Memórias de 2013: O Bauru Acordou (Parte 2)

Buscando contribuir um pouco para os registros de nossa história, colunista do J2 publica lembranças dos protestos de junho de 2013 e as consequências políticas do movimento na cidade

Publicado em 31 de julho de 2019

"Chegavam informações de São Paulo e do Rio de Janeiro sobre ataques e agressões a pessoas de esquerda que seguravam bandeiras partidárias, inclusive com invasões às sedes." (Foto: Reprodução/Facebook)
Por Arthur Castro, colunista do Jornal Dois

Parte 1

Leia o texto "Memórias de 2013: As Jornadas de Junho", primeira parte da série que resgata a história dos protestos que abalaram o Brasil, e as consequências políticas dos atos no país e em Bauru.

Eu não participei do Primeiro Grande Ato, mas acompanhei a distância, tendo acesso a detalhes através de relatos de amigos que estiveram nele. Ele teve início da Rui Barbosa, e encontrou como resultado cerca de mil pessoas cercando a Câmara dos Vereadores. Me disseram que um dos vereadores chegou a pedir para a Tropa de Choque dispersar a multidão, o que felizmente não ocorreu. Sete ou nove manifestantes – não me recordo o número ao certo – entraram para negociar enquanto representantes do ato. A maioria – ou pelo menos uma boa parte – era de integrantes da Frente contra a tarifa. Pela iniciativa e pelo diálogo com os políticos, acabaram adotando uma posição de “liderança”, que viria a ser, a meu ver, bem problemática.

Foi decidido pela construção de um segundo ato. Esse, eu pude participar. Iniciou-se no centro da cidade, e os “representantes” monopolizaram um caminhão de som e deram ao protesto um ar de micareta. As cerca de 10 mil pessoas foram conduzidas para uma passeata, com direito a Hino nacional cantado em frente ao Confiança da Getúlio Vargas. O microfone foi negado até mesmo para militantes de esquerda que compunham a Frente.

Por um lado, era empolgante, pois nunca havia visto um protesto tão grande assim; por outro, a potencialidade desperdiçada foi decepcionante. Em colaboração com demais membros do Coletivo – em nossa primeira ação conjunta – fizemos críticas à “direção”. Eu até convenci o pessoal a puxar um grito contra o hino nacional, que acabou atraindo outras pessoas de esquerda para o nosso lado. Era um grito que eu tinha visto em um vídeo de ato em São Paulo – curiosamente um ato contra o Bolsonaro em 2011: “ordem e progresso é coisa de fascista, eu quero liberdade, igualdade e justiça”. No fim do Segundo Grande Ato, os organizadores anunciaram uma Assembleia para o fim de semana, a fim de planejar as próximas ações na cidade. Também vieram conversar conosco e entender porque estávamos insatisfeitos, tentando alcançar uma intermediação.

A tal assembleia, que ocorreu no Parque Vitória Régia, foi uma das mais cansativas que tive na vida. Foram mais de dez horas de reunião, sábado e domingo, com cerca de cem participantes. Nós do Coletivo defendemos um programa progressista e com tolerância às bandeiras de partidos políticos (já ouvíamos histórias de agressões em outras cidades) – mas sem nos rotularmos como “esquerda”. As nossas propostas foram aceitas pela grande maioria. Ao final de domingo, decidimos pela construção de outro ato, que deveria caminhar para o fechamento da Rodovia Marechal Rondon.

Não foi um ato grande, me recordo bem. Eram apenas 300 pessoas, inferior às 10 mil do ato anterior. A decisão de ir para a Rodovia não era de conhecimento de todas as pessoas ali presentes, e por isso foi colocada em votação. Um partido político defendeu que a manifestação caminhasse para a Câmara dos Vereadores, mas a maioria aprovou a ida para a Rondon. Em menos de 2h, o prefeito Rodrigo Agostinho aceitou a derrota e anunciou o cancelamento do aumento da tarifa E, UM DOS MAIORES ORGULHOS DA LUTA POPULAR BAURUENSE, O MEIO PASSE ESTUDANTIL. Também foi convocada uma audiência pública na Praça das Cerejeiras, com o próprio prefeito participando. Estávamos otimistas. Novos militantes de esquerda se destacavam, e o próprio Coletivo ganhou integrantes. Os ventos eram favoráveis.

Durante as reuniões e assembleias, foi aprovado que o nome do movimento seria Bauru Acordou. Nós do Coletivo fomos contrários, mas fomos atropelados pela ampla maioria dos participantes. Acabamos por aceitar.

Então fui convidado para uma reunião fechada organizada pelos partidos políticos de esquerda e convidei os membros do Coletivo para irem. Era um sábado, e nesse encontro reservado, os partidos estavam preocupados. Chegavam informações de São Paulo e do Rio de Janeiro sobre ataques e agressões a pessoas de esquerda que seguravam bandeiras partidárias, inclusive com invasões às sedes. Não queriam correr esse risco em Bauru, e defendiam uma unidade de esquerda para atuar em conjunto nos atos.

Eu e os colegas do Coletivo apresentamos discordância: até então, não havia ocorrido qualquer posição anti-partido. Além disso, nenhum dos partidos políticos ali haviam participado das assembleias, nem da construção da paralisação da rodovia. Estavam querendo transportar polêmicas de outros locais para a nossa realidade. Defendemos que participassem de cabeça aberta, buscando construir coletivamente, sem receios. Eles se comprometeram – ainda que com certa má vontade – de participar da próxima assembleia do Bauru Acordou, que seria no dia seguindo, domingo.

A reunião do Bauru Acordou ocorreu no SESC – e depois teve continuação na Casa da Capoeira. Os integrantes de partidos decidiram participar, e propuseram a participação em uma greve nacional que ocorreria. Nós do Coletivo apoiamos, e consideramos que a atuação dos partidos foi coerente e amigável – mas fomos surpreendidos pela reação dos demais ali presentes. Pautados no discurso senso comum, vários se opuseram aos partidos de esquerda, e defenderam que o Bauru Acordou deveria ser “nem direita nem esquerda, em frente”. Ocorreu até um bate boca e uma tentativa de agressão a um membro do Coletivo. Diante da situação, nós nos posicionamos à esquerda, em defesa da participação dos partidos.

Eu resisto em qualificar esse grupo que se opôs a nós como direita, e isso será comprovado ao longo do relato. Apesar de para alguns – como foi para os partidos políticos nesse episódio – ter sido um fenômeno de direita equivalente ao que ocorria no Brasil todo, o desenrolar dos acontecimentos irá levar a muitos desse bloco para a esquerda, aliás, a maioria. Por isso seria injusto classificar uma ignorância inocente, despolitizada, como um ato deliberado de direitismo. Mas não vou me adiantar, apenas apontei isso para esclarecer o porque não irei rotulá-los dessa forma. Eles iriam formar uma organização rival à nossa, denominada Em Frente.

Os partidos políticos de esquerda em Bauru iriam, de modo geral, passar a boicotar a maioria das ações e reuniões do Bauru Acordou, mas, para ser justo aqui, ocasionalmente forneceram apoio a um ato ou outro, como o caso da Prefeitura (que será abordado apenas na próxima parte).

Em Frente e Coletivo Primeiro de Maio

O Bauru Acordou passou a ter então duas grandes forças, rivais, mas sem as quais o próprio movimento não existiria. De um lado estava o Coletivo Primeiro de Maio, do qual eu mesmo fazia parte, e que a essa altura tinha entre 9 a 11 membros. Defendíamos uma guinada à esquerda, um posicionamento socialista declarado. Em contrapartida, o Em Frente, uma coalizão contraditória e diversa, se opunha a nós. Eu tenho dificuldades de classificá-lo de uma forma fácil. Vou descrever o perfil de alguns membros para ajudar a entender como era algo difícil de explicar.

Uma maioria era totalmente despolitizada, com o perdão do termo, na qual muitos acreditavam que o Coletivo era um grupo com conexões partidárias e interessado em dominar o movimento popular. Uma parte até estava disposta a ouvir o nosso lado, mas vários nos odiavam de forma irracional, acreditando nas mais bizarras teorias conspiratórias. Parte se tornaria de esquerda no futuro pós-2013 e outra parte abandonaria a política.

Haviam pessoas autodeclaradas de esquerda, mas que por seus próprios motivos, entendiam que era estratégico manter uma participação no Em Frente, ainda que envolvesse abrir mão de se colocar como esquerda publicamente. Alguns eram mais abertos a dialogar conosco, outros nos criticavam sempre que possível. A maioria continuou atuando após 2013.

Uma minoria de fato era de direita, mas que não se colocavam como tal. Um era ligado a uma ONG “anticorrupção” com laços maçons, veio do movimento estudantil unespiano, e flertava com o liberalismo. Foi o grande responsável por inventar uma teoria da conspiração associando nosso Coletivo a partidos políticos. Outro era um jovem que na época se dizia de centro, mas posteriormente – um ano depois – fundaria o Direita Bauru e hoje está na juventude tucana.

A percepção que eu tinha era que o Em Frente, ou pelo menos boa parte dele, em alguns momentos, agia como uma “panelinha de escola”, onde o que movia o movimento eram picuinhas, mais do que ideologias reais. Muitos dos seus membros nem compareciam em reuniões ou atos, colando apenas nas “festinhas particulares” e “churrascos internos”, mais preocupados com “farra” do que com luta. Se referiam a si mesmos como “família”. Eu arriscaria dizer que parte dos membros estavam mais interessados em se divertir do que em militar. Talvez isso se devesse por ser composto majoritariamente por jovens e, como dito anteriormente, recém ingressados na política.

E essa divisão interna do Bauru Acordou iria ser a causa de muitas dores de cabeças nos meses seguintes.

Continua.

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Parte 1

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