Projeto para solucionar crise hídrica em Bauru custou R$1,3 mi e segue sem execução
Comissão Especial de Inquérito da Câmara Municipal concluiu que houve ineficiência na realização de ações previstas no Plano Diretor de Água, e Ministério Público apura denúncia de improbidade administrativa; Jornal Dois ouviu especialistas que discutem se a concessão ou privatização do DAE são alternativas para a crise no abastecimento
Publicado em 23 de novembro de 2021
Por Andrezza Marques
Edição Michel F. Amâncio
No último sábado (20), o Departamento de Água e Esgoto de Bauru (DAE) suspendeu temporariamente o rodízio no abastecimento de água. As chuvas que vieram na segunda quinzena de novembro contribuíram para a elevação do nível da lagoa de captação, que se encontrava em estado crítico e sob risco de colapsar. Em anúncio publicado no Diário Oficial no dia 12 de novembro, a Prefeitura Municipal de Bauru chegou a decretar estado de emergência devido à crise hídrica.
Desde abril deste ano, cerca de 90 mil bauruenses foram submetidos ao rodízio do DAE que, após o decreto de emergência, passou a funcionar sob o modelo de um dia de água para outros três dias seguidos de seca nas torneiras de bairros como Jardim Ouro Verde, Vila Independência e Vila Falcão.
Com a suspensão temporária do rodízio, moradores desses bairros puderam ter um alívio no abastecimento, o que não significa uma solução para a crise hídrica. O atual presidente do DAE, Marcos Saraiva, afirmou que será necessário um acompanhamento do nível do reservatório nos próximos dias e não descarta o retorno do rodízio mais severo, a depender do regime de chuvas e do consumo de água no município.
Problema Antigo
A população bauruense, sobretudo nos bairros periféricos, sofre desde 2014 com o racionamento. Antes desse período, a falta d’água já era uma preocupação no município. Para tentar solucionar o problema, a gestão do ex-prefeito Rodrigo Agostinho (PSB) contratou o Plano Diretor de Água (PDA) em 2013.
O PDA, que custou aproximadamente R$ 1,3 milhão aos cofres públicos e foi instituído como Lei Municipal em dezembro de 2019, é um estudo que apresenta um diagnóstico da situação hídrica da cidade e propõe medidas que deveriam ser tomadas para conter a crise, como troca de hidrômetros, reformas de infraestrutura e outros investimentos na rede.
Dados apresentados pelo Instituto Trata Brasil em 2019 apontam que, devido a problemas na infraestrutura de canos e hidrômetros, Bauru desperdiça 47,7% de água antes mesmo de chegar às residências. Apesar das medidas propostas pelo PDA e do histórico superavitário do DAE, que atingiu a receita de R$ 6 milhões em 2017, não foram realizados investimentos significativos para reduzir o desperdício no município, que supera a média nacional de 38,45% de perda na distribuição total de água.
Hoje, oito anos depois da apresentação do PDA, quase nenhuma das ações previstas no documento foi executada, e os cidadãos já vivem o sétimo racionamento consecutivo. A má gestão pública do DAE e as falhas na distribuição de água são algumas das causas da crise hídrica, que é agravada pela estiagem e baixo nível de captação nos reservatórios do município. Bauru é 40% abastecida pelo Rio Batalha, único manancial da cidade.
Qual o valor da água?
De acordo com o Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos (2019), é previsto um aumento de 20% a 30% na demanda hídrica mundial até 2050, em razão da crescente demanda do setor agrário, industrial e do consumo doméstico – embora apenas 39% da população mundial disponha de gerenciamento seguro de água e saneamento.
O estudo “A Crise Hídrica no Brasil e seus Impactos no Desenvolvimento Econômico e Ambiental”, de 2017, desenvolvido por Thiago Lopes Matsushita e Daniel Willian Granado, afirma que os recursos hídricos no país sempre foram tratados com descaso pelos gestores públicos.
O Ranking do Saneamento 2021, do Instituto Trata Brasil, reforça o que foi apontado por Thiago Lopes e Daniel Willian: 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável no país, mesmo com a presença territorial do aquífero Guarani, o maior do mundo, e o Sistema Aquífero Grande Amazônia (Saga).
Os pesquisadores alegam em seu trabalho que o estabelecimento da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), através da Lei Federal nº 9.433 de 1997, apresentou inovações. Um exemplo é a apresentação de um conceito de bacia hidrográfica como unidade de gestão dos recursos hídricos e novas perspectivas para outros usos da água. A PNRH, no entanto, não resultou em mudanças pragmáticas, de acordo com os pesquisadores.
Em Bauru, o PDA representa um legado da Política Nacional de Recursos Hídricos, tanto na complexidade teórica do documento, quanto na ausência das execuções práticas. Marcio Francisco Martins, professor de geografia e gestor ambiental, diz que o investimento em políticas públicas voltadas para a água é uma questão de segurança e redução de desigualdades. “A gente tem que cuidar da água o tempo todo, principalmente quando temos água, porque a gente não sabe mais quando a gente vai ter”, observa.
Discussão aberta: viabilidade de concessão do DAE
A atual prefeita Suéllen Rosim (Patriota) anunciou um Núcleo de Estudos e Concessões em abril de 2021, composto pelas secretarias de Obras, Administração, Finanças, Negócios Jurídicos, Desenvolvimento Econômico e seu Gabinete, com o intuito de debater alternativas para os problemas estruturais da cidade.
O Núcleo analisa a instauração de Parceria Público Privada (PPP) na coleta de lixo, o leilão de terrenos públicos e, dentre outras propostas, a viabilidade de concessão dos serviços de água e esgoto, o que poderia representar, no futuro, a privatização do DAE.
A concessão, que é quando o Estado transfere a execução de uma atividade a uma empresa privada por um período determinado e continua como titular do serviço, se propõe a minimizar gastos públicos. Ao fim da concessão, o Estado pode decidir por renová-la, evoluir para a privatização ou voltar a gerir as atividades cedidas.
A prefeita alega que os debates precisam acontecer para melhorar a gestão de água e esgoto na cidade, além de reduzir a falta d’água e vazamentos. “Se não estudarmos a possibilidade, não vamos conseguir resolver esse problema grave”, argumentou em live que foi ao ar em suas redes sociais, em abril de 2021.
Privatizar resolve o problema?
“A água tem um papel estratégico na economia mundial. Vai desde a questão humanitária, até a questão técnica, mas abrange também a questão da soberania nacional”, explica Victor Chinaglia, membro da diretoria do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo e ex-secretário do meio ambiente de Americana.
“Não existe comprovação nenhuma de que, na mão da iniciativa privada, autarquias como o DAE venham a dar resultados positivos”, argumenta Chinaglia.
O sindicalista avalia que o descumprimento do Plano Diretor de Água “é muito grave, um crime que configura improbidade administrativa”. Ele critica as defesas de concessão ou privatização do DAE: “Chegar simplesmente e alegar falta de condições, equipamentos velhos e culpar as antigas gestões é improdutivo. É dizer: ‘agora eu peguei essa bomba e vou privatizar’. Não era nem para estarmos discutindo privatização do DAE, depois do que aconteceu em Brumadinho”, conclui Chinaglia.
Marcio Francisco Martins, que além de professor, é idealizador da Organização para preservação ambiental Pedalágua, não vê a privatização como o melhor caminho, e argumenta citando publicação do Transnational Institute (TNI), centro internacional de estudos sem fins lucrativos: “O Brasil é um país que tem muita reestatização em cidades que privatizaram seu setor de água e saneamento. É o segundo país que mais reestatizou, depois da França”. Na opinião de Marcio, a água não deve ser uma mercadoria em que uns paguem mais e outros menos para ter acesso.
De acordo com o relatório do TNI, a França é o país com maior número de privatização de água do mundo, e também sede das maiores multinacionais do setor, como os grupos Veolia e Suez. Não por acaso o país apresenta tantos casos de reestatização, sendo 106 no total.
O estudo mostra que 835 contratos públicos foram retomados nos serviços de água e saneamento em 45 países. Tarifas altas, evasão de divisas (depósitos em paraísos fiscais) e falta de transparência, aliados a baixos investimentos e insatisfação popular com os serviços, são os principais motivos que levaram ao encerramento dos contratos com iniciativas privadas.
O Brasil possui 78 casos de reestatização documentados: 77 em municípios do Tocantins, e um em Itu, no estado de São Paulo, como indica documento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).
Os dados apresentados pela instituição de pesquisa, assessoria e educação do movimento sindical brasileiro indicam que o serviço prestado pela iniciativa privada no país não conseguiu ser mais eficiente ou mais econômico do que o serviço público e não atendeu aos usuários de forma adequada e satisfatória.
Comissão Especial de Inquérito: a CEI da água
Em maio de 2021, a vereadora Chiara Ranieri (DEM) protocolou pedido para que fosse instaurada uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) do Plano Diretor de Água, após a abertura do Núcleo de Estudos e Concessões pelo Poder Executivo Municipal.
O protocolo foi aprovado com votos favoráveis de 15 vereadores da Câmara Municipal, com apenas dois votos contrários. Após aprovação da Câmara e instauração em 3 de maio, a CEI teve o prazo de 60 dias para apurar as execuções do PDA. Em declarações, Chiara afirmou que se não fosse a possibilidade de privatização, o inquérito não aconteceria.
“Depois de pouco mais de 12 semanas, 10 reuniões, 30 horas de trabalhos gravados e 20 depoimentos prestados (entre estes, ex-prefeitos de Bauru, ex-presidentes e atual presidente do DAE), ficou provado que o PDA nunca foi efetivamente aplicado, seja pela falta de recursos do Departamento de Água, pelas sucessivas trocas de comando do DAE, ou pelo entendimento de que o PDA era apenas um norteador de propostas, e não um plano de ações concretas para acabar com a falta de água na cidade – motivo pelo qual foi contratado e pago com dinheiro público”, afirmou a vereadora em entrevista ao Jornal Dois.
Após a conclusão das apurações, o relatório foi votado em Sessão Legislativa no dia 9 de agosto de 2021 e aprovado pela Câmara Municipal de Bauru por unanimidade. Por deliberação de todos os membros da CEI, foi incluído o pedido para que o Ministério Público apure possível improbidade administrativa por parte dos agentes políticos à frente do Executivo e da gestão do Departamento de Água e Esgoto da cidade entre os anos de 2009 e 2016 e 2017 e 2020, períodos em que Rodrigo Agostinho (PMDB) e Clodoaldo Gazzetta (PSD) ocupavam o cargo de chefes do executivo municipal.
Chiara frisa que a intenção do pedido de Inquérito não foi promover uma “caça
às bruxas” ou encontrar culpados, mas viabilizar a execução real do PDA, antes de pensar em concessões. “O novo Marco Legal do Saneamento Básico incentiva investimentos a fim de universalizar o acesso das pessoas à água e ao esgoto tratado. Acredito que a discussão entre privatização ou concessão do DAE deva ser feita de forma técnica, transparente e com a sociedade. O que o bauruense não quer mais é pagar pelo serviço e não receber água em sua residência ou seu trabalho”, finaliza.
Ministério Público abre investigação
Além de comprovar a falta de compromisso com a execução do PDA pelas administrações municipais, o relatório final da Câmara apresentou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para encaminhar ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). O objetivo é fazer com que o cronograma atualizado de ações de execução do PDA seja cumprido, e responsabilizar os agentes públicos devidos em caso de descumprimento.
O TAC sinaliza que obras e investimentos do plano promovidos pelo DAE sejam apresentados nas audiências públicas quadrimestrais de prestação de contas, com o objetivo de aumentar a transparência do processo e facilitar a fiscalização por parte do Legislativo e da sociedade bauruense.
Um novo cronograma de obras foi apresentado pelo DAE durante o encerramento da CEI e já foi divulgado com assinatura do Ministério Público, o que coloca a Administração Municipal no caminho para a execução do Plano Diretor de Água.
A apuração da denúncia de improbidade administrativa segue em trânsito pelo MP e, se comprovada, pode implicar penas que vão de pagamento de multa a suspensão dos direitos políticos e perda da função pública.
O trabalho da CEI não determinou atos de corrupção como enriquecimento ilícito de agentes públicos, e essa é uma avaliação que será feita exclusivamente pelo Ministério Público.