“Ser radical é ter menos de 1% do Cerrado e querer desmatar”, diz presidente da SOS Cerrado Bauru

Prefeitura e Câmara apoiam a construção de empreendimentos de uso sustentável em Áreas de Proteção Ambiental. Conversamos com a ONG que está em campanha para preservar o que ainda resta do bioma na cidade

Reportagem publicada em 3 de abril de 2019

Vegetação nativa do Cerrado está fragmentada por todo o estado de São Paulo; em Bauru, APAs concentram regiões de proteção ao bioma, e podem agora ser loteadas para construção de empreendimentos (Foto: Bibiana Garrido/JORNALDOIS)
Por Bibiana Garrido

partir do momento que permitir a construção nas APAs, esse pessoal de imobiliária vai descer a máquina. Vai descer a motosserra mesmo. A gente deixa de discutir a proteção ambiental por causa dessas novas oportunidades para o desmatamento”. Erik Mulato é presidente da ONG SOS Cerrado Bauru e fala ao Jornal Dois sobre as perspectivas para a preservação de um dos 35 biomas mais diversos e mais ameaçados do mundo, o Cerrado.

Originalmente a cobertura do Cerrado ocupava 14% do território do estado de São Paulo. O que resta da mata nativa hoje representa 0,83% desse total. “Pressão antrópica” é o nome dado pelo Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica e do Cerrado para explicar o tamanho do desmatamento. Desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Bauru, o documento elaborou protocolos assinados com a SOS Mata Atlântica em 2015: representava um compromisso do poder público com a preservação.

Desde 1996 a legislação bauruense tem medidas para que a ocupação do solo por pessoas esteja em sintonia com a proteção do meio ambiente. Foram delimitadas três Áreas de Proteção Ambiental (APAs) em Bauru no primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. Água Parada, Vargem Limpa/Campo Novo e Rio Batalha teriam de ser organizadas e administradas a partir do que ficasse decidido em seus respectivos planos de manejo. Um desses planos, o da água Parada, ficou pronto — e já foi, inclusive, editado— os outros dois estão em processo.

Limites das Áreas de Proteção Ambiental em Bauru; juntas, ocupam 66% do território do município (PDP/Reprodução)

revisão do plano de manejo da Água Parada se deu no final de 2017, logo depois de serem aprovadas mudanças no segundo Plano Diretor Participativo (PDP) de Bauru, publicado em 2008.

A ordem de serviço para a empresa Arcadis Logo elaborar o Plano de Manejo da APA Vargem Limpa/Campo Novo foi assinada em 2018. O prazo para o documento ser concluído vai até agosto de 2019.

Já o plano de manejo da APA do Rio Batalha foi apresentado aos vereadores no final de fevereiro.Elaborado pela empresa STCP Engenharia de Projetos, o material foi disponibilizado aos parlamentares para que sugestões e apontamentos possam ser feitos antes da publicação do estudo.

Encaminhadas pela prefeitura para a Câmara Municipal, as mudanças no PDP visavam regularizar a urbanização nas APAs. O “destravamento” de Bauru foi vinculado à expansão nessas áreas, algo prometido pelo prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSD) desde a campanha eleitoral. Seria impossível fazer loteamentos nas APAs sem mexer no PDP.

O uso sustentável das unidades de conservação está condicionado, na Lei Federal n° 9.985 , ao compromisso com seus respectivos planos de manejo e conselhos gestores . Em fase de elaboração, os documentos das APAs municipais Rio Batalha e Vargem Limpa/Campo Novo, seguem também a tentativa de conciliar meio ambiente e ocupação urbana.

Para Erik, não há possibilidade de equilíbrio. “Eles vivem falando que ambientalistas são radicais. Ser radical é ter menos de 1% do Cerrado e querer desmatar”, argumenta, sobre a iminente construção de empreendimentos em unidades de conservação.

Berço das águas

“Se você deixar os planos de manejo na mão das pessoas que tem interesse em desmatar, ou em usar essas áreas para plantio, pasto, gado, não tem lógica. Vão defender o que vai gerar lucro”, analisa Erik. A SOS Cerrado Bauru faz parte do conselho gestor da APA Água Parada.

Reconhecido pela característica de savana florestada, o Cerrado tem vegetação composta por arbustos espalhados entre árvores baixas, retorcidas, de raízes longas e folhas grossas. A aparente secura externa esconde seu potencial aquífero. “Primeira coisa que as pessoas falam é que o Cerrado é mato”, critica ele. “Não, não é mato. É um berço das águas, rico em plantas medicinais e balanceador do nosso clima”. Das 12 maiores bacias hidrográficas do país, oito nascem nesse bioma.

O presidente da ONG SOS Cerrado vê nas três características as bases para a existência da fauna, da flora, e da população humana na região. “A preservação do Cerrado está ligada com a nossa necessidade de água, de temperatura adequada. Temos pesquisas em desenvolvimento na Unesp que envolvem o tratamento do câncer com plantas dessa origem florestal”. A capacidade curativa das espécies encontradas na região de Bauru é maior se comparada a outras partes do Cerrado no país. É o que mostra reportagem da TV Unesp para o caso da diabetes.

As Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e as Áreas de Proteção Permanente (APPs) guardam rios que são responsáveis pelo abastecimento de água. Bauru tem 465 nascentes, localizadas em sua maioria (93%) na zona rural. Segundo o Plano Municipal da Mata Atlântica e do Cerrado, 316 delas estão degradadas. “A existência de inúmeras nascentes”, diz o documento, “é uma grande responsabilidade do ponto de vista da manutenção dos recursos hídricos locais e regionais”. E prossegue: “O rio Bauru chega ao rio Tietê com enormes blocos de espuma, extremamente contaminado”.

Pressões antrópicas

Há 11 anos a SOS Cerrado Bauru defende a preservação do bioma na região. Foi fundada em 2008, um ano antes da implantação no estado de São Paulo da Lei do Cerrado, considerada “um avanço para a proteção do Cerrado no estado”, garante o presidente. “Nem o Cerrado, nem a Caatinga, são considerados patrimônios nacionais como a Amazônia. Antes dessa lei, não havia algo para evitar o desmatamento em São Paulo. Mas isso na teoria, né? Ainda acontecem crimes ambientais. A região do Vale do Igapó é onde mais tem, justamente por conta da especulação na venda de chácaras”.

Até 1962 a mata se manteve 96,9% preservada em nível estadual. Os dados são de uma pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto Florestal da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Desde 1970, aponta relatório de 2018 da WWF, o Cerrado brasileiro foi desmatado em 50% — mais que o dobro dos 20% derrubados na Floresta Amazônica no mesmo período. Um estudo publicado na Pesquisa Fapesp mede o tamanho do desmatamento entre 1990 e os anos 2000: duas vezes o tamanho da Inglaterra.

Sete bilhões de toneladas de gás carbônico foram liberadas na atmosfera por conta disso.

O Cerrado que ainda não foi derrubado ficou espalhado em pontos isolados uns dos outros no estado de São Paulo e na região de Bauru. A “extrema fragmentação”, avalia o Plano Municipal de preservação, “é o principal desafio para manter as áreas protegidas”.

“Não é aceitável desmatar”, defende Erik. “O que nós temos hoje é o que restou do Cerrado e isso tem que ser preservado. A gente gostaria da proteção integral de todas essas áreas, sejam elas fragmentos ou não. Não dá pra aceitar essa flexibilização da lei que vai permitir o desmatamento”.

O posicionamento oficial da SOS Cerrado Bauru é de oposição às alterações na lei municipal do Plano Diretor Participativo e na estadual Lei do Cerrado — sinalizada pelo governo Márcio França (PSB) em diálogo com autoridades públicas de Bauru e continuada pela gestão João Dória (PSDB). Os vereadores Coronel Meira (PSB), Markinho Souza (PP), Serginho Brum (PSD) e Yasmim Nascimento (PSC) encabeçaram as negociações. A ONG SOS Cerrado defende a preservação de todas as áreas nas quais ainda existe vegetação nativa.

Em Bauru, o trabalho da ONG inclui a fiscalização das áreas de Cerrado e seu estado de conservação. O grupo realiza palestras em eventos e escolas para falar da importância do bioma, e também organiza campanhas de conscientização e orientação durante o ano.

Destravamento e desmatamento

As declarações públicas desde o início do mandato e no plano de governo de Clodoaldo Gazzetta (PSD) ligam o discurso da expansão do perímetro urbanoe do destravamento da cidade com a flexibilização das leis que protegiam as APAs.

“Uma APA é criada exatamente para que você tenha as pessoas morando nessa área e também a proteção da natureza e do meio ambiente”, diz o prefeito em um vídeo institucional. Gazzetta também fala sobre a função do plano de manejo, e destaca: “esse documento é importante porque vai possibilitar com que a prefeitura, as pessoas que moram nessas áreas, e pessoas que têm interesse também de ter construções nessas áreas, possam chegar em comum acordo de onde que tem que ser protegido, e onde você pode usar de maneira sustentável”.

Nos tons de laranja e amarelo, fragmentos da cobertura de Cerrado no estado de São Paulo (FFLCH-USP/Reprodução)

O uso sustentável é definido pela lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) da seguinte forma (art. 2°): “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável”.

Na mesma lei (art. 15), entende-se legal “um certo grau de ocupação humana” nas APAs, unidades de conservação que tem como objetivo “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais”.

Permitir a construção em APAs, de acordo a proposta do poder público, seria útil para ampliar o perímetro urbano e liberar ainda mais o crescimento da cidade. “A gente entende que tem muitos vazios urbanos”, lembra Erik, “agora o que a gente gostaria de entender é como funciona isso de uma pessoa ter uma área grande dentro da cidade, e nunca ser usada. É melhor ir grilar uma terra pra expansão imobiliária? E as indústrias, cadê elas que não estão no Distrito Industrial? Parece que fica mais fácil desmatar porque ninguém vai encher o saco”. Como já discutido pela reportagem do Jornal Dois, 30% do território municipal está ocupado por terrenos vazios, sem utilização.

“Não concordamos com o desmatamento. O atual prefeito foi bem decepcionante, até porque ele alega que todas as alterações seriam para proteger o Cerrado, mas tá aí pedindo flexibilização para construir. Não é um cara que tá preocupado com o meio ambiente, é um falso ambientalista”, critica o presidente da SOS Cerrado. “Bauru não tá travada pelo Cerrado, ela tá travada por um conceito muito retrógrado que é a especulação”.

(Foto: Bibiana Garrido / JORNAL DOIS)