Como era a vida dos jovens LGBTs do interior paulista nos anos 1980?
Livro e documentário mostram como gays, lésbicas e transexuais viveram os obstáculos e alegrias da época
Reportagem publicada em 29 de janeiro de 2018
Por Thamires Motta
“Teve um exame que me levaram, que os próprios parentes fizeram meu pai me levar, me deram choque errado, foi um escândalo na época. Mas tudo passa, você acostuma, graças a Deus”. A fala embargada, calma e cheia de memórias é do cozinheiro aposentado José Célio Montoro, que viveu a juventude nos anos 1980 em Lençóis Paulista, interior de São Paulo, como quase qualquer adolescente comum. A diferença é que o objetivo do exame não era tratar um problema de estômago ou coração, e sim mudar sua orientação sexual, considerada “errada” por gostar de alguém do mesmo sexo.
José Célio ganhou destaque nos carnavais de rua dos anos 1980, se apresentando com plumas e vestidos pomposos sob o nome artístico de Maricélia. Em um livro e documentário, oito entrevistados têm histórias parecidas para contar, revelando obstáculos, dores e superações próprias e de amigos, contando sobre como fazer parte do chamado grupo “GLS”: gays, lésbicas e simpatizantes.
Idealizado pelo pesquisador Rafael Bazo Jr, essas histórias se tornaram o livro e documentário “Diversidade Cultural e de Gênero no Interior Paulista nos Anos 80”, que busca resgatar as vivências dos jovens daquela época, relembrando o processo de aceitação, apoio ou rejeição da família, o surto da AIDS e a busca por diversão e acolhimento.
“Nós temos poucos registros da homossexualidade no passado, menos registros ainda quando se fala do interior. A grande maioria dos homossexuais do interior ia para a cidade grande para poder ter uma vida. No interior a religiosidade era mais forte também, tinha a questão do nome das famílias tradicionais, era mais difícil se assumir”, comenta Rafael em entrevista ao JORNAL DOIS. “Eu queria fazer um registro de pessoas que viveram naquela época e ficaram aqui no interior. Eu também percebi que as famílias dos homossexuais daquela época evitam falar sobre a sexualidade deles quando morrem, então acaba sendo empurrado pra debaixo do tapete” diz.
O pesquisador e Coordenador de Cultura de Lençóis Paulista entrevistou homens gays, mulheres lésbicas, heterossexuais e drag queens que relataram memórias ainda atuais para pessoas LGBT. “Até os anos 1990, o ‘homossexualismo’ remetia à doença, isso ainda é muito recente se for parar pra pensar. Eu acho isso um retrocesso, aliás, estamos vivendo um momento de retrocesso. Não existe cura para o que não é doença. Já é sabido que a homossexualidade sempre existiu. A questão deve ser ensinada com naturalidade, para que essas pessoas possam se sentir acolhidas e não estigmatizadas como sempre acontece”, relata Rafael.
Descoberta e aceitação
O livro e o documentário recordam algumas das cenas mais comuns do cotidiano de um jovem que se descobre gay, lésbica ou transexual. Primeiro, a confusão com relação à sua própria sexualidade, o sentimento de não-pertencimento e o medo de ser rejeitado pela família ou amigos. Depois, a importância de encontrar espaços onde possam se sentir acolhidos e aceitos, tendo a vida noturna como pano de fundo principal no interior paulista, espaço ainda cheio de estigmas, preconceitos e conservadorismo.
Casas noturnas e bares eram os principais pontos de encontro da juventude LGBT daquela época. Fazer amigos e namorados e poder comportar-se da forma como se sentiam mais livres eram situações que ajudaram esses jovens a aceitar sua própria imagem e se firmar perante o mundo. “A diversão também é uma forma de protesto, para que os LGBTs sejam vistos. Sempre falam que é só diversão, mas é uma forma de dizer ‘ei, eu tô aqui, eu existo’”, diz Rafael.
O pesquisador destrinchou como eram as relações dos jovens LGBTs sem o acesso à tecnologia como conhecemos hoje, e as mudanças nas relações sociais com as notícias sobre a chegada da AIDS, que era considerada uma doença nova e misteriosa. Junto de um caminhão de desinformação, os anúncios compreendiam que os principais portadores da doença eram pessoas LGBT, o que foi rapidamente consumido pela população e ajudou a aumentar o estigma e o preconceito contra homossexuais. “Ninguém sabia, na verdade, o que era. Na mídia víamos, só gay que morria, porque eram os que faziam sucesso e as pessoas comuns que também morriam, não tinham repercussão”, relembra no documentário João Sérgio Pimentel, servidor público em Macatuba.
Para a drag queen Rubya Bittencourt, o surto da AIDS chegou feito um tsunami. “Quando a nossa geração percebeu que a AIDS era real e que as pessoas estavam morrendo por causa dessa doença, a gente foi inconscientemente se preparando para perder outros amigos antigos. Todo mundo estava com medo. Perdi muitos amigos”, relata ao documentário. “O estigma dos anos 1980 foi tão forte que o preconceito continua, com aquela imagem do Cazuza com a AIDS, e é complicado desconstruir essa imagem”, comenta Rafael Bazo Jr.
O livro e o documentário também abordam os obstáculos que mulheres lésbicas enfrentavam diante do desconhecimento de sua sexualidade e ter que conviver com mais um preconceito: o machismo. A bauruense Maria Cristina Haga foi uma das pioneiras a abrir e administrar uma boate voltada exclusivamente para o público LGBT: a “Tina’s”, que ficava na Avenida Duque de Caxias. Ela revela ao documentário que o estigma era tão grande que o público entrava correndo na boate, para não ser visto e posteriormente taxado de homossexual.
A professora Isabel Cristina vive em Lençóis Paulista, é mãe de dois filhos e viveu por 23 anos um relacionamento heterossexual, até apaixonar-se por uma mulher. “Eu acho que as pessoas que não se assumem sofrem muito. Às vezes de não estragar a vida dos pais, dos mais próximos, e acaba estragando a dela e de outras por não fazer aquilo que deseja”, conta ao documentário.
A drag queen Rubya Bittencourt se coloca como a primeira empresária de Bauru a trazer uma boate exclusivamente LGBT para a cidade, a Fake Club. “Fizemos um sucesso maravilhoso que incomodou a prefeitura na época”, conta. A artista rememora com nostalgia a importância da casa noturna, que trouxe shows nacionais e internacionais para o interior, e agregava pessoas de toda a região. Mas, assim como a maioria dos entrevistados, ela também passou por discriminações, seja por causa de sua sexualidade ou seu trabalho artístico. Já a cabeleireira Francine Pomini percebeu-se transexual ainda na adolescência, mas relata que não sofreu grandes traumas por ter contado sempre com o apoio da família.
O livro traz de uma forma aprofundada e delicada as semelhanças entre pessoas que descobrem que há algo “diferente” acontecendo dentro delas, perpassando dores na infância e o descobrimento do amor. O autor revela que também teve que lidar com preconceitos, cenário comum na vida de muitos LGBTs. “Quando adolescente eu percebi que alguma coisa estava errada, como se alguma coisa estivesse fora do lugar. Nessa época, eu fui perguntar para uma professora o que era ‘viado’. Me chamavam de ‘viado’ o tempo todo e eu queria descobrir o que significava”, diz. Rafael reforça que encontrar outras pessoas iguais a ele e sentir-se confortável para se expressar é um ponto importante para viver e ser feliz, não só para sua vida, como também de seus entrevistados.
“Tentei suicídio uma vez, tudo por causa disso. E aí deixei tudo de lado, falei: não, vou enfrentar a vida. E como enfrentei”, finaliza um sorridente José Célio Montoro, certo de que a liberdade de ser quem é foi conquistada lentamente. Mas valeu a pena.
Assista ao documentário:
Últimas
- Conselho Municipal da Juventude é formado e inicia atividades
- EDITORIAL: Vote por um Conselho Tutelar laico, humanizado e representativo
- Quais são as candidaturas ao Conselho Tutelar?
- Grito dos Excluídos e os desdobramentos da luta bauruense
- Só a luta popular pode frear o aumento da tarifa de ônibus
Comentários