Grito dos Excluídos e os desdobramentos da luta bauruense
Encontro realizado no Dia da Independência reuniu movimentos sociais da cidade; pautas levantadas geraram debates e manifestações ao longo do mês de setembro
Publicado em 10 de outubro de 2023
Por Joyce Rodrigues
Edição de Paula Bettelli
“É uma alegria ver que estamos reunidos em pleno feriado para discutir temas tão importantes”, declarou Matheus Versati, conselheiro estadual do Sindicato dos Professores do Ensino Estadual de São Paulo (APEOESP Bauru), na abertura da 29º edição do Grito dos Excluídos e Excluídas. O evento aconteceu na tarde do feriado da Independência, 7 de setembro, no Armazém do Campo Bauru, e reuniu coletivos, sindicatos e movimentos sociais para discutir temas locais e nacionais de luta social.
Na mesa de debate, temas como reforma agrária e ocupação de terras, luta contra a aprovação da tese do Marco Temporal, aumento da tarifa do transporte público e possibilidade de privatização do Departamento de Água e Esgoto (DAE) foram discutidos pelos participantes.
Durante a programação, ouvintes da plateia foram convidados a debater os temas e apresentar os coletivos do qual fazem parte. Ao final, uma dinâmica em grupo foi realizada para que sugerissem mobilizações relacionadas às pautas discutidas. “Foi uma maneira de integrar militantes de diversos movimentos, que muitas vezes lutam pela mesma causa e não se conhecem”, explicou Versati, que conduziu a dinâmica. Um mês depois da atividade, os representantes presentes no encontro relataram ao J2 quais foram os desdobramentos na cidade das pautas discutidas na ocasião.
Marco Temporal e Reforma Agrária
Lilian Eloy, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-Sudeste), se emocionou ao falar sobre as mobilizações indígenas no Distrito Federal. “É muito triste ver mães com bebê no colo, embaixo do sol forte, lutando por algo que não deveria estar acontecendo”, relata Lilian, em referência aos acampamentos montados no Palácio do Planalto para acompanhar o julgamento da tese do Marco Temporal – aprovado no Senado Federal em 27 de setembro e enviado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para sanção.
Durante o evento, Lilian contou sobre as dificuldades enfrentadas para estar presente em Brasília nas manifestações contra a tese. “Tínhamos 300 reais para alimentar mais de 30 pessoas, precisamos escolher entre almoçar e jantar. E escolhemos a janta, todos os dias”, desabafa Lilian. A coordenadora ainda relatou as dificuldades de estar longe da família por tanto tempo entre os períodos de viagem. Com atuação direta nas articulações entre organizações indígenas, Lilian chegou a passar mais de um mês na estrada, sem voltar para a sua aldeia. “Dói muito ficar longe dos meus filhos, da minha família, mas sei que também estou lutando por eles”.
Para o julgamento realizado no dia 20 de setembro, a previsão era de que 50 indígenas das aldeias da Terra Indígena de Araribá, localizada em Avaí, pudessem estar presentes em Brasília. No entanto, por falta de recursos, não foi possível realizar a viagem. “Ainda continuamos nossa luta por aqui. Todo o planeta está com os olhos na questão indígena do Brasil. Só os brasileiros é que não acordaram pra gravidade da situação”, declarou Lilian.
A tese do Marco Temporal prevê alterações nas políticas de demarcação de terras indígenas no país. De acordo com a proposta, somente as terras indígenas já ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, poderiam ser reivindicadas pelos seus residentes. Em discussão há mais de 10 anos, a tese jurídica foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 21 de setembro. Uma semana depois, em 27 de setembro, o Senado aprovou o projeto de lei 2903/23, referente ao Marco Temporal, após pressão da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA).
“Terras que ainda não foram homologadas, em processo de demarcação, e algumas que já foram aprovadas, seriam passíveis de revisão. Com certeza, fomentaria uma disputa territorial imensa e inúmeros crimes contra os povos indígenas, uma vez que as principais causas desses delitos são as disputas territoriais”, explica Ricardo Terena.
Ricardo Terena, advogado e assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ARPIN Sudeste), avalia as decisões como uma “queda de braço” entre os poderes. “O Senado afrontou uma decisão do Supremo, aprovando uma lei antes mesmo do voto final. Nossa expectativa é de que o presidente Lula vete o projeto, tanto pela inconstitucionalidade quanto por outras problemáticas, como a exploração das terras indígenas”.
Para o advogado, a pressão popular é fundamental para derrubar a aprovação da tese. “A existência de povos indígenas em um território já foi comprovada como a maneira mais eficiente de preservação ambiental. Retirá-los desses locais, na situação climática em que estamos, vai ser determinante para uma possível extinção humana”, alerta Ricardo.
Em conjunto com o tema da luta pela terra, foi abordada a questão da Reforma Agrária, tema central defendido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Fundado em 1984, o MST nasceu com o objetivo de expor e lutar contra a concentração fundiária, ou seja, a grande concentração de terras nas mãos de poucas famílias – resquício da ocupação colonial do território e distribuição desigual de propriedades.
A Reforma Agrária reivindica a reparação à essa distribuição desigual de terras, além de garantir a proteção ao meio ambiente e assegurar a produção de alimentos, gerando renda e promovendo justiça social no campo.
Na Constituição Federal, o Estado brasileiro assume a responsabilidade de desapropriar, para fins de reforma agrária, imóveis que não estejam cumprindo sua função social, baseada em três princípios: nível mínimo de produtividade; respeito à legislação ambiental; e observância às leis trabalhistas e do bem-estar social.
Antonio Gringo explica que as mudanças tecnológicas no trabalho do campo e a centralização do agronegócio na economia fazem com que o tema se torne ainda mais urgente. “A financeirização do campo a partir da expansão do agronegócio vem causando impactos profundos com a produção de commodities e uso intensivo de agrotóxicos em detrimento da soberania alimentar da população do campo e cidade”, explica Gringo. Para o assentado, é fundamental trazer essa pauta para ser refletida e discutida com a classe trabalhadora urbana. “Entendemos que essa proposta pode melhorar a vida das pessoas, mitigando a insegurança alimentar que atinge a população”.
Aumento da tarifa e privatização do DAE
Dois temas locais discutidos durante o Grito dos Excluídos geraram mobilizações diretas ao longo do mês de setembro na cidade. Matheus Versati elucidou questões sobre o aumento da tarifa do transporte público em Bauru – com reajuste para R$5,00 aprovado pela Prefeitura de Bauru na última terça (3). Para Versati, não há o que justifique o aumento. “O transporte público não é um luxo, é uma necessidade. Temos ônibus lotados e poucas linhas funcionando, não houve nenhuma melhoria”, declarou.
Em coluna para o J2, Versati relatou o histórico de manifestações reivindicando acessibilidade no transporte público na cidade, e reforçou a necessidade da mobilização popular para barrar o aumento.
No dia 29 de setembro, a sede do Partido Socialista (PSOL) de Bauru organizou um encontro aberto à população para definir ações de enfrentamento ao aumento da passagem. O comitê “Frente Circula Bauru”, criado a partir do encontro, tem como objetivo principal publicar materiais para conscientizar a população sobre os impactos do aumento.
“São impactos ambientais, financeiros e até psicológicos na vida do trabalhador. Ter acesso ao transporte público funciona como redução de danos, porque garante que o trabalhador possa também ter direito ao lazer”, reflete Versati.
Andrezza Marques, integrante do Instituto Formando Mentes Coletivas, reforça as condições precarizantes na vida de trabalhadores. “Pegar ônibus lotado por uma hora, sem ar condicionado, gera um estafe no trabalhador. Como ter um dia a dia digno tendo que passar por uma humilhação assim?”, questiona.
Eleita conselheira pelo Conselho Municipal da Juventude neste ano, Andrezza também destaca a ligação da pauta com as classes mais jovens. “É uma pauta que atinge diretamente o jovem trabalhador, principalmente os que trabalham em bares noturnos, que não tem ônibus para voltar pra casa”. Entre as demandas reivindicadas pela Frente Circula Bauru, os organizadores elencam a redução imediata da tarifa, a volta das linhas noturnas (diminuídas em 90% no período de pandemia) e melhores condições aos motoristas.
Helton Dangio, fiscal de sistemas hidráulicos, levou ao Grito dos Excluídos informações sobre o andamento da possibilidade de concessões à iniciativa privada do Departamento de Esgoto e Água (DAE).
De acordo com Helton, o projeto apresentado por Leandro de Joaquim, atual presidente do DAE – o terceiro no cargo na gestão de Suéllen Rosim (PSD) – se trata de uma “tragédia”. “O DAE cumpre sua função social. Temos a tarifa mais barata do estado. Oferecemos recálculos de contas com problemas de hidrômetro e vazamento. Nenhuma outra empresa de São Paulo faz isso”, declarou Helton, em referência à tarifa mínima vigente na cidade, de R$27. O servidor ainda comparou os valores com as tarifas de Jaú (SP), a 50 km de Bauru, que teve a tarifa mínima reajustada entre R$80 e R$90 reais após a concessão à empresa privada Águas de Jahú, responsável pelo fornecimento de água e esgoto na cidade desde 2015.
Em julho de 2023, a proposta de modelo de concessão foi apresentada pela Prefeitura de Bauru na Câmara Municipal. Inicialmente, a concessão prevê a conclusão e operação da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Vargem Limpa. Os estudos de concessão foram feitos pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (FIPE), com previsão de concessão por 30 anos. Para Helton, funcionário do DAE há 5 anos, a medida é uma “privatização velada” do órgão. “O DAE é uma autarquia municipal de 60 anos, com expertise para terminar a obra. Temos engenheiros competentes, mas não temos gerência”, desabafa Helton.
“As contas vão triplicar. Vão ser realocados 800 servidores ativos, mais de 100 funcionários não serão realocados. Vamos perder gratificações, insalubridade, periculosidade. Não tem projeto nem estudo que prove a viabilidade dessa concessão. O DAE não vai se sustentar, e o peso cai para os consumidores”, alerta Helton.
Durante o mês de setembro, integrantes de conselhos municipais e servidores do DAE estiveram presentes em audiências públicas sobre o tema, para repudiar o projeto de lei – enviado para aprovação em regime de urgência para a Câmara pela prefeita Suéllen Rosim. No dia 1º de outubro, servidores da autarquia estiveram na Feira do Rolo, no centro da cidade, distribuindo panfletos sobre o cenário atual com o objetivo de conscientizar a população.
Nelson Fio, ex-servidor do DAE, esteve presente na panfletagem e ressaltou a importância de conscientizar a população para a questão. “A gente falava pra pessoa que a conta ia aumentar em 90% e elas se assustavam. Não estão cientes da gravidade” declarou. Funcionário do DAE há 30 anos atrás, Fio acompanhou de perto a criação do Fundo de Tratamento de Água e Esgoto – projeto de lei do então prefeito Tuga Angerami (PDT), em 2005, e hoje se declara “totalmente contra” a possibilidade de concessão para a iniciativa privada. “A população já pagou essa Estação de Tratamento de Esgoto, e agora não podemos passar para as empresas privadas ganharem dinheiro”, alegou Fio. Helton Dangio alega que as ações de conscientização estão apenas começando. “Pretendemos continuar as panfletagens nos bairros de Bauru e organizar um simpósio para esclarecer à população os riscos que estamos correndo”, reforça Helton.
Conexões da militância
No encontro do Grito dos Excluídos, uma dinâmica foi realizada pelos organizadores, para que militantes de diferentes organizações pudessem se conhecer e elaborar propostas para os temas debatidos.
Matheus Faustino, trabalhador autônomo e militante do Coletivo Ação Libertária, se uniu a outros militantes para discutirem sobre o aumento da tarifa do transporte público.
Para ele, a falta de condições para se locomover na cidade resulta no isolamento e na marginalização de parcelas da sociedade. “Pensamos muito no diálogo com a população e com os trabalhadores do transporte, para entender suas demandas, necessidades e construir a nossa luta”, ressalta Faustino, em relação às sugestões colocadas pelo grupo. Com a mobilização criada contra o aumento da tarifa, Faustino acredita ser uma oportunidade de “construir alianças” entre os movimentos sociais. “É um processo de construção coletiva, pra dialogar e construir pontes entre as muitas frentes de luta”, pondera.
Ana Luísa, estudante do 2º ano do Ensino Médio, é frequentadora assídua do Armazém do Campo, e relata ter tido contato direto com a militância no evento. Na dinâmica, Ana fez parte do grupo destinado à discussão sobre Reforma Agrária. “Conversamos muito sobre como todos ali tinham uma pauta em comum, que era a ocupação de espaços que são tirados de nós”. A estudante também ressaltou a importância do Armazém do Campo como uma “ponte” de ligação entre a cidade e o campo. “Aqui temos acesso a produções orgânicas, o que ajuda a conscientizar a população sobre agricultura alternativa que não desrespeita a natureza”, relata.
O Armazém do Campo, inaugurado em dezembro de 2022, realiza debates, oficinas e exibições audiovisuais como forma de convidar a população a conhecer a importância da luta do Movimento Sem Terra (MST) na cidade. Joice Lopes, coordenadora do local, relata que em menos de um ano, mais de 20 eventos já foram realizados com esse intuito. “Foi especial contar com quem de fato é excluído da sociedade. Queremos denunciar o agravamento da fome, da violência e da perseguição, a versão mais cruel da desigualdade”, relata Joice, ao se referir à organização do Grito dos Excluídos.
“Tivemos a oportunidade de apresentar o que é reforma agrária e os assentamentos que temos na região e as pessoas nem sabiam. Acreditamos na importância da luta coletiva, e não de ações pulverizadas.”, pontua Joice Lopes.
Frei André Gurzynski, assessor diocesano da Pastoral da Ecologia Integral da Diocese Bauru (PEI-DB), se considerou “profundamente tocado” com as questões levantadas pelo direito à terra. “A questão dos povos indígenas e da reforma agrária estão diretamente ligadas à nossa luta”, relatou André.
A Pastoral da Ecologia Integral participou pela primeira vez do Grito dos Excluídos na cidade. José Aparecido, coordenador da pastoral, detalha que não se trata de uma “pastoral da natureza, das plantas e dos animais”: a luta da organização vai além do “ambientalismo”. “Queremos promover a conscientização sobre questões ambientais, a solidariedade à população indígena, apoio às hortas comunitárias e comunidades agrícolas, e o diálogo ecumênico e inter-religioso”.
Para o coordenador, as discussões levantadas no Grito dos Excluídos são essenciais para a luta dos movimentos sociais na cidade. “São temas inseridos no direito à cidadania. Com o crescimento do neoliberalismo no Brasil, o ‘consumidor’ passou a ter direitos e o ‘cidadão’, não. É importante retomar essas pautas, e ter um posicionamento contra a política reacionária”, relata.
O Grito dos Excluídos também foi uma oportunidade de “fortalecer laços” com as comunidades indígenas da região. “Queremos interagir mais com as lideranças, temos interesse em um trabalho mais integrado e estamos disponíveis para somar nas lutas populares”, reforça André.
Com o tema “Você Tem Fome e Sede De Quê?”, a 29º edição do Grito dos Excluídos e Excluídas reuniu mais de 120 manifestações ao redor do país no feriado da Independência. Organizado desde 1995, o tema do encontro é definido a partir da articulação de movimentos sociais, e dialoga diretamente com a Campanha da Fraternidade, realizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A escolha do tema considera a atualidade política, social, econômica e cultural do país. Em Bauru, o evento é organizado anualmente por sindicatos, coletivos, partidos políticos e militantes.