O lugar das mulheres na moda sustentável em Bauru
Realidades e desafios em três brechós de economia criativa na cidade, e o impacto das figuras femininas em suas trajetórias
Reportagem publicada em 27 de março de 2021
Por Andrezza Marques
Revisão Paula Bettelli
Edição Bibiana Garrido
Tábata Santos e Tati Inocêncio são irmãs e juntas administram o brechó Afromix em Bauru. Ao Jornal Dois, Tábata conta que o negócio surgiu de maneira improvisada em 2018. Na época, a loja ficava na sala de sua casa e as vendas eram apenas online. Em 2021, o Afromix conta com espaço físico e tem quase três mil seguidores no Instagram.
“O intuito sempre foi trabalhar a questão da sustentabilidade, mas sem deixar de ser um brechó preto e levar a moda para a população negra”, fala Tábata sobre a identidade que traz para o empreendimento. “Vemos muitos brechós on-line, e poucos são tocados por pessoas negras. Começamos a nos questionar e partimos da questão social, de inserção na moda como consumidoras e produtoras. Queríamos ser representadas”, afirma.
Tábata diz que apesar de estar há três anos no ramo, conhece poucos brechós da cidade. “Há poucos brechós no interior, mas tá crescendo. Temos uma dificuldade grande de chegar até os clientes, Bauru é uma cidade em construção. É um trabalho de formiguinha”, alega a curadora.
Em breve pesquisa nas mídias sociais, a reportagem encontrou mais de 20 brechós ativos em Bauru. A estimativa está longe de representar a realidade, uma vez que só contabiliza perfis online e não inclui brechós sem página na internet.
Tábata diz que 2020 foi o ano mais desafiador do Afromix. Antes da pandemia, ela conta que a maior parte da renda que conseguia com o brechó vinha da exposição das peças em eventos. Com o distanciamento social, as vendas caíram: Tábata e Tati não conseguiram mais pagar o aluguel do ponto comercial onde mantinham o brechó.
“Nós íamos com as peças do brechó a muitos eventos. Por conta do isolamento, tivemos que nos mudar do espaço em que estávamos, não conseguimos mais pagar aluguel. A gente teve que mudar a forma de trabalhar. Foi um período de reinvenção”, lembra Tábata. O local que alugavam era também a casa em que Tábata morava com seus filhos e marido.
Resistência e ressignificação
Iraci Aguiar, empreendedora há mais de 20 anos, administra o Brechó Chique JI Eles & Elas ao lado de seu marido, Jefferson Navarro. A loja se divide em dois espaços, no centro de Bauru. Jefferson fica responsável pela seção masculina e Iraci pela feminina.
“Eu queria ter minha própria renda, sem trabalhar para os outros. Decidimos abrir o brechó por necessidade, é daqui que a gente tira o nosso sustento. Mas também porque a gente gosta de trabalhar nesse ramo”, explica Iraci, que já vendeu ovos, trabalhou como faxineira, revendedora de cosméticos, foi dona de um carrinho de espetinhos e de um bar.
O Brechó Chique JI Eles & Elas não está nas redes sociais. Iraci alugou o ponto no centro em março do ano passado, e conta que desde o período vem enfrentando dificuldades. “Agora ficou mais difícil porque os clientes já não ganham o suficiente para comprar. Quando a gente começou, era mais fácil eles estarem na rua, hoje não. Com esse abre e fecha da cidade, caiu muito”, explica, se referindo às medidas restritivas de distanciamento social.
Durante a quarentena, Tábata começou a perceber um público diferente buscando não só as peças, mas o custo benefício do Afromix. “Começamos a perceber um público diferente do universitário – que já é mais consciente, mas ao mesmo tempo ainda é elitizado. Notamos pessoas que realmente compram em brechó porque precisam. O brechó é democrático, isso é muito interessante”.
Moda consciente x exploração do trabalho
Mariana Almeida, estilista e mestre em moda sustentável, diz que a existência de bazares e brechós pode ser considerada “uma das melhores alternativas de sustentabilidade, por não comprometer o meio ambiente, nem quem produz as peças”.
A estilista reflete que o sistema atual de consumo e produção é focado apenas no lucro e não oferece boas condições de trabalho. “Quando estamos consumindo, precisamos pensar em quantas pessoas e por quais lugares o produto passou para chegar até nós, se ele foi satisfatório para quem o desenvolveu”. E questiona: “Será que foi justo com todos os elos da cadeia para chegar até mim?”.
Na indústria da moda, lembra Mariana, costureiras e costureiros têm sua força de trabalho explorada e recebem um valor muito baixo por cada peça feita, em comparação ao preço pelo qual são vendidas. Reportagem publicada pela ONG Repórter Brasil em 2017 relata a situação dos costureiros da marca Animale, na cidade de São Paulo. Jornadas de 12 horas de trabalho e remuneração de R$ 5 por peças que chegam a valer R$ 689 nas lojas.
“As costureiras, que são em sua maioria mulheres, trabalham exacerbadamente para chegar a um valor que vai ser minimamente benéfico do ponto de vista financeiro. O ambiente de uma fábrica de costura é extremamente precário. Ainda tem pessoas que ganham centavos por peça produzida”.
Gabriel Felix é idealizador do brechó Mescana Eco e conta que, quando começou as atividades em Bauru, escondeu da mãe – porque ela achava que roupas de brechós possuíam “energia pesada” pela possibilidade de já terem sido usadas antes.
“Eu comecei a ressignificar isso dentro de casa com a minha mãe. Hoje ela me apoia e admira muito o que eu faço, ela tem um brechó na casa dela!”, comemora o estudante de design e estilismo. “Esse tabu tem que ser perdido, energia ruim existe no trabalho análogo à escravidão, não na peça”.
O Mescana, que fica na área externa de sua casa, também passou por momentos difíceis na pandemia: sem eventos presenciais, as vendas caíram e Gabriel deu uma pausa no trabalho em 2020.
Hoje o brechó retomou as atividades e contará com site em breve – lançamento previsto para abril de 2021. Gabriel lembra que contou com apoio de amigos e clientes, e diz que quer levar isso adiante. “Eu não quero gourmetizar o brechó, eu quero fazer dele um modelo de negócio que valorize não só a mim, mas às pessoas que me fornecem as roupas e são em sua maioria mulheres que sustentam suas casas e famílias com isso”.
Economia local, reflexo continental
Tábata, do brechó Afromix, aponta a importância dos brechós de bairro para a economia local. “Além de consumo sustentável, os brechós representam famílias que muitas vezes não têm nenhuma outra opção de sustento. Geralmente, mulheres em condições vulneráveis”, analisa.
Mulheres chefes de família representam um dos grupos mais afetados pela desigualdade econômica e social acentuada pela covid-19. É o que conclui relatório divulgado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). No Brasil, de acordo com estudo de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 11 milhões de mulheres são responsáveis pelo sustento da casa. Dessa população, 61% são mulheres negras.
Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em maio de 2020 aponta que 35% das mães solo não tiveram renda suficiente para comprar alimento depois do início da pandemia e 31% não abasteceu a casa com produtos de higiene no período.
“A maioria dos bairros tem um brechó pequeno, tocado por uma chefe de família. Mais do que esse processo de glamourização dos brechós on-line no Instagram, os brechós menores merecem ser valorizados. Se você consome uma peça do brechó você contribui para muito além do que se vê”.
Iraci, do Brechó Chique JI Eles & Elas, foi uma das 68 milhões de pessoas que receberam o auxílio emergencial em 2020. “Foi o que me salvou. Agora eu vou tentar o recadastramento, né? Porque eu estou totalmente enrolada. O que a gente tá vendendo não tá superando nem o aluguel, imagine o lucro”, avalia.
No “Relatório Especial Covid-19: A autonomia econômica das mulheres na recuperação sustentável e com igualdade”, a Cepal propõe que os Estados da América Latina criem políticas de recuperação econômica com perspectiva de gênero. O documento aponta que após o início da pandemia, mulheres da região sofreram retrocessos de uma década em sua participação no mercado de trabalho.
“São necessárias ações afirmativas no âmbito das políticas fiscais, do trabalho, produtivas, econômicas e sociais, que protejam os direitos das mulheres alcançados na última década, que evitem retrocessos e que enfrentem as desigualdades de gênero no curto, médio e longo prazo”, reforçou Alicia Bárcena, Secretária-Executiva da comissão.
Com valores reduzidos em 2021, as parcelas do auxílio emergencial serão distribuídas nos valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375. A previsão é que o benefício alcance 1 de cada 4 brasileiros que receberam a renda no ano anterior. Só em Bauru, 20 mil pessoas devem ficar de fora da nova rodada.
Tábata também fez a solicitação para receber o auxílio em 2020. Como mulher chefe de família, tinha o direito de receber parcelas de R$ 1.200. Ela conta à reportagem que seu cadastro nunca foi aprovado.
“Pedi as contas da loja em que trabalhava e solicitei o auxílio. Atualizei o cadastro, fui várias vezes até a Caixa. Sem nenhuma justificativa, me disseram que não seria aprovado. Também nunca mais tive o Bolsa Família aprovado, e foram meses desempregada”. A curadora contraiu covid-19 no ano passado e decidiu se afastar do emprego fixo pela própria saúde e da família. Hoje o brechó Afromix é sua única renda.