Um olhar sobre a realidade árida da produção artística no Brasil e em Bauru

Fazer teatro, dança, música e demais produções em um país que enfrenta dificuldades financeiras, políticas, sociais e morais é um desafio a ser enfrentado por qualquer artista

Coluna publicada em 6 de janeiro de 2018

Por Felipe Monteiro, colunista do JORNAL DOIS

Em agosto de 2017, uma reunião de negociação ocorreu entre José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo responsável por um dos melhores teatros do mundo, segundo o jornal inglês The Guardian, e Silvio Santos, conhecido popularmente como o patrão do Brasil e dono da rede SBT de entretenimento. O objeto da negociação, um terreno vazio. A batalha entre os dois grandes nomes é travada há anos.

O terreno que circunda o Teatro Oficina pertence ao grupo financeiro do magnata da televisão. O espaço está vazio, conta apenas com vegetação daninha e uma frondosa árvore que pode ser vista de dentro do teatro, plantada pela própria Lina Bo Bardi, arquiteta modernista que assina o prédio do Oficina. Essa paisagem se encaixa no contexto das obras teatrais, já que os painéis de vidro formando enormes janelas deixam a iluminação natural entrar e completar as construções cenográficas das peças de Zé Celso.

Teatro Oficina, motivo de disputa judicial entre Zé Celso e Sílvio Santos (Foto: Markus Lanz/Divulgação)

O grupo Silvio Santos, conglomerado empresarial e midiático que conta com o canal televisivo SBT, uma rede de hotéis e produtos comerciais, tem interesse em construir torres empresariais em seu terreno. O projeto acabaria com o elemento natural do Teatro Oficina, o que é proibido, já que o tombamento do Oficina impede qualquer tipo de construção que possa obstruir a vista do prédio. A disputa já está em nível judicial, tendo Silvio Santos o apoio do prefeito de São Paulo, João Doria, e contando com vitória na justiça que reverteu o tombamento do teatro.

 

Zé Celso, Sílvio Santos, João Dória e Eduardo Suplicy em reunião de negociação pelo futuro do Oficina (Fonte: Youtube)

Muito além do âmbito pragmático e neoliberal da questão encontra-se um dilema enfrentado por todos aqueles que trabalham com cultura e arte em nosso país. Passamos por um momento em que a valoração social se baseia em princípios financeiros que parecem poder passar por cima de tudo, inclusive de uma lei de fomento. Arte e cultura passam a ser desconsiderados por essa lógica que prioriza o produto rentável ao invés dos elementos essenciais para a formação do cidadão e construção da identidade dos grupos.

Em Bauru, a realidade é semelhante, mas se manifesta de outra forma. Em 2017, tive contato com o grupo Núcleo Solar de Teatro, uma iniciativa encabeçada pelo diretor e professor de teatro Elio Andreotti e pertencente à Divisão de Ensino às Artes (DEA) da Secretaria de Cultura de Bauru. Completando sete anos de jornada, o grupo passava por um momento de transformação. Depois de tanto tempo com produções de reflexões densas a respeito da normalidade e dos problemas sociais e humanos, com cenografias escuras e tons sombrios, o Núcleo produziu a peça Tistou,baseada na obra “O menino do dedo verde” de Maurice Druon. A produção trouxe novos ares ao grupo, levou flores e colorido para o seu reportório.

Cena da peça Tistou, realizada pelo Núcleo Solar, em Bauru (Foto: Reprodução/Núcleo Solar)

Para fazer parte do Núcleo Solar é preciso se inscrever no projeto em fevereiro. A DEA abre os cursos gratuitos de ensino às artes todo ano. Segundo Nilson Junior, diretor da divisão, os cursos são para formação de profissionais da área de música, dança, pintura, artes da cena além de fomento de público consumidor. Os projetos contam com verba para se manterem, o que contempla estrutura física e alguns materiais para aprendizado como papel e tintas. Demais materiais, segundo o diretor da DEA, são de responsabilidade dos próprios estudantes, como fica implícito no documento de matrícula.

O período que passei com o grupo teatral foi uma verdadeira experiência de como produzir arte sem recursos. A peça que seria apresentada, além de repertório de estudos de Elio Andreotti, era parte da formação dos estudantes. Em Tistou, figurinos e cenografia foram produzidos sem qualquer financiamento externo.

A inventividade do diretor artístico Rafael Maia requeria estruturas ousadas para a situação financeira do grupo. O problema foi solucionado com a ajuda dos próprios estudantes e suas famílias. Todo o material para produzir vestes de flores, soldados, médico monstros, uma família rica entre outras personagens e elementos de cena vieram de doações de cortinas, tecidos, roupas e dinheiro por parte de todos os integrantes do grupo.

Elio relatou que nesses anos todos de Núcleo Solar sempre contou com pessoas habilidosas, estudantes empenhados que acreditavam na arte e ofereciam seus saberes e materiais para construir as peças e montagens. Quando questionado sobre a verba da Secretaria de Cultura para a DEA e as produções, o diretor comparou a situação com a obra de Franz Kafka “O processo”. A burocracia excessiva e disfuncional aliada de uma área de baixo interesse para governo fazem da Divisão de Ensino às Artes um centro público mirrado.

Professor Elio Andreotti (Foto: Reprodução/Núcleo Solar)

Tanto no cenário nacional como regional, o que ocorre com as artes é uma verdadeira aridez. “Mais que uma aridez política e econômica, que se pode ver pois se materializam como doenças alopatas, vivemos também uma aridez do ser”, comenta. Quando alguns valores são subvertidos por contendas econômica, como o caso do Oficina no qual um patrimônio cultural é subjugado por um grupo comercial, percebe-se a aridez humana na qual estamos metidos. Uma crise que dificulta severamente a produção artística e cultural paralelo a uma visão de mundo com valores materiais não é uma coincidência, mas sim uma relação de causa e consequência.

“Vivemos um flagrante da ruptura do sistema e seus desdobramentos obviamente afetam a cultura, a arte, saúde e a educação públicas. No Núcleo Solar temos uma professora da rede pública que relata os processos de sucateamento do ensino público”, expõe Elio.

Sobre o futuro do grupo teatral que faz parte e do panorama das artes em geral, a perspectiva do diretor é otimista, que esse ciclo terá um fim como tudo na vida e que sabe que pode contar com a chama acesa que alimenta as pessoas que fazem arte para mantê-la viva.

Em meio a decadência de certas estruturas sociais e políticas, fazer qualquer tipo de produção artística e cultural é um ato de resistência. A falta de recursos leva àquilo que move o Núcleo Solar, a esperança de continuar criando. E nacionalmente também repercute-se a situação, uma produção essencial para a reflexão humana sobrevivendo somente de esperança.

As colunas são um espaço de opinião. As posições e argumentos expressas neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do JORNAL DOIS.