Mais um rodízio, mais falta d’água na periferia

Bairros periféricos são os mais afetados; moradores relatam prejuízos financeiros e profissionais ano após ano. Dano à saúde é maior para mulheres negras

Publicado em 11 de junho de 2021

Moradores dos bairros abastecidos pelo Rio Batalha ficam sabendo do rodízio pelo rádio, ou quando abrem a torneira e não sai água (Foto por Bibiana Garrido/Jornal Dois)
Por Paula Bettelli

No dia 14 de abril, o Departamento de Água e Esgoto (DAE) de Bauru anunciou o início do racionamento de água nos bairros abastecidos pelo sistema de captação do Rio Batalha. A partir do dia 16 de abril as regiões Centro, Bela Vista, Falcão, Ouro Verde e Terra Branca tiveram a distribuição de água modificada. No total, 42 bairros foram afetados.

O rodízio adotado nos três primeiros dias funcionou no sistema de 48 horas. Isso significa que as regiões ficaram dois dias sem abastecimento e um dia com. Em 19 de abril, o DAE comunicou a alteração do revezamento e os bairros passaram a ser abastecidos no sistema de 24 horas: um dia com água e um dia sem.

O motivo divulgado pelo DAE para o corte do recurso é o baixo nível da lagoa de captação. O nível ideal é 3,20m, mas no dia em que a medida foi anunciada, 14 de abril, estava em 2,24m, de acordo com comunicado emitido pela instituição.

Mas a falta de chuva não é o único fator para a privação de água. Dados do Instituto Trata Brasil de 2019 revelam que 47,7% da água é perdida a caminho da distribuição na cidade.

Nos arquivos de imprensa do DAE, é possível encontrar nota sobre o primeiro rodízio no abastecimento de água em Bauru, em 18 de setembro de 2014. Naquele ano, a lagoa do Rio Batalha chegou ao menor nível de captação de sua história, com 1 metro. O racionamento adotado na época durou dois meses.

“Não é de hoje”

Analisando os informes da autarquia é possível identificar que o racionamento de água atual, com início em abril de 2021, é o terceiro adotado de forma oficial. Os outros dois momentos em que a distribuição de água foi anunciada foram em 2014 e em 2020.

Angela Cristina de Oliveira, moradora do Jardim Ouro Verde há vinte anos, afirma que desde 2014 todos os anos sua casa deixa de ser abastecida. “A falta de água aqui não é de hoje. Não é um ano, dois anos, não. De 2014 para cá foi uma coisa absurda. Entre 2015 e 2019 não teve rodízio, mas todo ano falta água. É constante, qualquer morador tem conhecimento disso”, comenta.

Em 2020, Bauru teve a pior instabilidade da sua história no abastecimento de água. O rodízio iniciado em 14 de setembro daquele ano afetou 37 bairros das regiões Centro e Vila Falcão, mais “adjacências”, de acordo com informe do DAE.

No início, o esquema adotado foi de 24h. Em 7 de outubro de 2020, em nota oficial, a autarquia informou mudança na distribuição do recurso. A partir daquele dia, as regiões abastecidas pelo Rio Batalha passariam a ficar 24 horas com água e 72 horas sem.

Em vídeo publicado pelo Jornal Dois no dia 3 de dezembro de 2020, Aline Torquato, moradora da Vila Ipiranga, menciona que o bairro estava há uma semana sem água. “Antes eram dois dias, agora é uma semana que estamos ficando sem água”. Na ocasião, Aline convocava a população de Bauru para um ato contra o racionamento, que aconteceu naquele mesmo dia, 3 de dezembro de 2020, na avenida Castello Branco. 

Além da Vila Ipiranga, os bairros Parque Viaduto, Vila Nova Paulista, Jardim Ferraz, Jardim Ouro Verde, Jardim Vitória e Vila Santista também tiveram o abastecimento interrompido por tempo maior do que os três dias determinados pelo DAE.

Angela confirma o relato de Aline. “Em 2020 teve uma semana que nós tivemos água um dia da semana. Ficamos praticamente sete sem água”, relembra.

Mudança na rotina

Angela é monitora de transporte escolar e mora com seu marido e sua filha. Quando a água é cortada, as únicas torneiras da casa com possibilidade de serem usadas são as que têm ligação com a caixa d’água. Essas torneiras, no entanto, não são suficientes. Em períodos de rodízio a família precisa estocar água para o dia seguinte, que estará sem.

O contexto faz com que seja necessário mudar hábitos de limpeza e organização da casa. “Eu deixo a água da caixa para usar o banheiro e para cozinhar. Para lavar uma louça, dar uma limpada na casa, passar um pano, eu pego o que armazenei no dia anterior”, explica Angela.

Quando o racionamento é adotado por mais de dois dias, como aconteceu em 2020, Angela conta que a caixa d’água e o estoque do recurso não são suficientes nem para as necessidades mais básicas. É preciso sair de casa para pegar água nas bicas da cidade.

Aparecida Pereira, proprietária da lanchonete localizada na lotérica Pé Quente, no Centro de Bauru, guarda alguns baldes de água para dar continuidade aos atendimentos em dias de rodízio.

No entanto, quando o esquema adotado é de 48 horas, no segundo dia sem abastecimento Aparecida precisa comprar o recurso. “Nós gastamos muito comprando água, a lanchonete precisa de qualquer jeito. Prejudica bastante a gente”, ressalta.

Já para Katia Cristina de Araújo, dona do Hotel Loren, também no Centro de Bauru, estocar água em baldes e comprar galões não resolve a falta em seu estabelecimento. Com 44 quartos, a única alternativa para abastecer todo o prédio é o caminhão-pipa.

A dona do hotel relata dificuldade na solicitação do veículo ao DAE. Segundo ela, o caminhão demora cerca de oito horas para chegar ao local. “O caminhão pipa demora quase oito, nove horas. A gente com trinta hóspedes sem água. Às vezes, se está disponível só na parte de noite, quase meia noite, já está chegando a água, então não resolve”.

A falta de água prejudica o rendimento financeiro dos estabelecimentos afetados. Kátia conta que no início do racionamento atual, em abril, precisou recusar hóspedes. Em seu hotel, trinta quartos dividem um banheiro que recebe água da rua e outros quatorze quartos têm banheiro privado, abastecidos pela caixa d’água. Na ocasião, Kátia deixou os quatorze quartos privativos livres para os hóspedes poderem usar os banheiros.

Um direito negado

Durante o racionamento de 2020, as bicas de água da região do Jardim Ouro Verde tinham filas com mais de uma hora de espera. É o que relata Angela. “Podia ser meio dia, meia noite, três horas da manhã. O horário que você passava você via uma fila enorme, de mais ou menos setenta, oitenta pessoas”.

Moradores da região noroeste precisam encarar a fila, muitas vezes antes ou depois do horário de trabalho. Em período de racionamento essa parcela da população não consegue tomar banho e lavar louça, por exemplo. Na falta de caixa d’água em casa, não tem nem mesmo água para beber. As únicas alternativas são as bicas e, mais raro, os caminhões-pipa.

A pesquisa Mulheres e Saneamento Básico, realizada pelo Instituto Trata Brasil, revela que mulheres negras são as mais afetadas pela falta de acesso à água tratada. O estudo destaca a dupla jornada de trabalho praticada por parte das mulheres do país, e como a privação do recurso pesa, obrigando-as a adaptar a rotina de limpeza e cuidado da casa.

De acordo com a pesquisa, a universalização do saneamento básico traria um acréscimo médio de renda de R$ 321,03 ao longo de um ano por brasileira.

“Todo mundo aqui no bairro sai logo cedo para trabalhar e chega em casa cansado. A pessoa está querendo fazer suas coisas para poder dormir mais cedo e tem que correr atrás de água? Isso é desumano, fala sério”, pontua Angela.

“Nós não podemos ficar dependendo da chuva. Alguém não fez a lição de casa aí”, aponta a moradora do Ouro Verde

Sanemaneto básico para todos

Dados do Painel do Saneamento Brasil mostram que mais de 6.400 pessoas de Bauru não têm acesso à água e pouco mais de 11 mil não têm acesso à coleta de esgoto.

O Painel também revela a diferença de renda da população com acesso ao saneamento em comparação à população sem acesso, em Bauru. A primeira parcela ganha cerca de R$ 5.111,45 por mês, enquanto a segunda parcela tem renda média de R$ 1.551,97. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019.

Em 2014, foi apresentado à prefeitura de Bauru o Plano Diretor de Água (PDA), que diagnosticou os principais problemas do abastecimento e produção de água na cidade. Nele, foram apresentadas medidas específicas para solucionar a questão em até 20 anos, ou seja, até 2034.

O PDA virou lei municipal em 2019, mas não houve fiscalização das ações executadas. Em maio de 2021 a Câmara Municipal de Bauru iniciou a Comissão Especial de Inquérito (CEI) do Plano Diretor de Água para verificar quais pontos do cronograma de aplicação estão sendo cumpridos e quais estão parados.

Simony Coelho, presidente do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (COMDEMA), alerta para a necessidade da realização das etapas do PDA para que toda a população seja abastecida, mas também para a preservação de recursos naturais. “A execução do Plano é de suma importância, inclusive para a preservação dos recursos naturais, que são finitos”.

O acesso à água e ao saneamento básico são avaliados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como indicativos para calcular o nível de desenvolvimento de um país. Reconhecidos pela organização como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos”, ter acesso a esses serviços é considerado um direito humano fundamental.

Em julho de 2020, o novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil foi aprovado como lei federal. De acordo com a lei, a meta é garantir que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% a tratamento de esgoto até 2033. 

O prazo final corresponde a um ano antes do previsto pelo Plano Diretor de Água para contemplar 100% da população bauruense com acesso a esses serviços. No entanto, mais da metade do Plano ainda não foi cumprida na cidade.

Em nota, DAE afirma que desde o dia 7 de junho está enviando água para todas as regiões. Ainda assim, rodízio continua oficialmente. Leia na íntegra:

Bauru, 11 de junho de 2021

Chuvas dos últimos dias permite alívio no rodízio

Devido às precipitações dessa semana, o Departamento de Água e Esgoto informa que desde segunda-feira (07), está enviando água para todas as regiões que fazem parte do rodízio. O racionamento, porém, ainda segue oficialmente.

Isso ocorre porque as chuvas dos últimos dias deram fôlego à captação, permitindo o envio de água para todas as regiões. Mas ainda não é possível encerrar o rodízio de maneira permanente por conta da previsão de um longo período de estiagem nos próximos meses.

Enquanto isso, a autarquia trabalha em diversas obras para que a cidade consiga suportar outras épocas com baixa precipitação. O poço Praça Portugal está sendo perfurado, e outros dois poços já estão com as licitações abertas. Além disso, o poço Imperial está sendo interligado para auxiliar o sistema Batalha/ETA. Tais obras, em conjunto com a adutora do Santa Cândida e do reservatório Alto Paraíso, inaugurados nos últimos meses, deverão reduzir o impacto da falta de chuvas a partir do final do ano.

Ainda que os últimos dias tenham permitido a distribuição total de água, o DAE reforça a orientação para a população economizar água, uma vez que existe a previsão de um longo período de estiagem pela frente.

O DAE disponibiliza caminhões-pipa para o atendimento nas regiões com abastecimento afetado através do 0800-7710195, que recebe ligações apenas de telefone fixo, ou 3235-6140 e 3235-6179 para ligações feitas por aparelho celular.

Assessoria de Comunicação – DAE Bauru

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