O que não te contaram sobre a faculdade de medicina da USP em Bauru

Universidade em crise, mudanças na gestão dos hospitais e futuro incerto do Centrinho envolvem a jogada que trouxe o novo curso para a cidade

Reportagem publicada em 28 de novembro de 2017

“O sonho se tornou realidade”, estampa o cartaz na portaria da USP em Bauru (Foto: Lucas Mendes/JORNAL DOIS)
Por Lucas Mendes

 

Anunciado com pompa e festa, o novo curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Bauru vai trazer uma reorganização em todo o sistema de saúde na cidade.

Uma das dificuldades para manter a nova configuração da saúde em Bauru é financeira: a universidade, o estado de São Paulo e o município de Bauru alegam passar por um momento de “crise”, com a necessidade de cortar despesas e evitar gastos.

A USP é uma universidade que pertence ao estado de São Paulo, e seus gastos dependem do orçamento estadual. Já o arranjo que deverá ser feito com a saúde no próximo ano envolve a atuação da Prefeitura, sob a gestão da Secretaria Municipal de Saúde.

Ou seja, a situação pode ser entendida em duas frentes: estadual e municipal. O Jornal Dois traz informações importantes sobre cada ponto. Acompanhe a seguir o desenrolar do tema no campo estadual.

Convênio com o Estado

Em julho de 2017, o Conselho Universitário da USP aprovou a criação de um novo curso de medicina no campus de Bauru. Esta será a terceira faculdade do tipo na instituição, que já conta com uma em São Paulo e outra em Ribeirão Preto.

O curso de medicina será vinculado à Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) e vai oferecer 60 vagas no vestibular 2018, sendo 18 delas pela seleção do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Junto ao novo curso também será providenciado o funcionamento de um novo Hospital, que atenderá pacientes de Bauru nas áreas de média e alta complexidades, com destaque para cardiologia, bucomaxilo e saúde auditiva, como afirmou o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB).

Para dar conta dessa despesa, a universidade deverá alterar a sua organização interna. A principal mudança será na gestão dos hospitais. A USP deverá firmar um convênio com a Secretaria de Estado da Saúde, que assumiria as atividades hospitalares — tanto do novo hospital, quanto do HRAC (Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais), o conhecido Centrinho.

O prédio de 11 andares com janelas azuis espelhadas localizado dentro da universidade, em frente ao Parque Vitória Régia, será o local do novo hospital. Segundo o Jornal da USP, ele tem uma área de aproximadamente 22 mil metros quadrados e está sendo utilizado parcialmente (o térreo e mais três andares).

A passagem desses hospitais para a gestão da Secretaria Estadual de Saúde é entendida como necessária e se tornou um compromisso da reitoria da universidade. Os trabalhadores da USP, no entanto, têm a visão de que isso vai impactar as atividades já feitas pela universidade.

Prédio dentro da universidade será o novo hospital. Entregue em 2012, ele está sendo utilizado parcialmente (Foto: Lucas Mendes/JORNAL DOIS)

O fim do Centrinho?

“Não só vai impactar, como o Centrinho deixará de existir, pois a partir de janeiro de 2018 a USP não injetará mais nenhum dinheiro no hospital, mantendo apenas a sua folha de pagamento”, sentencia Neli Maria Paschoarelli Wada, diretora do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da USP).

O Centrinho é um hospital especializado na reabilitação de pessoas com fissuras labiopalatinas (fendas nos lábios e céu da boca), anomalias graves na região do crânio e do rosto, síndromes e deficiências auditivas e consequências secundárias desses problemas. Atendendo exclusivamente a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), o hospital é referência mundial na área, e recebe pacientes de todo o Brasil.

“O sindicato descobriu o projeto de desvinculação do HRAC/Bauru durante a Greve de 2014 e de lá para cá estamos lutando contra a desvinculação que foi defendida e aprovada no Conselho Universitário”, explica Neli, que protesta diante da falta de debate com a categoria: “A Profa. Maria Aparecida Machado (Diretora da FOB/USP e superintendente do Centrinho) nunca dialogou com o sindicato sobre a criação da Faculdade de Medicina e toda a nossa intervenção foi feita após informações vindas do próprio governo do Estado e de outros professores que se reuniam com o reitor”.

Centrinho completou 50 anos em junho de 2017. Trabalhadores da unidade temem pela sua existência (Foto: Lucas Mendes/JORNAL DOIS)

“Trata-se de uma nova forma de cooperação entre USP, HRAC e SUS”, afirmou Maria Aparecida Machado. A diretora ainda explica que a nova configuração traz “um impacto muito positivo para o Hospital”. “Cada ente fica responsável por aquilo que é sua expertise: a USP na gestão acadêmica e o Estado na gestão administrativa”, pontua.

Cortes e crises

O Estado de São Paulo mantém 3 universidades: USP, UNICAMP e UNESP. O financiamento dessas instituições se dá por meio do repasse de dinheiro arrecadado com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) — um tributo estadual.

As 3 instituições alegam passar por um aperto nas suas contas, e gastam a maior parte dos seus orçamentos com salários e aposentadorias de funcionários. No caso da USP, em 2016, os gastos com pessoal chegaram a 104,95% do orçamento, segundo as diretrizes orçamentárias da instituição.

O sindicato dos trabalhadores tem outra visão sobre a situação. “A USP não vive uma crise econômica, na verdade a USP vive uma crise de projeto de universidade”, destaca Neli. Para ela, a crise econômica foi uma desculpa para “desmantelar” a universidade e “sucatear” seus serviços “para depois privatizar a universidade”, como prevê.

Diante desse cenário a USP criou, em abril deste ano, seus “Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira ” — documento que determina um teto de gastos, com regras que limitam as despesas com funcionários (os salários não devem ultrapassar 85% da arrecadação da universidade). O parâmetro deve instituir normas para regularizar a situação econômica da USP até 2022.

Para se adequar à nova realidade, a reitoria da USP se valeu de ações como o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), encorajando os servidores a se desligarem da instituição em troca de uma recompensa financeira.

Além disso o documento determina que, uma vez que seja atingido o limite de 85% de gastos com funcionários, a USP não pode criar cargo, emprego ou função, nem admitir ou contratar outros funcionários — sejam professores ou técnico-administrativos.

Falta de profissionais levou alunos de medicina da USP a entrarem em greve (Foto: Natan Novelli Tu/JORNAL DO CAMPUS)

Um dos desdobramentos na diminuição de contratações foi a redução do número de profissionais. No dia 13 de novembro, estudantes da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, entraram em greve contra a redução do quadro de médicos e funcionários no Hospital Universitário (HU, localizado no Bairro do Butantã, na capital). Os estudantes também se posicionam contra o fechamento do pronto atendimento infantil e a previsão de fechamento do pronto atendimento adulto na unidade.

Custo do curso

No dia 1º de agosto foi instalada uma comissão para tratar da implantação do curso, presidida pelo prof. Dr. José Sebastião dos Santos, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), que deverá ser o futuro coordenador do curso de medicina de Bauru.

“Os Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira e o teto de gastos devem ser incorporados à cultura da Universidade de São Paulo, caso ela queira preservar a sua autonomia didático-científica, administrativa, financeira”, afirma José Sebastião. Para o professor, os parâmetros devem orientar o planejamento da comissão de implantação do curso, “bem como as suas atividades e práticas educacionais”, destaca.

De acordo com os dados da análise técnico-financeira sobre a instalação do curso de medicina, elaborada pela USP, o orçamento do novo curso em seu primeiro ano de atividade será de R$ 16,9 milhões. As despesas englobam salários de funcionários e outros investimentos. A previsão para 2022 é que o curso tenha um orçamento de R$ 19,3 milhões.

Segundo números apresentados por Maria Aparecida Machado, diretora da FOB, o convênio com a Secretaria de Estadual de Saúde para gestão dos hospitais universitários em Bauru renderia para a USP uma economia de R$ 2 milhões em gastos com manutenção.

Vereadores de Bauru, deputado estadual Pedro Tobias (PSDB), prefeito de Bauru Clodoaldo Gazzetta (PSD), o governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB), o reitor da USP Marco Antonio Zago, a diretora da FOB Maria Aparecida de Andrade Moreira Machado e o secretário Estadual da Saúde David Uip (Foto: Gilberto Marques/A2img/Portal do Governo)

“É importante frisar que os servidores do HRAC permanecem vinculados à USP”, comenta Maria Machado, afirmando que além de viabilizar o funcionamento da nova unidade hospitalar (prédio azul), esse modelo de cooperação permitirá que o HRAC “preserve e fortaleça sua vocação de atenção às anomalias craniofaciais e deficiências auditivas, e até mesmo amplie sua capacidade operacional, com base nas necessidades locais e regionais da rede pública de saúde”.

Orçamentos

De acordo com os orçamentos das unidades da USP referentes a 2017, a FOB recebe R$ 57,4 milhões para pagamentos de salários de funcionários ativos, além de receber aproximadamente R$ 2,7 milhões como “dotação adicional” (uma verba extra envolvendo manutenção e reposição de equipamentos de informática, serviços de limpeza e de vigilância, transporte, treinamento de recursos humanos e outras despesas não especificadas).

A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) recebe 100 alunos por ano, em curso de período integral, de 6 anos de duração. Segundo afirmou o pró-reitor de graduação da USP, Antonio Carlos Hernandes, a proposta para o curso de Bauru é aumentar gradativamente a entrada de alunos, com 80 vagas em 2020 e 100 vagas a partir de 2021. A partir de então, as duas faculdades (Ribeirão Preto e Bauru) passam a receber a mesma quantidade de alunos.

Em 2017, o custo para manter os funcionários ativos da FMRP foi de pouco mais de R$ 161 milhões, com uma verba adicional de R$ 5,4 milhões. Já o hospital do Centrinho (HRAC) custou aos cofres da universidade um total de R$ 11,2 milhões, entre o custeio básico e adicional. O custo com a folha de pagamento do hospital é de R$ 81,9 milhões.

Para José Sebastião a “propalada desvinculação e o suposto comprometimento das atividades do Centrinho atendem a interesses corporativos e não combina com o conceito e a efetiva operação para integração de esforços por meio do co-financiamento e da cogestão dos serviços de Ensino e Saúde”.

Já Neli Wada acredita que a futura Faculdade de Medicina de Bauru tende a ser, no médio prazo, um curso com poucos professores e de baixa qualidade, “se mantendo apenas na etiqueta USP”, diz. “Vamos torcer para que isto não aconteça, mas a Faculdade de Medicina já nasce com remendos e tudo que é construído na incerteza e com remendos pode rasgar”, completa.