A deusa da memória (e dos tabus): um perfil da atriz Andressa Francelino
Ela mistura como poucos as próprias vivências com acontecimentos que ninguém quer tocar em seu trabalho como atriz
Publicado em 22 de janeiro de 2020
Por Guilherme Hansen, colaboração para o Jornal Dois
“Não se passa impune por uma personagem”. A frase, atribuída à atriz sueca Liv Ullman, encaixa-se facilmente à Andressa Francelino. Sua arte vai muito além do ato de interpretar e ela coloca muito de si em seus personagens.
Bauruense nascida em oito de junho (segundo suas palavras, ser geminiana faz com que ela mude de ideia frequentemente), se formou em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e diz que a escolha profissional veio mais por “falta de opção” do que desejo ou vocação. Ela fazia teatro desde os oito anos por influência da irmã e, a partir dos 14, fez parte do grupo de teatro “Abertura”, que se apresentava em escolas de Bauru.
Apesar disso, a primeira opção profissional era Audiovisual ou Rádio e TV. “No Ensino Médio, eu tinha um pouco de medo de fazer Artes Cênicas, por conta de um pensamento um tanto quanto clichê de ter dificuldades para arrumar emprego no futuro”, relata.
Uma amiga que ia prestar moda na UEL insistiu que Andressa também fizesse o vestibular da instituição. “Presta qualquer coisa, só pra gente viajar”. Ela ficou reticente, pois lá não era oferecido o curso de Audiovisual.
Até que sua irmã a convenceu de prestar Artes Cênicas, por conta da sua história com o teatro. Andressa foi morar em Londrina porque a UEL foi a única faculdade, dentre as que prestou, na qual passou em primeira chamada.
“Vou me matricular, fico seis meses e se eu não gostar, eu volto para Bauru e faço vestibular para Audiovisual novamente”, foi o pensamento na época. Mas ela lembra que “desde a primeira aula, eu vi que aquilo seria minha vida”. E o resto tornou-se história.
“O trabalho mais difícil que eu construí até hoje”
Em junho de 2019 [mês em que este perfil foi originalmente publicado], a atriz estava prestes a estrear “Talvez isso não seja totalmente preciso, mas aqui está”.
O primeiro nome da peça seria Mnemosine, a tradução em grego para “deusa da memória”. Vários nomes foram cotados para o espetáculo, mas ela estava firme em Mnemosine porque havia gostado desde o roteiro e qualquer outra ideia de nome lhe despertaria implicância. ‘Talvez isso’ traz como enredo o assassinato de Mara Lúcia Vieira aos nove anos de idade em 1970, em Bauru, e cujo crime foi prescrito devido à falta de culpados.
Pelo menos, na teoria. Segundo consta, o primeiro suspeito do crime morreu um ano após o início das investigações. Posteriormente, o filho do dono da casa que Mara foi encontrada morta se tornou o principal suspeito. Ele era de família rica, tinha ligação com poderosos e possivelmente estava envolvido com drogas. Conseguiu um álibi na cidade de Botucatu, apontado como falso.
Depois surgiu outro suspeito, cujo apelido era “Francês”, acusado de assediar menores, recorrentemente encoberto pela família.
A tragicidade motivou Andressa a contar a história, já que desde que sua família se mudou para Bauru, em 1977, sua mãe sempre contava essa história para as filhas.
Aliás, contar de maneira imprecisa, segundo a própria. Nos ensaios, era bem comum inquietações e críticas pontuais ao texto. “Ah, mas falar de Marielle é muito batido. Todo mundo fala dela agora”, referência clara à vereadora Marielle Franco, morta em março de 2018 por razões políticas no Rio de Janeiro – na peça haverá citação de outros assassinatos chocantes no Brasil. Embora Andressa reconheça a importância de citar o crime, diz que muitas companhias de teatro têm falado sobre o assunto atualmente e, talvez, não seja tão útil citar o caso no contexto do espetáculo. E imprecisa também porque ela deixa claro o quanto essa história mexe com seu imaginário, pois ela também tem uma sobrinha com nove anos, além de não conseguir entender como poderiam tratar tão mal uma criança – naquele período, se uma criança fosse à escola sem seguir o “dress code”, em português – código de vestimenta, não podia frequentar às aulas, o que acontecia com Mara, já que às vezes ela não ia de meia por não ter muitas em casa.
Tudo isso faz com que Andressa não consiga contar a história como gostaria e se sinta limitada enquanto interpreta. “Em vários momentos, eu me bloqueei durante a construção da peça. Eu acredito que foi o trabalho mais difícil que eu construí até hoje”, confessa.
Outra característica que salta aos olhos é a criatividade da atriz. Junto com Fábio Valério, também ator da peça (intérprete do assassino), eles se articulam em um processo criativo. Nos ensaios, tiveram a ideia (posteriormente cortada) de desenvolver slides que contassem melhor a história de Mara, além de entrevistar a mãe de Fábio, de modo a mostrar um pouco mais a história sofrida da garota – a mãe dele estudava na mesma sala da menina assassinada.
Aliás, a relação de ambos merece uma ressalva. Durante os ensaios, fica muito clara a sintonia profissional que eles têm. Andressa relata que às vezes tem a impressão de ser dura com o amigo, mas não fica com remorso, pois ele sabe como ela é direta. Fábio diz que as principais qualidades de Andressa no trabalho – em sua frente e ela fica tímida enquanto ele narra – são a organização no trabalho, “ela sabe como as coisas, na peça e na cena, vão acontecer”, o que também é destacado por Juliana Ramos, sonoplasta e assessora de comunicação da peça. “Ela consegue dar fluxo às coisas. Ela tem capacidade de projetar, além de disciplina e uma visão de organizar as coisas”, corrobora.
Um pouco de Dostoiévski, um pouco de teatro documentário
Em ‘Talvez isso’, será feito um paralelo com a tragédia de Mara Lúcia com o clássico “Memórias do subsolo”, de Dostoiévski. Apesar de a parte literária ser mais exclusiva à Fábio, Andressa também participou da construção do roteiro. “Foi muito 50% meu e 50% dele”.
Estes 50% são diretamente relacionados à memória da atriz. Andressa se especializou no teatro documentário, definido no Dicionário do Teatro (2005, p. 348) como aquele “que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo” , o que explica alguns dos recursos que serão usados na peça, como o áudio da mãe de Fábio, além da abordagem crítica à maneira como a morte de Mara Lúcia foi tratada.
Inspirada no trabalho de profissionais como Davi Giordano e de Marcelo Soler, diretor de ‘Talvez isso’, as memórias são fonte primária do trabalho de Andressa. Segundo as palavras da própria em seu blog, esta categoria de teatro “chega e dá um tapa na cara, estraçalha e transforma quem assiste”. É comum em seus espetáculos a inclusão de depoimentos e recursos audiovisuais de forma a transmitir a mensagem desejada ao público.
Em “Bicho transparente”, espetáculo solo que fez em 2017, ela narra relatos em primeira pessoa, para contar vivências de machismo e misoginia que as mulheres de sua família já haviam sofrido e usa como apoio trechos do filme “A pequena sereia” (1989), em que a vilã Úrsula diz que homens gostam das mulheres que não manifestam o que pensam, além de trechos de reportagens que falam sobre violência contra a mulher e feminicídio.
De fato, assistir aos ensaios de ‘Talvez isso’ traz um desconforto. Juliana diz que esse incômodo acontece porque isso [feminicídio] pode acontecer com qualquer pessoa de nossa família. É por esse motivo, possivelmente, que o trabalho de Andressa torna-se tão impactante. O que ela mostra em suas peças são coisas que podem acontecer com qualquer um.
A correria em Bauru
Mas ela tem outras facetas. Ela é diretora do FACE – Festival de Artes Cênicas de Bauru desde 2016. Trata-se de uma mostra não competitiva de espetáculos nacionais e internacionais. Atualmente, a atriz vai estrear a partir de sexta (24) “Pelos trilhos de Bauru – uma estação de histórias”, peça que conta a formação da cidade de Bauru e que será apresentada nas bibliotecas ramais da cidade.
Lendo de longe, a impressão é de que Andressa sempre teve muita segurança em relação à cena cultural bauruense.
Não foi sempre assim. Ela morou em São Paulo por aproximadamente cinco anos depois que se formou na UEL, no final de 2008. Na cidade, participou do Instituto Piá, o Instituto de Iniciação Artística e deu aulas para crianças e adolescentes no Instituto Criança Cidadã, organização sem fins lucrativos que, entre outras coisas, oferece aulas de teatro para crianças de seis a oito anos.
Ela se frustrou com o ritmo frenético do nosso centro econômico nacional e, de forma abrupta, quis voltar à Bauru. Mas bateu a insegurança.
Como o mercado de Artes Cênicas era muito sazonal em Londrina na época da graduação, pensava que as oportunidades em sua terra natal também seriam fracas. Mas se enganou, pois quando retornou à cidade, em 2014, a cena cultural da cidade estava muito efervescente, de acordo com palavras da própria.
O Espaço Protótipo já existia e estava em crescimento. Depois de algum tempo, conta que assumiu a gestão do local e hoje é uma das figuras mais ativas da cena cultural bauruense. Ela afirma que trouxe a sua pesquisa de teatro documentário para o espaço, solidificando o propósito da equipe. “A gente começou a conseguir bastante edital, muitas apresentações, o que faz o grupo se fortalecer e expandir seus horizontes”, relata.
Embora realizada, Andressa sempre ressalta que a vida do ator teatral não é fácil, o que não tira o seu orgulho de viver como atriz. Já que o teatro, mais do que um trabalho, é um ideal de vida.
“O teatro te escolhe mesmo. Aquele bichinho te morde e você não consegue mais sair, é algo viciante”, entrega. Não só morde, como também faz os seus espectadores serem mordidos, por sensações que variam do desconforto à reflexão.
O teatro documentário tem em Andressa Francelino uma grande representante. Se existem os tais “mnesmosines” por aí, certamente eles a agradecem por colocar as suas vivências, por vezes mais íntimas, em prática.
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