Livro conta a história do lar que criou mais de 17 mil meninas em São Manuel

A partir das lembranças de sete ex-internas do Lar Anália Franco de São Manuel, estudantes da Unesp Bauru narram um século de vidas no interior paulista. O casarão recebia crianças órfãs ou deixadas pela família desde 1916

Publicado em 7 de junho de 2019

Fachada do LAFSM em 2019 (Foto: retirada do livro, acervo pessoal)
Por Bibiana Garrido

A maioridade significava poder escolher entre sair para o mundo lá fora ou ficar com as irmãs. Era assim que as moradoras se chamavam umas às outras, de acordo com o livro “Filhas do Anália Franco: Memórias de um Lar Coletivo”. Escrito por Nathalia Machado, Helena Ortega e Matheus Souza, trata-se de um livro-reportagem que conta a história do lar que criou mais de 17 mil meninas abandonadas em São Manuel, 73 quilômetros de Bauru. De todos os cantos do estado de São Paulo, conta o livro, vinha gente deixar suas filhas por ali.

Publicado como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo na Universidade Estadual Paulista (Unesp), “Filhas do Anália” entrevistou sete ex-internas do lar para construir essa história que começa no meio da Primeira Guerra Mundial: de 1916 a 2018, o Lar Anália Franco de São Manuel (LAFSM) criou e cultivou laços que duram até hoje na vida de quem passou por lá.

Muito mais que irmãs, haviam também as filhas e as mães. Meninas que se mostravam mais maduras e responsáveis, na visão das coordenadoras, tinham que “adotar” uma mais nova para ajudar a cuidar. Era assim porque o lar vivia cheio de gente e não tinha babá para todo mundo. Mais de 100 internas passavam por lá a cada ano. Então, as “mamães de mentirinha” tinham suas filhinhas e todo mundo colaborava: limpeza, comida, higiene. As filhas do Anália protegiam umas às outras.

“No final de 2018, eu estava indo para a Unesp com uma amiga de ônibus”, lembra Natália de quando teve a ideia para escrever o livro. “No caminho, ela me contou algumas histórias sobre o orfanato em que a mãe dela havia crescido, e isso despertou meu interesse”. A parceria para fazer o projeto rolar foi fechada logo em seguida: “Liguei para o Matheus e contei sobre a minha ideia. Percebendo que teríamos muito trabalho, resolvemos convidar a Helena para também participar”.

Filhas abandonadas depois de grandes, outras deixadas ainda bebês. Todas se misturavam sem entender o porquê do abandono. Era comum, na época, que os pais, ou amigos dos pais, levassem meninas de 6, 7 anos para deixar no LAFSM. Assim funcionava uma espécie de internato à moda antiga. Responsáveis voltavam anos depois para buscar as filhas já crescidas. E o orfanato, para as meninas que não tinham família fora dali, funcionava do mesmo jeito. Quando jovens adultas, podiam escolher se continuavam ou se iam embora.

Capa do livro-reportagem produzido por Natália Machado, Helena Ortega e Matheus Souza, estudantes da Unesp no câmpus de Bauru

Anália Franco nunca deixava faltar de comer a ninguém. Do lar, saíram dois negócios para sustentar as tantas bocas: uma gráfica e uma padaria, essa que por muitos anos foi a única de São Manuel. Suas filhas se dividiam entre as tarefas de cuidar da casa, das meninas mais novas, e o trabalho nos negócios. Com o clima de família, das férias passadas na Praia Grande, dos aniversários comemorados com bolo e festinha, das brincadeiras no quintal, das turmas de meninas juntas na escola, o LAFSM virou casa para milhares de crianças e adolescentes. Mesmo depois de grandes, moradoras sempre voltavam para comemorar o Natal ou o Ano Novo. Para quem nunca teve família, foi o lar ao qual sempre puderam retornar.

Pesquisar, estudar e escrever esse livro, segundo os autores, foi mais do que colocar em prática o “como fazer” do jornalista aprendido em sala de aula. “O que nos deixou mais feliz, com certeza, foi que todas elas queriam muito falar, contar a história daquele local”, diz Natália. Foi em janeiro de 2019 que o trio de estudantes começou a visitar as cidades de São Manuel e Botucatu para falar com as ex-internas. Quase todos os finais de semana, se encontravam com as entrevistadas para conversar sobre o lar por três ou quatro horas seguidas.

Disponível de graça na internet, “Filhas do Anália Franco: Memórias de um Lar Coletivo” é de linguagem simples e narrativa que transporta o leitor para dentro do casarão secular. “Acredito que essa experiência agregou muito a nós três, que passamos a perceber várias coisas de uma forma diferente, como a questão da família. Conhecemos sete mulheres fantásticas, com histórias de vida incríveis. O ganho foi imenso”, conclui Natália. Junto de Matheus e Helena, os outros dois autores, ela pretende inscrever o trabalho em congressos e concursos para jornalistas.

Hoje, o lar não funciona mais como antigamente. Em vez de ser meio internato, meio orfanato, para meninas, atende três projetos sociais com o apoio da Prefeitura de São Manuel. Fortalecimento de vínculos para adultos e idosos, arrecadação e distribuição de alimentos doados e atividades no contraturno escolar são o foco e responsabilidade do LAFSM, sendo que 96% das despesas são pagas pela gráfica do lar.

As sete ex-internas que participaram da elaboração do livro como entrevistadas vivem na região e acompanharam o projeto até o resultado final. Outras filhas do Anália também leram sua história pronta. “Tivemos, até agora, um retorno muito positivo. Algumas outras ex-internas, que não estão no livro, nos mandaram e-mail nos agradecendo e parabenizando pelo nosso trabalho”, relata Natália. “A maioria das meninas sempre nos dizem a mesma coisa: essa história tinha que ser contada”.

Para ler o livro completo, acesse o link: filhasdoanalia.com.br. E dá para seguir o projeto no Instagram @filhasdoanalia.