Prefeitura de Bauru não cumpre Lei de Acesso à Informação e protege devedores de impostos
Desde outubro o Jornal Dois entra com recursos para divulgar quem são os grandes devedores do IPTU, ISS e DAE. Prefeitura alega sigilo e não fornece os dados; sem justificativa, negativa fere lei federal de acesso à informação pública
Publicado em 11 de janeiro de 2021
Por Camila Araujo
Edição Bibiana Garrido
A reportagem do Jornal Dois entrou com pedidos pela Lei Acesso à Informação para a Prefeitura Municipal de Bauru, solicitando uma lista com as 20 maiores empresas devedoras de três impostos municipais – IPTU, ISS e a taxa do Departamento de Água e Esgoto. Pedimos, também, os valores devidos por cada pessoa jurídica. Era 18 de outubro do ano passado.
No dia seguinte, Lilian Uehara, diretora da Comunicação Externa do Gabinete do então prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSDB), informou que não poderia fornecer os nomes alegando que essa informação seria pessoal e sigilosa. A resposta não justificou o motivo do sigilo – algo previsto na legislação: “É preciso demonstrar com base em qual lei ocorre o tal sigilo”, lembra Luiz Fernando Toledo, cofundador da Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso à informação.
Justificativa
A Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011) é uma base legal para o acesso a informações de interesse público. Essa lei tem como norma principal a publicidade de informação como regra e o sigilo como exceção.
O objetivo é incentivar a cultura de transparência pública e do controle social na administração governamental. Qualquer pessoa pode solicitar informações a órgãos públicos, bem como instituições e organizações que tenham relações com a administração pública.
Em resposta ao recurso de primeira instância enviado pelo J2, a justificativa da Prefeitura de Bauru para não fornecer a lista das empresas que mais devem ao município se baseia na Lei Geral de Proteção De Dados Pessoais. A lei garante a proteção de informações de pessoa física ou jurídica de direito público ou privado, visando os “direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”.
Alegada na negativa da prefeitura, a proteção dos dados, diz a LGPD em seu artigo 4°, “não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivamente jornalísticos”.
Como lembra Marina Atoji, que é especialista em Lei de Acesso à Informação e gerente de projetos na Transparência Brasil, a própria Procuradoria Geral da União (PGU), que é a instância da Fazenda Nacional responsável por cobrar dívidas públicas, não reconhece esse sigilo como aplicável.
A PGU mantém uma base de dados aberta para consulta dos devedores da União. Para o órgão, se trata de “um dever constitucional em virtude do princípio da publicidade trazido no artigo 37 da Constituição Federal de 1988”.
No site é possível identificar quem são os devedores, quanto deve cada um, e quais são os impostos devidos. A divulgação dos dados se baseia em dispositivos legais como: a Política de Dados Abertos (Decreto nº 8.777/2016), a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e o Acórdão TCU-Plenário nº 2497/2018.
Para Atoji, é preciso que haja uma consulta aberta e ativa para esse tipo de informação. “A gente precisa saber quem está devendo e quanto está devendo para saber se os reajustes de impostos são aceitáveis ou não”, pontua ela. E questiona: “Quanto o poder público deixa de arrecadar com essas dívidas?”.
Entre a privacidade de devedores e o interesse público, aponta a especialista, o segundo deveria prevalecer. “O interesse público é maior que uma questão de privacidade de empresas ou companhias, mesmo sendo públicas”.
Motivação
A Lei de Acesso à Informação (LAI) estabelece que o solicitante dos dados pode entrar com recursos em até três instâncias, caso o órgão público ou instituição relacionado não apresente respostas satisfatórias ou negue o pedido.
Pela lei, o recurso deve ser respondido em até cinco dias, prazo que não foi cumprido pela Prefeitura de Bauru diante da solicitação do J2 sobre os devedores. A resposta do órgão ao recurso protocolado em segunda instância veio em forma de parecer jurídico. O documento, assinado no dia 8 de dezembro em nome de Idomeu Alves de Oliveira Júnior, que é procurador jurídico municipal, foi publicado no site da prefeitura naquele dia 12.
O recurso do Jornal Dois havia sido protocolado em 22 de novembro e, de acordo com o prazo da LAI, exigia resposta até o dia 27 do mesmo mês.
No parecer da prefeitura, entre outras justificativas que não encontram base legal, o procurador jurídico municipal afirma: “a Requerente sequer justifica o seu pedido, ou a necessidade de obtê-los”.
Tal argumentação é um “descumprimento absurdo com o acesso à informação e não pode acontecer”, ressalta Marina Atoji.
Diz o artigo 10 da legislação: “São vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público”.
O poder público não pode exigir ao cidadão ou à cidadã qualquer tipo de explicação ou razão pela qual realiza um pedido de acesso à informação. “Isso está claro na lei”, complementa a especialista da ONG Transparência Brasil.
De olho no prazo
De acordo com a LAI, os pedidos podem ser feitos pessoalmente ou via internet e devem ser respondidos pelo órgão responsável em até 20 dias. Esse prazo pode ser prorrogado por mais 10 dias, desde que seja previamente informado ao cidadão e mediante justificativa da instância pública correspondente.
Quando o pedido é negado ou respondido de maneira imparcial e não satisfatória, a pessoa que fez o pedido tem até 10 dias para entrar com o recurso.
A autoridade que responde a este recurso deve ser necessariamente um órgão hierarquicamente superior àquele que negou ou respondeu de forma imparcial, e tem até cinco dias para a ação. Esse prazo vale para as três instâncias do recurso.
Todos esses prazos e regras foram descumpridos pela Prefeitura de Bauru. “Uma outra violação muito grave de um aspecto básico do acesso à informação”, aponta Atoji.
O que fazer?
“A transparência é a única forma de sabermos concretamente como se gasta o dinheiro público”, lembra Luiz Fernando Toledo, da agência Fiquem Sabendo, especializada em acesso à informação.
Ele destaca que a Lei de Acesso à Informação é “consolidada no âmbito federal, com uma Controladoria-Geral da União (CGU) fortalecida e técnica, que tem monitorado o cumprimento da lei, mas ainda engatinha em estados e municípios que nem sequer regulamentaram a LAI ou, tampouco, possuem portais de transparência e Serviços de Informação ao Cidadão (SIC)”.
Em Bauru um decreto regulamentou a legislação em 2013. Ainda assim, é preciso “insistir em fazer o pedido de informação”, comenta Marina. Essa não é a primeira vez que o Jornal Dois tem pedidos de LAI negados, com prazos e regras descumpridas pela Prefeitura de Bauru.
Marina argumenta que é preciso criar demanda em novas solicitações, uma vez que isso “gera a ideia de que existe o interesse”. Se encontradas dificuldades no diálogo ou desobediência à lei, “pressionar a prefeitura pelo cumprimento do acesso a informação”.
Atoji e Toledo citam outras formas de atuar pela transparência pública: por meio de denúncia à Ouvidoria ou Controladoria do município, e levando o caso de descumprimento da LAI para o Ministério Público. Assim fez a reportagem do Jornal Dois diante de um pedido não atendido pela Prefeitura de Bauru na gestão de Gazzetta: havíamos solicitado a relação de casos e óbitos da covid-19 distribuída pelos bairros da cidade.
Na época, abril de 2020, os boletins epidemiológicos da prefeitura não mostravam em que bairro e região da cidade estavam localizados os contágios da doença. Esse tipo de informação já vinha sendo divulgado em diversas cidades e municípios com dados abertos e números exatos de pessoas afetadas em cada bairro.
Como a prefeitura se negava a responder, o Jornal Dois entrou com uma representação no Ministério Público e assim obteve dados para construir um mapa do novo coronavírus em Bauru.
Nova gestão
Motivos para solicitar informação não faltam. Existe um cenário desafiador em relação ao caixa enxuto, deixado pela pandemia, somado ao fim do auxílio emergencial, e as dívidas contraídas pela prefeitura nas últimas administrações.
Segundo Everson Demarchi, que assume como Secretário de Administração no governo Suéllen Rosim (Patriota) e esteve à frente da pasta de Finanças com Gazzetta, “o governo terá que manter a austeridade e controle de despesas para manter o município em boas condições”.
A austeridade, da qual fala o secretário, pode incluir corte de gastos públicos, aumento de imposto, ou ambos. O Jornal Dois noticiou, em reportagem sobre a posse dos novos representantes do município, a existência de um rombo de R$ 28 milhões no DAE referente aos 100 maiores devedores da autarquia. No caso do IPTU da prefeitura, a dívida chega a R$ 134 milhões devidos por 10 mil pessoas: “muitos deles moradores de condomínios de luxo”.
O J2 perguntou à Suéllen se pretende cobrar grandes devedores de impostos municipais, ao que a prefeita respondeu: “Quem deve tem que se comprometer com a cidade”.