Nova diretriz do livro didático prejudica ensino infantil municipal, apontam educadoras
Secretaria de Educação determina uso do material para crianças de 0 a 5 anos e vai na contramão da proposta curricular pedagógica do município; professoras e diretoras da rede pública expõem riscos ao aprendizado e se mobilizam contra a medida
Publicado em 1° de agosto de 2021
Por Michel F. Amâncio
Edição Bibiana Garrido
Professoras e diretoras protestam contra determinação da Secretaria Municipal da Educação para a educação infantil em Bauru. A diretriz da atual gestão, em sintonia com o programa de livros do governo Bolsonaro (sem partido), é para que as unidades escolares escolham livros didáticos para serem trabalhados com crianças de 0 a 5 anos, o que é visto por especialistas entrevistados pelo Jornal Dois como um retrocesso.
Prejuízos ao aprendizado, mecanização do ensino e oferta de materiais pobres em atividades para as crianças são alguns pontos da crítica. A secretaria também esbarra na proposta curricular para a educação infantil de 2016, construída com participação da comunidade escolar bauruense, e que não prevê o uso de livros didáticos, mas a preparação de aulas por cada professor e professora responsável.
A mobilização contra a medida teve início assim que ela foi divulgada, no dia 14 de julho, em uma circular do Departamento de Planejamento, Projetos e Pesquisas Educacionais (DPPPE), órgão subordinado à Secretaria de Educação. O documento é assinado pela secretária da pasta, Maria do Carmo Kobayashi e por outros dois diretores de departamentos da secretaria: Wagner Antonio Junior e Érika Jacob Navarro.
Servidoras da educação reagiram ao que consideram uma “imposição sem diálogo” por parte da secretaria. Até o momento, elas formaram grupos em aplicativos de mensagens, realizaram abaixo-assinado e buscaram apoio na Câmara Municipal dos vereadores, entre outras ações. Todas as professoras e diretoras entrevistadas fazem a mesma crítica: de que a secretaria não respeita a proposta curricular para a educação infantil do sistema municipal.
Críticas aos livros didáticos e defesa da atual proposta curricular
A circular da Secretaria de Educação tem como assunto o Programa Nacional do Livro Didático do próximo ano, conhecido como PNLD 2022. O programa é do Ministério da Educação (MEC) e tem como objetivo selecionar coleções de livros didáticos e literários para o ensino infantil de todo o país, que posteriormente devem ser escolhidos e utilizados pelos municípios. A compra dos livros é de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
No documento municipal, é informado às unidades que as equipes escolares devem escolher uma entre as opções de livros didáticos ofertadas pelo PNLD. A escolha por parte de gestoras e professoras da rede de ensino infantil está programada para o 2º semestre de 2021, com a previsão de serem entregues às crianças até fevereiro de 2022. A determinação da secretaria destaca que as coleções de livros didáticos que formam o programa nacional passam por análises técnicas do MEC.
O Ministério da Educação não cumpriu etapas necessárias para o PNLD, como a escolha da comissão de avaliação e seleção dos livros. Os nomes que compõem a comissão técnica só foram publicados oficialmente em abril deste ano, sendo que o edital do programa foi publicado em maio do ano passado. Esse seria um dos motivos que levam especialistas da educação a avaliar que o PNLD 2022 representa um prejuízo educacional, de acordo com o posicionamento de entidades citado ao final desta reportagem.
Conversamos com duas diretoras de unidades de ensino infantil em Bauru que são contrárias à determinação da Secretaria Municipal de Educação. Nenhuma das duas quis se identificar por receio de represálias e por estarem à frente do movimento contra a implementação dos livros didáticos. Uma delas, diretora há seis anos na rede municipal e a quem chamaremos de Raquel, afirma: “Como educadora, eu digo que Bauru não necessita de livro didático no ensino infantil”. Ela também critica “a péssima qualidade das atividades propostas no livro que desvaloriza o trabalho do professor”.
A diretora avalia que os livros sugeridos pelo PNLD são contrários à atual proposta curricular de Bauru. “A gente batalhou muito na construção dessa nova proposta que é realmente emancipatória, e de repente chega um livro superficial e com uma doutrina completamente diferente”, diz Raquel.
A proposta curricular para a educação infantil em Bauru é um documento elaborado ao longo de cinco anos e publicado em 2016, quando Rodrigo Agostinho (PSB) ocupava o Poder Executivo e a secretária da Educação era Vera Caserio. A proposta teve como objetivo criar um guia pedagógico para a atuação de educadores do município e envolveu professoras e diretoras da rede municipal, além da Faculdade de Ciências da Unesp. Juliana Pasqualini, professora universitária e uma das coordenadoras da elaboração do documento, defende o atual currículo em Bauru:
“Por ter sido elaborada por pessoas da rede, por pessoas que estão no chão da escola, ela é uma proposta que conversa muito com a realidade do município. Quem realmente colocou a mão na massa pra produzir a proposta foram as diretoras e professoras. Por que, então, a gente tem que aderir a uma coleção de livros didáticos que vai contra essa conquista histórica do município?”, questiona a professora.
Outra diretora que pediu para não ser identificada, a quem chamaremos de Cristina, aponta que o conjunto de livros proposto pela secretaria “prioriza a cópia e empobrece o ensino e a aprendizagem dos alunos”. Cristina explica que a criança não deve apenas decorar a escrita do próprio nome, pois o que importa é ela entender “o porquê está escrevendo o nome dela”. A diretora pontua que essa é uma função que o livro didático não consegue cumprir.
Déborah Miranda Alvares, professora da educação infantil municipal, diz que os livros que a secretaria está oferecendo às escolas através do PNLD são “muito pobres, com exercícios que não desenvolvem o pensamento e a imaginação”. De acordo com a professora, o uso desses livros é uma desvalorização da educação infantil: “Pro professor é muito cômodo aceitar um livro desses. Ele não precisaria mais preparar material e nem estudar mais”.
É o mesmo raciocínio de Juliana: “Por que o livro didático, muitas vezes, tem apelo? Porque planejar aula é difícil, é trabalhoso, requer tempo, recursos. E o livro é fácil, é só seguir”, argumenta. Ela explica que essa facilidade reduz o papel das professoras em sala de aula, já que elas apenas reproduziriam o conteúdo do livro de forma mecânica. “A gente tá discutindo qualidade do ensino e vendo a reedição de práticas há muito superadas”, diz a professora.
Fragmentação do sistema de ensino bauruense
O comunicado da Secretaria de Educação à categoria não menciona se as escolas teriam o direito de recusar a escolha dos livros didáticos. Depois de diversas reclamações de diretoras e professoras, Wagner Antonio Junior, diretor do Departamento de Planejamento, Projetos e Pesquisas Educacionais (DPPE), afirmou às educadoras por e-mail que as equipes escolares poderiam optar pelos livros. O Jornal Dois buscou contato com Wagner, que confirmou a possibilidade da recusa ao material.
Essa possibilidade não é suficiente para o movimento de professoras e diretoras. Elas argumentam que isso dispersa o sistema de ensino municipal, já que cada escola estaria “à própria sorte”, na fala de Déborah. Perguntado sobre uma possível fragmentação da educação infantil, Wagner defende: “Essa prática não fragmenta o sistema, mas fortalece a autonomia das comunidades escolares e da gestão democrática e participativa, preconizadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.
Cristina, como diretora de escola, critica essa postura:
Posições contrárias à secretaria também partem da diretora Raquel: “Deixarem opcional continua ferindo a nossa proposta. Se a gente tem a proposta pro município, não pode deixar pro diretor escolher usar ou não o livro didático. Se fica cada um a seu critério, a gente vai se perder. Essa fala do departamento é muito preocupante”.
Raquel diz não saber quais são as razões para a secretaria ir contra a proposta do município. Já Cristina atribui a responsabilidade ao diretor do departamento pedagógico, já que, segundo ela, “Wagner nunca quis a atual proposta curricular”. A educadora afirma que o diretor desconhece o conteúdo de má qualidade dos livros didáticos, e que ele “só quer defender algo contrário à proposta”.
“A gente sabe que ele tem ditado muitas regras na educação por estar no departamento pedagógico. Tanto que foi só depois que a gente reagiu que ele mandou dizendo que as escolas poderiam optar pelo livro. E ele fala que isso é democrático. Isso não é democrático, isso é uma forma da própria secretaria tirar o corpo dela fora”, conclui Raquel.
Questionado pelo J2 sobre as críticas que envolvem seu nome, Wagner preferiu não as responder: “Sou servidor público há 17 anos e trabalho em prol de um Sistema Municipal de Ensino que atende a aproximadamente 23 mil estudantes e 1,4 mil professores. É nosso papel efetivar políticas públicas que garantam uma educação de qualidade para todos os nossos alunos, missão que está acima de convicções pessoais. Portanto, meu posicionamento pessoal, seja ele qual for, é irrelevante nesse contexto”.
Ações das educadoras em defesa da proposta curricular
O movimento de educadoras contra a implementação dos livros no ensino infantil tem buscado diferentes caminhos para responder à determinação da secretaria. De acordo com Cristina, as educadoras que defendem a proposta curricular do município têm construído um cronograma de ações para as próximas semanas. Até agora, já foi elaborada uma carta onde as professoras explicam a história da elaboração do atual currículo. No mesmo documento, foram usados critérios técnicos da área da educação para questionar a qualidade dos livros didáticos disponibilizados.
As educadoras acrescentaram à carta um abaixo-assinado pela não adesão aos livros do PNLD, conseguindo 261 assinaturas de professoras, diretoras e pessoas que compõem a comunidade escolar pública de Bauru. A carta com as assinaturas foi enviada para a Secretaria Municipal de Educação no dia 20 de julho, com o título: “Repúdio à qualidade do material de divulgação do programa PNLD 2022 para a Educação Infantil Pública Municipal de Bauru”.
A mobilização ainda buscou apoio legislativo através da vereadora Estela Almagro (PT). Déborah relata que a vereadora foi procurada porque “é a única oposição ao governo municipal”. A professora diz que já estava em contato com Estela devido à dificuldade na comunicação com a Secretaria de Educação sobre outros problemas que não o atual, e que desde meados de julho elas têm dialogado sobre a questão dos livros didáticos.
Em entrevista ao J2, Estela defendeu a atual proposta curricular de Bauru e criticou ao que vê como uma imposição da gestão municipal: “Uma das vitrines da cidade é nossa educação infantil, em que a base é a pedagogia histórico-crítica. É referência não só no estado, como no Brasil. Se nosso ensino infantil é elogiável Brasil afora, por que mudar agora? E mais, mudar agora com qual debate? Eles querem impor, igual fizeram com a discussão da escola cívico-militar”.
A vereadora alega ter sido procurada por diversas professoras e diretoras do município logo depois da determinação da secretaria. Como resposta à categoria, Estela não descarta a convocação de audiência pública e, no dia 27 de julho, se manifestou em sessão da Câmara dos Vereadores em apoio às críticas das educadoras. Ela afirma ainda que pretende elaborar um requerimento para que a Secretaria de Educação explique a medida: “Nós vamos perguntar à secretaria com base no Artigo 18 da Câmara: isso dos livros passou por quais fóruns? Onde foi aprovado? Foi discutido com os professores? Isso é muito grave, é desrespeitar a categoria e quebrar os mecanismos de controle social”.
O Artigo 18 faz parte da Lei Orgânica do Município de Bauru, e é por meio dele que os vereadores podem solicitar “informações ao Prefeito e aos responsáveis pelos órgãos da administração direta e indireta”. Os pedidos por informação com base no artigo devem ser respondidos pelas autoridades em até 15 dias, período que pode ser prorrogado por mais 15 dias. Um de seus incisos também prevê a convocação de secretários municipais “para esclarecer assuntos pré-determinados”.
Para Estela, as professoras e diretoras deveriam se abster de escolher livros didáticos: “Eu tenho dito para os professores que receberam a circular, que até que a gente consiga tomar providências via legislativo, e se precisar via judiciário, que se recusem a escolher”. A vereadora segue com críticas à gestão municipal, destacando a relação do Executivo bauruense com o governo Bolsonaro (sem partido): “Eles não são só negacionistas da pandemia, são negacionistas de tudo. Negam um projeto pedagógico que deu certo e negam até o debate”.
De acordo com Deborah, o movimento de educadoras pela defesa da atual proposta curricular pretende construir um fórum para a educação, cujo objetivo seria estabelecer um diálogo com a Secretaria Municipal de Educação e com a sociedade sobre a questão dos livros no ensino infantil: “Seria uma instância de gestão democrática e participativa, que contaria inclusive com a participação da secretaria. Assim fica mais transparente pra população, que precisa estar a par do que tá acontecendo”.
Sem diálogo
Cristina acredita que o fato de as educadoras terem entrado em contato com Estela Almagro “pode ter incomodado a secretaria”. A diretora afirma que a busca por apoio do Legislativo se deu pela falta de comunicação do órgão: “As professoras recorreram à vereadora após várias tentativas de contato com a secretária de educação, e nunca houve resposta”.
Ela afirma que a secretária de Educação Maria do Carmo Kobayashi chegou a passar seu contato pessoal para as educadoras há algum tempo. Para a diretora, isso não foi suficiente para melhorar o diálogo com as servidoras: “Já faz uns cinco meses que estamos esperando uma reunião com ela e nada. Nós tentamos muitos caminhos pro diálogo, e não só na questão do livro. Como isso não tá funcionando, a gente já entendeu que as portas não estão abertas para diálogo, e foi aí que a gente resolveu começar a agir”.
Ao J2, Wagner afirma que seu departamento está à disposição para orientar as diretoras novamente sobre o PNLD. E complementa: “Caso seja necessário, faremos reuniões. Gostaria de reforçar que é papel da Secretaria Municipal da Educação efetivar as políticas públicas a bem do Sistema Municipal de Ensino, abrindo possibilidades para diálogos e reflexões entre as equipes escolares”.
Déborah enxerga a relação das educadoras com a gestão municipal de outra forma: “A gente tá tendo muito problema de diálogo com a Secretaria de Educação, e a promessa dessa gestão, como um todo, foi conversar. Na época da campanha era só promessa de diálogo. Não teve plano de governo, mas teve bastante ‘vamos conversar’. E é isso que não tá tendo”, critica a professora.
Reação da comunidade escolar à medida
A professora da educação infantil diz acreditar que a maioria de seus colegas da rede municipal são contrários à determinação da secretaria: “É uma minoria de professores que, talvez por falta de conhecimento, vai querer adotar o livro e seguir aquilo, abrindo mão da cátedra docente”, opina Déborah.
Raquel concorda com a avaliação da professora: “Eu falo pela minha escola e pelo pouco que eu conheço da realidade das outras colegas, e a grande maioria é completamente contra essa posição da secretaria. Aqui na minha escola todas as professoras assinaram o abaixo-assinado, e eu vejo uma grande mobilização contrária aos livros”, conta a diretora.
Sobre a posição de pais e mães em relação ao uso dos livros didáticos na educação infantil, Cristina diz que em sua escola há “mães que são contra por já participarem do cotidiano da escola”. A diretora explica que foi formado um grupo em defesa da proposta curricular e contra os livros do PNLD em que esses responsáveis estão presentes, junto às professoras e diretoras.
“Quando a gente faz reunião aqui na escola, nós explicamos pros pais como a criança aprende. E por conta da pandemia isso não tem acontecido. Se tem pais que são favoráveis aos livros didáticos, é puro desconhecimento. Infelizmente isso acontece”, destaca Cristina.
Interesses e o PNLD no Brasil
Em maio de 2020, 116 entidades ligadas à educação no Brasil iniciaram representação no Ministério Público Federal e no Tribunal de Contas da União exigindo a suspensão do edital do PNLD 2022. O argumento dos grupos, representados pela Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf), era de que o edital descumpria critérios técnicos e poderia gerar prejuízos para a educação nacional.
Déborah chama a atenção para as motivações por trás da forma como o PNLD vem sendo imposto pelo governo federal: “Esses livros vão usar um dinheiro público contra tudo o que nós professores estudamos sobre desenvolvimento infantil. Nós não fomos consultados e parece ser algo pra atender aos interesses do capital”, diz a professora, em referência aos lucros que as editoras teriam com a venda de livros didáticos para o ensino público infantil.
A respeito dos possíveis interesses mercadológicos de editoras, Juliana destaca que isso é algo que não pode ser desconsiderado: “Sempre que a gente fala em políticas educacionais, tem que se perguntar: como nós estamos investindo os recursos e quem tem interesse que esse seja o foco do investimento? Quando se compra livros de editoras através do PNLD, você tá mexendo com o interesse do mercado editorial”.
São 6,5 milhões de crianças matriculadas na educação infantil em escolas públicas em todo o Brasil pelo Censo Escolar 2020. Como os livros ainda estão em processo de seleção pelos municípios, não há como saber o total de dinheiro público que será utilizado na compra. Tendo como base a compra de R$ 458 milhões em livros do PNLD em 2019, para 12 milhões de alunos do ensino fundamental, vê-se que o montante para a educação infantil também atingiria cifras milionárias.