A Central de Polícia Judiciária de Bauru está na Rua Rodrigues Alves 23–23 (Arte: Ana Carolina Moraes)

Por Ana Carolina Moraes e Lorenzo Santiago


O mês de janeiro de 2018 registrou 73 ocorrências relacionadas a drogas em Bauru. Os dados foram emitidos pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e representam um número maior se comparado ao mesmo período do ano passado: foram 57 apreensões de drogas em janeiro de 2017. A reportagem do Jornal Dois teve acesso a 42 boletins de ocorrência do primeiro mês de 2018 e fez um balanço dos dados disponíveis.

Neste levantamento, o número de negros (soma de pretos e pardos) que foram enquadrados alcançou 62% . Porém, a maior parte da droga apreendida estava com brancos: responsáveis pela posse de 79,8% de todo o montante apreendido.

27% da população bauruense se autodeclara como preta ou parda. Isso significa que no mês de janeiro a chance de um branco ter sido apreendido era metade da de um negro.

Criada em 2006, a Lei 11.343 ficou conhecida como Lei de Drogas. Em comparação com a legislação anterior, de 1976, as principais mudanças fazem referência à classificação de quem é usuário e quem é traficante. No artigo 28, é enquadrado como usuário “aquele que guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo” qualquer droga ilícita. Todos estes termos também classificam um traficante no artigo 33 — o que pode dar margem para interpretações diferentes de um mesmo caso.

A Lei somente é específica em relação às penas a serem aplicadas. Se enquadrada no artigo 33, a pessoa pode pegar de 5 a 15 anos de prisão, além de uma multa que pode variar de 500 a 1500 reais. Para o usuário, não é aplicada pena corporal, entendida como prisão ou detenção, apenas o pagamento de multa com trabalhos sociais.

“Toda avaliação tem que ser feita com cautela”. É o que diz Thiago de Amarins Scriptore, presidente da Comissão de Advogados Militantes das Varas de Execuções Criminais. Para ele, a investigação é uma série de procedimentos: “Tem que ver as condições do crime: quantidade de droga, se o juiz avalia que a pessoa tem envolvimento com organização criminosa. Avalia também a questão de reincidência, fuga na hora da abordagem, entre outras coisas”.

A aplicação da norma se torna mais complexa uma vez que a Constituição nem sequer determina o que é ou não considerado droga. A organização responsável por essa classificação é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), vinculada ao Ministério da Saúde.

Na Polícia Militar, independente das circunstâncias, tem que se valer a regra à risca. “A Lei de Drogas prevê que o porte, consumo de drogas, também é crime. E que o tráfico também é crime. Então à polícia não compete deixar de cumprir seu papel. Se a pessoa está com um cigarrinho de maconha de uma grama, a lei diz que é crime. Não cabe ao policial dizer o que é crime e o que não é. Para o policial militar, se o cara tem um quilo ou uma grama, não importa: o papel dele é cumprir a lei” afirma Fabiano Serpa, Major do 4º Batalhão da Polícia Militar do Interior.

O cenário é ambíguo. A estrutura do tráfico é complexa. E os envolvidos neste jogo tem estratégias de atuação muito bem definidas. Braços do poder público trabalham de modos diferentes e tentam prender os agentes do tráfico em todas as escalas: desde a pessoa que vende em um ponto, até as que distribuem droga pela cidade. Mas como funciona este combate?

Quem faz a patrulha

“O bacana de dizer isso é que as pessoas imaginam que o policial militar entra na viatura e vai para onde ele quiser, e não é nada disso”, comenta Major Fabiano Serpa, comandante do 4º Batalhão de Polícia Militar do Interior.

A Polícia Militar é quem monitora a segurança da cidade. Transita em diversas áreas e regiões para observar e controlar possíveis “desvios de conduta”.

As rondas não são feitas de forma aleatória. Bauru é dividida pela PM em três grandes áreas geográficas. Cada área tem uma companhia cujo comandante é o capitão. Esse capitão faz o acompanhamento diário das ocorrências policiais registradas. No áudio a seguir, o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar como o patrulhamento é organizado:

Com base nestes dados, a cada semana ocorre o que os policiais chamam de Reunião de Análise Crítica (RAC). As companhias da cidade se reúnem para analisar as ocorrências da semana anterior, e, em conjunto, identificam no mapa as áreas de concentração criminal. Esses pontos passam a ser Áreas de Interesse de Segurança Pública que receberão trabalho intensificado da PM. Major Serpa explica que o objetivo é tirar de circulação as pessoas que cometeram crime nesses locais:

“A identificação dessas áreas é fundamental para o nosso trabalho. Com a Área de Interesse de Segurança Pública a gente consegue fazer um planejamento específico daquela área para tentar combater o indicador criminal, para dar uma resposta, para tentar prender o criminoso e fazer cessar aquela agressão à sociedade”.

Segundo Major Serpa, o patrulhamento é embasado nessa avaliação criminal. Os dados considerados “mais importantes, de maior gravidade e que afetam ou impactam de maneira mais forte na sociedade” fazem com que a corporação distribua o patrulhamento de forma ordenada.

Esse conjunto de medidas estratégicas é caracterizado, dentro da PM, como um Plano de Policiamento Inteligente (PPI) no qual está destrinchado e traduzido o detalhamento dos dados de interesse da polícia. “O policial recebe a localização pelo tablet da viatura. Ali ele tem que saber onde tem que estar naquela hora: estacionamento estratégico entre as ruas x e y. Então ele vai lá e fica por um período. O cartão de policiamento inteligente dá um itinerário de onde essa viatura precisa estar patrulhando preventivamente, com base naqueles indicadores”.

Quem é suspeito

A atuação policial nas periferias da cidade é intensa. O números de prisões nestas áreas é elevado se comparado à zona sul e centro da cidade. Major Serpa se posiciona: “Existem outros órgãos, secretarias, estaduais, federais, que têm essa responsabilidade sobre o município e que acabam pecando. Então a gente percebe que em alguns momentos ou nessas comunidades, o único órgão que tá lá 24 horas, adivinha qual é? A polícia”.

“O menor é muito utilizado no tráfico. A gente sabe que o menor dificilmente vai ficar internado. E o principal motivo é que é a mão de obra barata pro traficante” Dr. Luiz Puccinelli (Arte: Ana Carolina Moares)

No combate ao tráfico de drogas, entra em cena uma etapa problemática: a abordagem. Toda forma de agir da PM está contida no Procedimento Operacional Padrão (POP), que orienta a conduta do policial em qualquer ação a ser realizada. O problema é a imprecisão do manual acerca de quem pode ou não ser abordado. No POP, a principal orientação para que o policial aborde uma pessoa é a “atitude suspeita”. Conceito genérico e subjetivo que não aponta fatores observáveis e joga unicamente para o entendimento do profissional a definição do que constitui uma atitude suspeita em cada ocorrência.

“Atitude suspeita ela é definida assim mesmo, de forma genérica, pelo código de processo penal. Quando o policial suspeita, de alguma forma, que alguém possa ter consigo algum objeto produto de crime ou decide cometê-lo. Por exemplo, uma pessoa está andando na cidade próximo a uma área comercial com um volume na cinta, aparentando ser uma arma de fogo, isso é uma atitude suspeita”, comenta Major Serpa.

Em janeiro de 2018, 62% das abordagens foram feitas a pessoas negras, sendo que 27% da população bauruense é preta ou parda.

Quem investiga

Dentro da lógica de combate ao tráfico de drogas, a Polícia Civil é a responsável por investigar pessoas que distribuem a droga na cidade de Bauru. A Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes (Dise) faz pesquisas na tentativa de identificar os locais onde é armazenada essa mercadoria.

“Toda investigação começa com uma informação, mesmo que seja pequena e imprecisa. E a partir daí a gente desenvolve. Os pontos de venda de droga estão mais localizados na periferia. Então os pontos de armazenamento [de interesse da Dise] costumam ficar mais próximos a esses locais” explica Luiz Puccinelli, delegado da Dise em Bauru.

Apesar de afirmar que a maioria das apreensões da Polícia Civil são em regiões fora do centro, Luiz constata: “Nosso foco são os grandes traficantes. Mas o nosso histórico de apreensões são bem pulverizados. A gente já entrou até em condomínios de luxo”.

As investigações partem sempre de uma denúncia anônima ou até da Polícia Militar. Os policiais civis costumam andar sem nenhuma identificação. Para Luiz Puccinelli, isso facilita a investigação. “A investigação é feita de forma quase anônima. A gente anda sem carro adesivado, sem arma, nem farda. Se você encontrar um investigador no bairro, você nem percebe que é um investigador. E o policial vai visualizar a pessoa na atividade de tráfico”.

Com os dados iniciais coletados, a Polícia Civil busca quem são os responsáveis por determinado ponto de venda, e onde está a droga que chega àquele local. Segundo Puccinelli, “esta averiguação requer uma extrema precisão. A gente não pode fazer uma operação para prender alguém e ter um número de pessoas diferente do esperado no local ou abordar uma pessoa que está com droga para consumo pessoal”.

O estudo feito pela equipe do Jornal Dois no mês de Janeiro de 2018 constatou que 79,8% da droga apreendida no período estava sob a posse de pessoas brancas. Luiz Puccinelli endossa esse dado: “Aqui na Polícia Civil a gente nunca fez o estudo, essa comparação [em relação à raça]. Mas eu não vejo a maior parte das prisões daqui ser de pretas ou pardas. Tenho certeza de que não há um desequilíbrio. Aqui na Dise eu creio que a maioria sejam apreensões de brancos”.

O que pode mudar

Major Serpa afirma que, pela primeira vez, a Polícia Militar começa a pensar a criminalidade por um viés mais humanizado. A organização está realizando internamente um estudo que relaciona o crime com a vulnerabilidade social no município de Bauru. Para isso, foi usado como base o crime do furto e roubo de veículos. A resposta da PM é que a maioria dos criminosos moram em áreas de maior vulnerabilidade social.

“Na ideia de conseguir a redução criminal e maior segurança para a comunidade, nós vamos tentar acionar agora órgãos públicos que tenham, de alguma forma, responsabilidade para melhorar esse indicador de vulnerabilidade social, para que a gente possa tentar evitar que essas pessoas entrem no crime”.

A relação das circunstâncias que podem levar uma pessoa ao crime é apontada por Serpa como algo que não pode ser ignorado pela PM e demais instâncias de caráter público. Transformar essas realidades seria uma forma de reverter o quadro de criminalidade.

“Veja que eu não estou falando de prisões. A gente tá falando de uma ação preventiva para tentar evitar que aquele jovem entre no crime. Porque se esse jovem, por algum motivo, não importa qual, vai para o crime, a responsabilidade acaba caindo na Polícia Militar”, afirma Serpa. “E nós entendemos que muitos outros órgãos públicos falham antes de o crime acontecer”.