Professores e funcionários de colégio bauruense têm redes sociais monitoradas por pais de alunos: “Discriminação velada”, diz advogado

Publicações contendo informações como orientação sexual e crenças religiosas dos profissionais são coletadas e compartilhadas em um grupo de Whatsapp formado por aproximadamente 150 pais como forma de justificar “doutrinação”; especialistas afirmam se tratar de “discriminação velada” e “cerceamento da liberdade de ensino”

Publicado em 1 de fevereiro de 2022

Além da vigilância de professores, uma "notificação extrajudicial" que pretende proibir discussões de temas como "ideologia de gênero" e "educação sexual" foi elaborada pelos pais de alunos do colégio Chaminade (Arte por Michaela P. Janson)
Por Victória Ribeiro
Edição de Michel Amâncio

No dia 18 de janeiro, o Jornal Dois teve acesso a um grupo de Whatsapp formado por aproximadamente 150 pais de alunos da instituição particular de ensino Chaminade, onde os participantes avaliam as redes sociais de educadores a fim de justificar acusações de “doutrinação”. O grupo foi criado após uma reunião realizada no dia 17 de janeiro, onde assuntos levados pelos responsáveis à direção da escola teriam sido tratados “como amenidades”.

Inaugurado em janeiro de 2020 na Vila Aviação, o colégio Chaminade chamou atenção da elite bauruense pela imponência do seu prédio, aulas em período integral e por ser um centro educacional católico da Companhia de Maria-Marianistas. A missão da instituição de ensino, de acordo com descrição presente em seu site, é “educar crianças, adolescentes e jovens na perspectiva do diálogo entre fé e cultura” e de princípios como “valorização das pessoas e respeito às diferenças”.

“Grupo formado por pais do colégio Chaminade. Tem a finalidade de debater assuntos relativos à postura da escola frente à conduta e temas sensíveis à educação, os quais podem estar em desarmonia com os princípios éticos, profissionais e de valores da família esperados por nós, pais”, diz a descrição do grupo.

Dentre os materiais coletados pelos responsáveis, estão postagens contendo informações sobre a orientação sexual, crenças religiosas dos funcionários e conteúdos relacionados, segundo eles, à “ideologia de gênero”, como a utilização da “linguagem neutra”. Além disso, vídeos e fotos produzidos fora do ambiente escolar, em que funcionárias aparecem usando roupas consideradas “inapropriadas” e profissionais aparecem dançando, foram tema de discussão no grupo de pais.  

“Uma pessoa que tem um tipo de comportamento na vida particular, não deve ter uma postura muito diferente dentro da escola. Um professor que posta foto maquiado e dançando de forma, no meu ponto de vista, inadequada, não deve conseguir passar para os alunos aquilo que esperamos de uma escola cristã”, afirmou uma mãe em uma das mensagens.

Em determinado ponto da conversa, uma outra mãe, advogada, alertou sobre a necessidade de cuidado para “não serem acusados de homofobia”, afirmando que “o terreno é bem complicado” e sugeriu ao restante dos pais para se basearem em “conduta imprópria e conotação sexualizada”. Em seguida, o ponto de vista político foi explicitado por um dos pais. 

“Penso que estamos falando de valores cristãos, valores de educação em família cristã. Ou o profissional tem, ou não tem. Se fosse uma outra escola na qual os donos têm tatuagem de Cuba e são filiados ao PCdoB, tudo bem”, declarou. 

Notificação extrajudicial

No mesmo dia em que o J2 teve acesso ao grupo, uma “notificação extrajudicial” foi elaborada, assim como uma lista de pontos a serem discutidos em uma segunda reunião com a direção da escola, marcada para o dia 21 de janeiro . Na lista, os pais exigem, dentre outras coisas, o “controle da conduta de professores e assistentes nas redes sociais”, a “segurança da não exposição dos filhos à educação sexual, pronome neutro e ideologia de gênero” e a “proibição da discussão sobre o aborto”. Além disso, questionam a forma com que os alunos são punidos no ambiente escolar e a opinião da escola a respeito da pedagogia de Paulo Freire. 

Para o levantamento desses pontos, os organizadores do grupo sugeriram aos outros participantes que assistissem ao vídeo “Família educa, escola ensina”, onde Guilherme Schelb, procurador Regional da República, palestra sobre infância, juventude e educação nas escolas. Schelb, que é defensor do Escola Sem Partido, projeto de lei apresentado pela primeira vez em 2016 pelo até então senador Magno Malta (PL), foi cotado ao Ministério da Educação em 2018 pelo presidente Jair Bolsonaro.

Em 2017, o procurador foi processado pelo Ministério Público Federal (MPF) sob acusação de censura por compartilhar um modelo de notificação extrajudicial na internet contra professores que ensinam temas sobre sexualidade e gênero nas escolas. Esse modelo serviu de inspiração para a construção da carta escrita pelos responsáveis de alunos do colégio Chaminade. 

“Há grande debate no Brasil sobre ideologia de gênero e também sobre outras propostas para crianças nas escolas de temas relacionados a comportamentos sexuais especiais (homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, etc) […] Não concordo com a ideologia de gênero e não autorizo a apresentação destes temas referidos a meu filho, ainda que de forma ilustrativa ou informativa, seja por qual meio for, vídeo, exposição verbal, música, livro de literatura ou material didático”, diz trecho do documento redigido pelos pais.

No modelo de notificação, os pais, assim como orientado por Schelb, vedam o debate dos temas em questão sob ameaça de processo judicial, afirmando que “a responsabilidade do dano moral será do professor ou direção da escola que permitir o acesso do aluno a material didático impróprio ou ministrar a aula com conteúdo indevido”.

 

Em nota técnica, publicada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) em 2017, o conteúdo divulgado por Schelb foi considerado inconstitucional. No texto, o MPF deixa claro que o procurador divulgou o material “em atividade privada não apoiada pelo MPF – instituição constitucionalmente comprometida com a promoção da igualdade de gênero e da orientação sexual e contrária a quaisquer formas de preconceito”.

Discriminação velada e cerceamento

De acordo com o advogado Victor Almeida, a situação poderia ser tipificada como um caso de “discriminação velada”, onde os pais estariam “recobrindo atos claramente discriminatórios com a argumentação de uma suposta proteção dos filhos”.

Victor lembra que inúmeras disposições legislativas se destinam a garantir a liberdade sexual e de gênero e o pleno e irrestrito exercício de práticas religiosas. Como exemplo, Victor Almeida citou o artigo 3º da Constituição Federal, onde a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é caracterizada como objetivo fundamental. Além disso, mencionou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (AD) nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733, através dos quais o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a homofobia aos crimes resultantes de preconceito de raça e cor mencionados na Lei nº 7.716/89.

Apesar dos avanços legislativos, o advogado afirma que existem muitas tentativas de cercear práticas religiosas ou condutas sexuais sob o signo da moralidade, como no caso do grupo de responsáveis por estudantes do colégio Chaminade. Victor Almeida alega, ainda, que esse posicionamento também é comum por parte do poder judiciário.

 “Ocorre que, muitas vezes, os próprios operadores do direito se colocam como defensores dessa suposta moralidade, ou se mostram reticentes em aplicar penalidades a pais que alegadamente estariam ‘protegendo’ os filhos apoiados em discursos discriminatórios”, avalia.

Em relação à “notificação extrajudicial”, na opinião do advogado, o documento pode ser considerado um claro exemplo de “cerceamento à liberdade de cátedra”, princípio incluso no artigo 206 da Constituição Federal que garante não apenas a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, como também o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, tanto em escolas públicas como nas particulares.

É o mesmo que defende Márcia Lopes Reis, pedagoga e socióloga. Segundo Márcia, que também é pesquisadora em políticas públicas e gestão das práticas educativas, casos como o do colégio Chaminade são mais comuns em escolas particulares, que estabelecem um valor sobre o ensino oferecido. 

“Os pais que pagam essa escola, com esses valores, não querem que o estado das coisas mude. Está tudo muito bom e, se está tudo muito bom, funcionando, sem essas tais ideologias e conhecimentos que lhes parecem muito inovadores e até desconcertantes, eles fazem o quê? Grupos de vigilância”, afirmou. 

Na opinião da socióloga, quanto maior a qualidade de ensino e aprendizado, maior a pluralidade. “Mesmo em escolas particulares, os professores insistem e devem insistir em demonstrar que há outras maneiras de pensar. Se estamos em 2022, lá se foram 22 anos da virada do milênio. Se não há discussões sobre determinados assuntos, nós estamos preparando não apenas seres intolerantes, mas preparados para um contexto que já não existe mais”, comentou a socióloga.

O movimento “Escola Sem Partido”, fundado anteriormente ao Projeto de Lei, em 2004,  foi citado por Márcia como um motivador da vigilância de professores e da censura em sala de aula. Na perspectiva da pesquisadora, o movimento, que teve seu auge durante as eleições de 2018 e prega o “fim da doutrinação política e ideológica nas escolas”, de acordo com seu líder e criador, o advogado Miguel Nagib, pode voltar com projeções nas eleições de 2022.

“Sem dúvidas deve haver um acirramento desse movimento, porque nada é mais partidário do que a “Escola Sem Partido”. Afinal, a Escola Sem Partido nada mais é do que a escola sem o partido de alguém e de alguns. A ideia toda de uma escola desse modo é uma escola sem ideologia, mas todo mundo tem uma. O grande problema é quando pensamos que a única ideologia possível e correta é a nossa”, declarou.

Posicionamentos

Na última sexta-feira (28), o Jornal Dois entrou em contato com o colégio Chaminade para pedir posicionamento em relação ao caso. A instituição de ensino afirmou ter conhecimento sobre a existência do grupo de Whatsapp organizado pelos pais de alunos e que as questões “foram acolhidas e estão sendo tratadas internamente através dos canais de comunicação institucionais”. 

A escola ressaltou “zelar pelos valores humanos e o bom relacionamento entre escola, educadores e famílias”, afirmando seguir com a “proposta pedagógica com base nos valores marianistas”.

O J2 também conversou com Sebastião Clementino da Silva, presidente do Sindicato dos Professores de Bauru (Sinprobau), que informou que a associação não foi procurada por professores da instituição de ensino Chaminade até o momento. Para Sebastião, a vigilância de professores e funcionários é considerada “inadmissível” e defende que os pais não devem interferir no plano pedagógico da escola. “Se a escola foi escolhida, é porque houve uma concordância com a grade curricular feita no início do ano letivo”.

O presidente afirmou que a situação deve ser levada ao setor jurídico do sindicato caso a associação seja procurada pelos educadores. O Jornal Dois será informado se houverem atualizações. 

Acredita no nosso trabalho?         
Precisamos do seu apoio para seguir firme.    
Contribua  a partir de 10 reais por mês.