27 vagas a menos? As fraudes nas cotas raciais da Unesp
Universidade desligou estudantes após constatar irregularidades na matrícula
Reportagem publicada em 18 de dezembro de 2018
Por Ana Carolina Moraes
“Ninguém imaginava a possibilidade de pessoas tentarem fraudar o processo [de autodeclaração], em razão dos aspectos negativos que sempre caracterizou as sociedades racistas, como a brasileira, de associar-se a pretos e pardos”, comentou o professor Juarez Xavier sobre o processo de criação das cotas raciais nas universidades. Ele é presidente da Comissão Permanente de Averiguação de Fraudes no Sistema de Reserva de Vagas para Pretos e Pardos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e acredita que, quando a Unesp aderiu às políticas públicas, em 2013, ninguém cogitou a possibilidade deste processo ser fraudado.
Na última sexta-feira (14), a instituição anunciou o desligamento de 27 estudantes por irregularidades nas matrículas. Segundo a publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo, a Unesp considerou como inválida a autodeclaração desses alunos que ingressaram no ensino superior por meio do Sistema de Reserva de Vagas para Pretos, Pardos e Indígenas, as cotas raciais, mas não atendiam os requisitos previstos por lei.
A ação foi inédita entre as universidades estaduais de São Paulo. Para Xavier, “a Unesp é vanguarda na adoção da política”, referindo-se ao fato de que a instituição foi a primeira adotar cotas raciais para os vestibulares.
Dos 27 estudantes expulsos da Unesp, três cursavam o ensino superior no câmpus de Bauru. Todos os alunos foram notificados oficialmente sobre o desligamento na sexta-feira e, além de não fazerem mais parte do quadro discente da universidade, eles estão proibidos de participar do vestibular da Unesp pelos próximos cinco anos.
Juarez explica que, dentro da universidade, não cabe mais recursos para a decisão do desligamento — ela é definitiva. Durante o processo de averiguação de fraudes foi assegurado aos estudantes o direito à ampla defesa.
“Esse é um recurso administrativo que a universidade tem. Do ponto de vista administrativo interno, essa decisão não pode ser alterada, a não ser que haja uma determinação da justiça”, pontua o presidente da Comissão.
A expulsão dos acusados de fraudar o Sistema de Reserva de Vagas para Estudantes Pretos e Pardos levantou o debate sobre a Lei de Cotas no Brasil. O processo para adoção de políticas públicas para os vestibulares começou a ser discutidos em 1995. Na esfera nacional, as cotas raciais passaram a ser lei em 2012.
“Eu fazia parte do grupo de discussão sobre as cotas e quem coordenava, na época, era o meu orientador do doutorado, Prof. Kabengele Munanga. Em nenhum momento pensou-se mecanismos de controle das autodeclarações”, confessa Juarez Xavier, que também é Assessor da Pró-Reitoria de Extensão da Unesp. “Foi a constitucionalidade da Lei das Cotas que demandou a criação de comissões de verificação. Foi lá que surgiu, por exemplo, o conceito de heteroidentificação”. A heteroidentificação acontece quando outras pessoas confirmam as informações sobre a cor da pele declarada; o procedimento tem sido adotado em concursos públicos desde abril deste ano.
O Brasil é um dos poucos países do mundo que adotou uma política de ação afirmativa para maioria populacional. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), 54% da população brasileira se autodeclarava com negra em 2015.
No mesmo ano, o número de estudantes negros no ensino superior era 12%, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), dado que representa um aumento de cerca de 9% em comparação com a quantidade de negros na universidade em 1995. Um dos fatores que ajudam a explicar este avanço em 20 anos é justamente a política de cotas, já que o aumento significativo no ingresso de estudantes negros no ensino superior se dá a partir da década de 2010.
Além desse crescimento, de 2012 para cá surgiram também denúncias de supostas fraudes no sistema de reserva de vagas para pretos e pardos em universidades públicas federais e estaduais. Um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo apontou que uma em cada três universidades federais investiga alunos brancos que se autodeclararam pretos ou pardos: das 53 instituições federais que participaram da pesquisa, 21 apuram casos de inconsistência na autodeclaração de 595 estudantes, no total.
Xavier comenta que, mesmo assim, nem todas as universidades que aderiram às cotas raciais recentemente, criaram comissões de averiguação. É o caso da USP e da Unicamp. “As universidades aqui de São Paulo, no início das ações [de adesão às cotas raciais] que foi agora em 2018, decidiram por não criar comissões de verificação”. Para ele, o processo de adoção das políticas de verificação está ligado ao processo interno de ação política dessas instituições: “onde houve um debate mais acentuado, com a presença do movimento negro, houve uma ação mais intensa [de combate às fraudes], em especial nas universidades federais”, conclui.
Eu, junto com mais 7.258 pessoas aprovadas no vestibular em 2014, faço parte da primeira turma da Unesp que contou com ingressantes pelo Sistema de Reserva de Vagas para Estudantes Pretos, Pardos e Indígenas. À época, o processo seletivo do vestibular reservava 15% das vagas para estudantes vindos da escola pública e, dentro desta parcela, 35% eram destinadas aos candidatos que se autodeclararam como pretos, pardos e indígenas.
Para exemplificar o que a reserva de vagas representa na prática, uso como base o curso de jornalismo para o período diurno, que oferecia 40 vagas no vestibular de 2014, sendo que: 6 vagas estavam “reservadas” para quem estudou em escola pública, e dentre essas, duas vagas para quem, além da escola pública, se identificava como preto, pardo ou indígena. As outras 34 vagas eram de ampla concorrência. E caso estas 6 vagas não fossem preenchidas, elas voltavam a somar como vagas do sistema universal, ou seja, todos que prestaram o vestibular sem solicitar nenhuma “cota”, poderiam disputá-las.
De lá para cá são 4 anos e 5 processos de vestibulares. A porcentagem de reserva de vagas passou de 15% em 2014 para 50% em 2018; mas a quantidade destinada aos candidatos pretos, pardos e indígenas ainda é 35%.
A Unesp ainda não tem uma estimativa sobre a quantidade de denúncias que foram averiguadas este ano. Juarez Xavier, Presidente da Comissão Permanente de Averiguação, estima que, como dado bruto, a universidade tenha recebido cerca de 800 denúncias. “Com o processo de mineração, ou seja, distinção dos casos que devem de fato ser verificados, que são as reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e a opção de pretos e pardos nesse universo, o número de verificações cai muito”, explica Xavier.
“Nós, da Comissão Permanente, fizemos a apuração de um pacote com quase 100 casos”. O presidente conta que foram arquivados aquelas situações nas quais as pessoas pediram desligamento ou não confirmaram matrícula. Houve poucos casos em que os recursos foram aceitos, os quais se tratavam de estudantes negros que não tinham comparecido às entrevistas e tiveram a autodeclaração invalidada pela comissão local; “nós revertemos esses casos, de pessoas negras e pardas hetero-identificadas que não puderam participar das entrevistas”, explica. Além disso, 27 foram encaminhados à Reitoria.
“Esses primeiros casos passaram por um crivo da assessoria jurídica e os 27 casos notificados são aqueles que esgotaram todas as possibilidades de recursos e que não havia mais nenhuma dúvida.”
Para investigar as denúncias de fraudes nas cotas raciais, além da Comissão Permanente de Averiguação, todas as unidades da Unesp — 34 espalhadas pelo estado de São Paulo — criaram Comissões Locais de Averiguação. Estas comissões eram formadas por um representante do Núcleo Negro Unesp para Pesquisa e Extensão (NUPE), um docente e um representante discente.
Débora Amarante, estudante de engenharia de produção da Faculdade de Engenharia de Bauru (FEB), foi a representante discente da Comissão na unidade. Ela conta que, durante o processo de averiguação, a justificativa mais absurda para a autodeclaração como negra foi de uma pessoa que se apresentou como negra porque aos 12 anos ela foi acusada de um roubo na escola. Amarante observou que os estudantes podem ter cometido essa irregularidade tanto por ignorância e desconhecimento quanto por má-fé. “Tinha uma galera que passou por lá que aparentava ter pouca grana e baixo capital cultural e social, mas foram poucas”, pontua a estudante. Para ela, “o processo de averiguação contribui, a longo prazo, para que mais pessoas negras ingressem — de fato — na universidade”.
Em dezembro de 2016, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) desligou 24 estudantes de medicina que fraudaram o sistema de cotas raciais. A justificativa apresentada pela Reitoria da instituição foi que a expulsão aconteceu “em função do não reconhecimento da condição de cotistas”.
A expulsão foi publicada em 30 de dezembro daquele ano e, logo em seguida, a Faculdade de Medicina anunciou a abertura de um edital de transferência de cotistas para o preenchimento das vagas em 2017. “Não se trata de ‘vagas’. Trata-se de um projeto de universidade e sociedade que coíba a hegemonia daqueles que insistem na manutenção de privilégios individuais”, declarou Georgina Helena, chefe do núcleo de ações afirmativas e diversidade da UFPel em entrevista à Ponte.
A Unesp ainda não informou o que vai fazer com as 27 vagas que ficaram ociosas depois do desligamento dos estudantes.
“A comissão sugeriu a abertura de um edital para convocar alunos para ocuparem esses espaços, a exemplo do que a Universidade Federal de Pelotas fez, quando expulsou os alunos de medicina”, comentou Juarez Xavier, Presidente da Comissão da Unesp.
A sugestão é de um edital de transferência externa para estudantes negros que estudaram em escola pública — o perfil que deveria estar ocupando as 27 vagas desde a aprovação do vestibular. Entretanto, Xavier ressalta que essa decisão não depende apenas da comissão ou da Reitoria. A proposta de abertura do edital deverá ser encaminhada para os Órgãos Colegiados da Unesp, que iram decidir sobre a destinação destas vagas.
No começo da noite desta terça-feira, os Coletivos Negros da Unesp divulgaram uma carta aberta em apoio ao trabalho das Comissões de Averiguação de Fraudes no Sistema de Reserva de Vagas para Pretos e Pardos. O documento, assinado por sete grupos, traz que os estudantes vão “cobrar a administração da universidade para que todos os casos sejam justamente averiguados, afirmando que 27 é o começo para uma política de cotas mais consolidada e justa”.
Esta é uma reportagem opinativa. A apuração e checagem das informações expressas seguem o rigor jornalístico orientado por uma hipótese elaborada pelo repórter.
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