As revoltas conquistaram a abolição, a revolução conquistará a emancipação

As lutas e os choques provocados contra a estrutura da ordem levarão a população negra a compreender que dentro da atual ordem republicana não há saída para negros e brancos pobres

Coluna publicada em 27 de maio de 2018

Quilombo dos Palmares foi o maior movimento de base popular, decisivo para por fim à escravidão (Imagem: Reprodução/ ‘A Guerra dos Palmares’, pintura de Manuel Victor)

Por Roque Ferreira, colunista do JORNAL DOIS

Aprendemos nos bancos escolares que a Lei Áurea que aboliu a escravatura teria sido um gesto de caridade da Princesa Isabel. Essa narrativa histórica organizada intencionalmente pela classe dominante sequestrou as lutas e revoltas dos negros em mais de 300 anos de escravidão que construíram os caminhos para o vigoroso Movimento Abolicionista, primeiro movimento social de massa de caráter nacional.

Os movimentos negros sempre combateram a narrativa do andar de cima de que a Abolição teria sido um ato de benevolência. Hoje vemos vários movimentos negros, figuras públicas, setores da esquerda assumindo esse discurso, passando a negar e a querer enterrar o 13 de maio se utilizando de uma revisão histórica, que considero uma desonestidade intelectual.

O Movimento Abolicionista foi a continuidade de um conjunto de revoltas negras sintetizadas no Quilombo dos Palmares e Zumbi dos Palmares; foi o maior movimento de base popular, decisivo para por fim à escravidão, e contou com a participação de negros escravizados, negros livres e brancos que se juntaram aos ideais abolicionistas a partir da década de 1880.

A Abolição não se deu por benevolência, tampouco apenas pela exaustão do modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído pelo trabalho livre. Ela foi conquistada pelos negros na luta e com a participação da classe operária incipiente.

Essa revisão histórica não se sustenta e não contribui em nada para a luta organizada da população negra, maior estrato da classe trabalhadora no país, em busca de sua emancipação. A falsidade intelectual desses setores os leva, por exemplo, a esquecer da saudação de Raul Pompéia aos escravos que se rebelavam: “a ideia de insurreição indica que a natureza humana vive. A maior tristeza dos abolicionistas é que essas violências não sejam frequentes e a conflagração não seja geral.”

Na década de 1880, o movimento abolicionista incendiou o Brasil. Em 1884 o Ceará e o Amazonas já haviam declarado o fim da escravidão. Os jangadeiros do Ceará se recusavam a embarcar negros escravizados em navios negreiros para serem trazidos para São Paulo e Rio de Janeiro. Os tipógrafos e os gráficos se recusavam a imprimir matérias defendendo a escravidão e anúncios de venda e captura de negros escravizados.

Os ferroviários da Estrada de Ferro São Paulo Railway, inaugurada em 1867, realizavam o transporte dos escravos que fugiam para o quilombo de Jabaquara na baixada santista.

Os ruralistas escravagistas acordaram com uma parte da burguesia abolicionista e conseguiram a indenização aos fazendeiros, sem reforma agrária e manutenção da Lei das Terras de 1850. E assim foi o conteúdo da lei.

A abolição existiu, a emancipação não. Dizer hoje que a abolição está inacabada e tentar inserir-se nos muros da ordem (“empoderar-se”) é uma capitulação vergonhosa aos que nos assassinam todos os dias, é o abandono da luta pela emancipação da população negra, que só pode se concretizar com a derrubada do sistema capitalista, que tem no racismo pseudocientífico construído no século 19, e utilizado até hoje no Brasil, um pilar estruturante da exploração de classe.

Os setores que negam peremptoriamente o combate de classe na luta antirracista, por mais empolado que seja seu discurso, por mais fraseologias rebuscadas que utilizem em suas digressões e teses acadêmicas para justificar suas posições, sabem que todas as concepções pós-modernas, as políticas racialistas que negam a luta de classes, estão a serviço da ordem e da exploração do sistema capitalista.

O combate realizado de forma organizada nas lutas do dia a dia, em defesa das reivindicações como educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis, saúde de qualidade e gratuita para todos, reforma agrária, demarcação das terras dos quilombos remanescentes, emprego, salário digno, aposentadoria justa, fim da violência policial, revogação da reforma trabalhista, a defesa das conquistas democráticas, fim da criminalização das organizações dos trabalhadores e não pagamento da dívida, é que permitirá a verdadeira emancipação.

Essas lutas e os choques provocados contra a estrutura da ordem levarão a população negra a compreender que dentro da atual ordem republicana, baseada na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do homem pelo homem, não há saída para negros e brancos pobres.

Construir a unidade da classe trabalhadora nas lutas do dia a dia, cujo maior estrato é a população negra, é a tarefa central dos que não se renderam à ordem escravocrata e racista. Para ter emancipação é preciso ter revolução.


 

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