A casa grande entre senzalas urbanas
Espaços públicos de Bauru são construídos sob a perspectiva de um apartheid social, que seleciona quem é que pode acessá-los
Reportagem publicada em 8 de janeiro de 2018
Por Ana Carolina Moraes, Giovana Amorim, Laura Botosso e Yuri Ferreira
A segunda metade da reportagem sobre a separação social, racial e espacial na cidade aborda se os processos de revitalização urbana são mesmo para melhoria e desenvolvimento da cidade ou se buscam assegurar a manutenção de interesses e privilégios.
Casa Grande
Enquanto isso, na zona sul da cidade, alguns locais se sobressaem aos olhos do público bauruense frequentador desta região. A avenida Getúlio Vargas, com sua pista de corrida e caminhada, ao lado da ciclofaixa, permitem a quem por ali transita uma agradável experiência rente aos limites da área do Aeroclube de Bauru, sombreada por árvores de pequeno e médio porte e por outras infraestruturas ocasionais — servindo tanto a quem pede descanso e hidratação (na presença de bancos e bebedouros públicos), quanto àqueles e àquelas que desejam aprimorar sua bateria de exercícios, nas duas academias ao ar livre distanciadas por menos de 5 quadras. Isso sem mencionar a renomada praça da Copaíba nas quadras 18 e 19, área que acolhe a árvore que originou seu nome, considerada patrimônio da história de Bauru.
Do outro lado da Alameda Dr. Octávio Pinheiro Brisolla, a pouquíssimos quarteirões da entrada do Aeroclube, ergue-se o Bauru Shopping, primeiro espaço de compras fechado do município. Ainda tratando de consumo, a região entre a Praça Portugal e a Brisolla é favorecida pelo Walmart e pelo Confiança Max: o primeiro, uma das maiores multinacionais varejistas; o segundo, a principal loja da rede de mercados Confiança.
O coração da zona sul, longe de constituir particularidade nata de Bauru, foi se aproximando do modelo atual a partir da década de 1990, período em que o comércio da região foi impulsionado pela abertura do Bauru Shopping, alcançando um desenvolvimento de até 40% ao ano nos pontos de transação.
Os primeiros projetos da Getúlio Vargas datam de forma equivalente à primeira revitalização da Praça Rui Barbosa. Entre 1960 e 1970, o limite do crescimento urbano descendente em direção ao município de Agudos era marcado pela Praça Portugal. Surgindo de um prolongamento da rua Gustavo Maciel, as pistas que viriam a ser avenida foram estendidas, sempre em frente.
Foi durante o mandato do ex-prefeito Nilson Costa (2000–2004), um grande investimento público na área foi empreendido para a continuação da duplicação da avenida a partir da Inácio Alexandre Nasralla, rua que acompanha a gleba do Aeroclube. Lotes em seu entorno foram desapropriados para a reforma se estender até os residenciais privados Samambaia e Paineiras, época também da implantação do calçadão de caminhada.
Costa considerava a Getúlio Vargas muito importante para o progresso da região sul. Não a toa, atualmente os condomínios na região dos Residenciais Villaggio e Alphaville, este último ultrapassando a rodovia Eng. João Batista Cabral, abrem a discussão sobre duplicação da avenida Affonso José Aiello, ligação destes condomínios à Getúlio Vargas.
Apartheid Social
O Apartheid foi uma política de segregação racial na África do Sul, durante a maior parte do século XX. Neste cenário as divisões eram espaciais e evidenciavam a separação entre negros e brancos. O regime de segregação racial também vigorou nos Estados Unidos até que a última lei segregacionista caísse, em 1967. Até hoje, no entanto, a cultura norte-americana guarda em suas raízes uma forte delimitação de espaços físicos ou sociais entre as etnias que compõe.
A diferença desta política para a realidade de Bauru é que a segregação não é declarada. A lógica da segregação social delimita os territórios e demarca os espaços sociais em que as classes subalternas podem — ou não estar. E para isso, criam-se instrumentos para a manutenção desta realidade, como não ter ônibus que ligue o Edson F. Silva ao restante da cidade nos finais de semana e ausência de atividades culturais e de lazer no bairro, que já não conta com estruturas para promover o convívio social.
“A cidade vem, ao longo do tempo, sendo construída por todas as classes, mas a classe dominante, que tem relação com a imprensa, com os grandes capitais, com os políticos que são protegidos, é ela que detém as influências políticas que optam por valorizar as suas regiões, que indicam onde o poder público deve injetar recursos”, expõe o professor José Xaides.
Bauru tem 371.690 habitantes, mas apenas de 38,5% da população bauruense está incluída no mercado de trabalho. Apesar disso, as pessoas entre 20 e 64 anos de idade somavam 216.718 no começo desta década. 73% da população bauruense é branca; os 27% negros da cidade não são vistos circulando nas áreas formais da região centro-sul aos finais de semana. Encontramos a população negra nas áreas acêntricas mais distantes do centro, com maior carência estrutural, ou de segunda a sexta-feira em horário comercial na região centro-sul, onde trabalham, muitas vezes, sem carteira assinada.
“TÔ SUJO?”
Adilson Santos é um trabalhador informal que ocupa a região central de Bauru durante os horários e dias comerciais — período que, para quem tem seu sustento olhando carros ou limpando os vidros dos automóveis no semáforo, pode se estender também aos fins de semana. Ele enxerga e sente na pele negra essa realidade segregacionista. Quando perguntado se frequentava a zona sul da cidade, o repórter do Fatos da Rua afirmou ser “muito difícil, porque tenho cisma. Você passa por aqueles lados, a Polícia passa, vê você e já [te] para”. É uma advertência, uma abordagem, ocorridas com frequências diferentes de quando se está nas regiões acêntricas, conta ele.
Independente de como se está vestido ou do motivo que leva até avenidas como a Getúlio Vargas ou a alameda Octávio Pinheiro Brisolla, o aparelho de segurança pública e os/as frequentadores/as desses locais vão demonstrar desgosto quando pessoas menos privilegiadas adentram seu território:
“[quando] vou atrás de serviço, sou abordado do mesmo jeito. As pessoas também olham diferente. Com medo, atravessando calçada. Outros esperam você passar pra depois sair do carro. Já vi isso, já aconteceu comigo, e tenho certeza que já aconteceu com vários”, relata.
Além de simples descontentamento, a repressão destinada às pessoas negras e com baixo poderio econômico por parte da Polícia Militar e de instituições de segurança privadas, nestas áreas em específico, são também ferramentas de legitimação da desigualdade sócio espacial, que constantemente perpassam a humilhação verbal e/ou psicológica, por vezes atingindo também a violência física.
Kelvin Dalana, jovem de 21 anos que olha carros para se sustentar em situação de rua, frequentava um ponto fixo na Getúlio Vargas, em frente ao restaurante Estância Grill, atrás do Aeroclube. Com o dinheiro que junta de seu trabalho, Kelvin tinha o costume de acordar e comprar no Confiança Max as “bolachinhas” que faziam a primeira refeição de seu dia. Apesar de relatar que os seguranças do estabelecimento “ficam cercando” outros moradores de rua, “jogando ofensas e piadas”, foi um policial à paisana que o chamou pelo nome no dia em que cumpria sua rotina diária no mercado. A primeira vista um cidadão comum, Kelvin perguntou de onde o conhecia. “Sou polícia, por que, Zé? Vai, vaza!”, alertou o membro da Polícia Militar, sem farda ou qualquer outro indicativo de que estava em horário de serviço. Sacando o RG e jogando o documento no chão em frente ao homem, Kelvin reiterou que é “cidadão igual o senhor”; independente que mora na rua, “tô vindo aqui comprar”. “Você vai ver, rapaz, você vaza e se você ficar aqui falando, vou te prender. E você não vai mais olhar carro aqui na Getúlio”, intimidou o policial.
Devido a essa ameaça sustentada por um abuso de autoridade, Kelvin não se arrisca à voltar ao espaço público que antes chamava de seu. “Eu tenho medo. Ele me ameaçou de bater, prender. Aí eu saí de lá”, afirmou o cuidador de carros.
Enquanto entregava currículos nos estabelecimentos da Getúlio Vargas, em uma quarta feira, José Eduardo Barbosa, morador em situação de rua que integra a massa de 61,5% de bauruenses desempregados, se dirigiu ao Confiança Max para tomar o café gratuito que os/as consumidores/as deste mercado amiúde fazem fila para beber. Na saída, Eduardo reparou que o segurança da loja o encarava. “Tô sujo?”, brincou ele com o funcionário. Ainda nos limites do edifício, nada aconteceu ao morador em situação de rua. Foi justamente ao alcançar a via pública que Eduardo foi imobilizado por 6 seguranças do estabelecimento, ao passo em que se reunia ao grupo a Polícia Militar, dando ordem para que deitasse no chão de bruços, com as mãos para cima. O mesmo segurança que o encarou na saída do mercado então chutou a cara de Eduardo, quebrando seu nariz e abrindo um corte que o obrigou a levar 18 pontos. Cinco dias após o ataque, a cicatriz de Eduardo ainda se destacava em seu rosto, assim como as manchas vermelhas no interior do olho esquerdo.
“NEGÓCIO DA CIDADE”
Em 2007, o Brasil foi anunciado como país sede da Copa do Mundo da FIFA. De lá para cá, choveu investimento para projetos de revitalização de centros históricos e reforço na segurança pública para que o evento, que ocorreria em 2014, fosse bem visto pelo mundo todo. A ideia, no entanto, não é nova: a região central antiga da cidade de São Paulo, nas imediações da Praça da Luz, por exemplo, passa por tentativas desse tipo de ação desde os anos 1990.
Revitalizar é uma palavra positiva, portanto, quem ouve acredita que a intenção é de melhorar espaços públicos das cidades para todos os habitantes. Mas a quem tais propostas favorece?
A professora doutora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) Ermínia Maricato pensa que o conceito de revitalização, muito questionado pela literatura sobre Urbanismo, conforme o exemplo da área da Luz em SP, não passa de máscara para uma ideologia que justifica planos de especulação imobiliária: “sempre que há investimento — público ou privado- em uma determinada área urbana haverá valorização e consequentemente uma disputa para a apropriação das rendas fundiária ou imobiliária decorrentes dessa valorização. Esse é o núcleo central do ‘negócio da cidade’: disputar rendas decorrentes de valorização”.
A maioria dos espaços alvos desses projetos, Maricato afirma, são muito vivos, onde existe concentração de empregos e bastante movimento, o que levanta a questão sobre a necessidade e a intenção por trás disso. “Não há o que ‘revitalizar’ mas sim reformar, melhorar, recuperar. (…) Eles dizem combater a chamada ‘degradação’, por exemplo, e tem como consequência expulsar a população de menor poder aquisitivo”, elabora. A expulsão tem objetivos bem claros: atrair a classe média como potencial consumidora para esses lugares — que já possuem moradores.
Fazendo uma simples observação de como as cidades são estruturadas, é fácil perceber que o modelo empregado é voltado para o tráfego de carros e não pela mobilidade urbana de cidadãos que possuem o direito constitucional de transitar e construir uma convivência agradável entre si próprios e seus afazeres diários.
Em 2004 foi elaborado um Plano Diretor Participativo que visa, em teoria, reforçar e garantir a participação e a igualdade de todos os habitantes na construção da urbanidade dos municípios brasileiros. A prática, porém, passa longe do objetivo, pois os interesses da população que habita as zonas acêntricas dos mesmos são ignorados de forma cínica.
“Tenho uma opinião formada de que os Planos Diretores, assim como o arcabouço legal urbanístico conquistado a partir da Constituição Federal de 1988 no Brasil — um dos mais avançados no Sul Global — não logrou mudar aspectos estruturais da imensa desigualdade territorial brasileira. Planos, assim como leis, são aplicados de forma desigual nas diferentes áreas da cidade. E isso tem a ver com classe social, cor e gênero como mostram, de forma indiscutível, os indicadores sociais distribuídos pelo espaço urbano. Um bom exemplo dessa evidência pode ser encontrado nos mapas da rede Nossa São Paulo, ou Nossa Brasília ou Nossa Belo Horizonte”, sustenta Maricato. E também diz que o boom imobiliário que ocorreu no país entre 2009 e 2014 foi responsável por deixar as cidades “mais dispersas e menos sustentáveis”, analisando por um viés ambiental e econômico, além de segregar ainda mais a massa populacional de baixa renda.
Em Bauru, o Plano Diretor desenvolvido de 2005 a 2008 diz que “a setorização do Município, aprovada na II Conferência da Cidade, procurou respeitar os limites das bacias hidrográficas, contemplando as políticas nacionais e estaduais de preservação do meio ambiente e de desenvolvimento sustentável” e declara que as etapas envolvem, entre outras coisas, a participação de representantes de toda a sociedade civil, algo que na prática não ocorreu.
As Áreas de Preservação Ambiental (APA) da cidade tiveram seus espaços violados para a construção de edificações residenciais e os moradores de situação financeira precária não tiveram suas pautas atendidas e continuaram sendo realocados para as margens do território municipal. A comparação entre a região Getúlio-Brisolla e bairros como o Jardim Nicéia (e os vizinhos UNESP e condomínios adjacentes) deixa tudo mais claro.
A professora Ermínia Maricato reflete que pouco mudou para melhor, em verdade, após a implementação dos Planos Diretores pelas cidades brasileiras: “as viagens se ampliaram, os custos da infraestrutura aumentaram, os preços dos imóveis e aluguéis subiram muito além da inflação. Não foi por falta de leis e planos que tudo isso aconteceu. A função social da propriedade e da cidade está prevista em nossa Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e, muito frequentemente, nos Planos Diretores. Mas contrariar as elites locais, fortemente envolvidas com negócios imobiliários é muito difícil”.
Outro aspecto a ser levado em consideração ao se falar de propostas de revitalização de espaços públicos é a guerra às drogas que promove mortes e desumanização das populações das favelas e das ruas do país.
Essas pessoas e os grafites oriundos de suas culturas são encaradas pelos governantes como fatores de composição da narrativa de degradação, logo, precisam de intervenção. “O caso da mudança pela qual passou o centro antigo do Rio de Janeiro mostrou isso. Segundo o TCC do arquiteto Faulhaber 67.000 pessoas foram removidas dali, a maior parte moradoras de favelas, para áreas distantes. Um plano de ‘renovação’ foi implementado com muito investimento público”, diz Maricato, que chama isso de “urbanismo do espetáculo”.
Ela afirma também que a melhor opção para a realização de uma cidade viva e segura é “fazer recuperação de áreas centrais com manutenção de moradia popular”. “Como já destacou Jane Jacobs, nos anos 50, quando ativista, na cidade de Nova Iorque. Mas isso exige contrariar uma elite que reluta em abandonar privilégios calcado em séculos de escravismo e patrimonialismo”, finaliza a professora.
Esta é uma reportagem opinativa que está dividida em duas partes. Para ler a primeira parte, acesse: goo.gl/A4HkWR. A apuração e checagem das informações expressas seguem o rigor jornalístico orientado com base em uma hipótese elaborada pelos repórteres.
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