpa, assinado por seis coletivos negros da UNESP (Foto: Reprodução/ Redes Sociais)

Rodrigo Leandro era estudante de física da Faculdade de Ciências da UNESP. Ele cometeu suicídio em junho deste ano. De toda comunidade ‘unespiana’, somente o Coletivo Negro Kimpa se manifestou publicamente sobre o ocorrido. Em uma Carta Aberta, o Coletivo aponta a necessidade de “medidas urgentes para os discentes, como pensar em formas de sobrevivência para pessoas negras e demais minorias políticas”.

Em resposta aos estudantes, a Faculdade de Ciências da UNESP informou sobre a criação do Núcleo de Apoio à vida, espaço direcionado a estudantes e professores com a realização de atividades que visam a qualidade de vida, como a prática de yoga.

Questão de saúde

Para Jussara Felipe, psicóloga especialista na área, a relação entre saúde mental e a universidade é uma questão macro, mas alerta sobre as consequências do racismo nos universitários: “eles são a minoria nesses espaços, e são maltratados de forma sofisticada, é difícil perceber [a causa do sofrimento]”.

Giddeão Gasparini, integrante do Coletivo Negro Kimpa, comenta sobre a naturalização de comportamentos nocivos à saúde mental. “É natural as pessoas ficarem sem dormir, é natural professores passarem muitos textos, muitos trabalhos… Falta o entendimento de que os estudantes não podem só viver para a faculdade”, diz.

Para ele, a percepção de problemas de saúde mental é ainda mais difícil para estudantes negros, uma vez é preciso “correr atrás de se manter aqui, de se formar, da nossa família, dos nossos amigos”.

“Então, quando a gente vai pensar que a gente não tá bem, já tá bem complicado”, declara Gasparini.

A dificuldade de reconhecimento e tratamento da depressão entre as classes sociais mais baixas foi tema de uma reportagem recente da Folha de S. Paulo. Nela, os entrevistados afirmam que “pobre não pode se dar ao luxo de não sair da cama”. O que também chama a atenção é uma pesquisa do Ibope de 2008 citada no texto, que aponta que pessoas das classes C e D estão mais vulneráveis à doença.

Para os entrevistados — Jussara Felipe e Giddeão Gasparini — a promoção da saúde mental dentro da universidade melhoraria a qualidade de vida dos alunos e de quem convive nesse meio. “O cuidado tem que ser como todo”, ressalta a psicóloga. “A saúde mental precisa ser cuidada como saúde; as pessoas ainda separam a saúde mental da saúde corporal, mas é tudo uma coisa só”.