Quando o difícil é ficar na escola: pessoas trans e travestis contam suas trajetórias
Estudantes trans e travestis falam sobre suas experiências nas escolas estaduais de Bauru. Agressões e ameaças fazem com que essa população seja suscetível à evasão escolar
Publicado em 18 de maço de 2020
Por Paula Bettelli
O ano era 2004. Luana Leon, após vinte e seis anos afastada dos estudos, decidiu enfrentar seus receios e se dirigiu ao CEJA (Centro de Ensino de Jovens e Adultos) de Bauru, determinada a fazer sua matrícula e retomar a escola de onde parou. Ao chegar na instituição de ensino, no entanto, conta ter sido maltratada pela secretária, a primeira pessoa que lhe atendeu no local.
Na época ainda não existia a Carteira de Nome Social para pessoas trans e travestis e retificar nome e sexo no RG era um longo processo burocrático. Luana tentou explicar à funcionária que o nome masculino de seu documento não era aquele pelo qual se identificava, mas não foi compreendida. Saiu de lá frustrada e sem a matrícula feita. “Eu não ia voltar para a escola para ser chamada pelo meu nome de nascença, nunca eu iria fazer isso. Nunca”, fala com firmeza.
Decoradora e ativista em Bauru, Luana se chama Luana desde que tinha 16 anos. Hoje, aos 55, conta que passou cinco anos na fila da Justiça para conseguir retificar seu nome no RG. Isso porque ela foi registrada com um nome de gênero masculino ao nascer e educada como tal. Ela, no entanto, nunca se identificou como um garoto, e aos 16 anos se assumiu uma mulher transexual.
A ativista se viu obrigada pelo pai a sair do colégio para trabalhar em casa aos 13 anos. “Meu pai era daquele modelo ‘tem que trabalhar, estudo não leva ninguém a nada’”, relata.
Dois anos atrás, com seu nome retificado nos documentos, retornou ao CEJA. Não só voltou aos estudos, como foi eleita a melhor aluna da sala, “com direito a foto, presente, tudo”, lembra.
No Brasil, um percentual grande de pessoas transexuais e travestis renuncia aos estudos. Segundo pesquisa realizada pela Rede Trans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil), 82% das travestis e mulheres transexuais abandonam o ensino médio entre os 14 e 18 anos no Brasil, em função de discriminação na escola e falta de apoio da família.
Levantamento obtido pela agência de dados independente Fiquem Sabendo, por meio da Lei de Acesso à Informação, indica que entre as cidades do interior de São Paulo com menos de 1 milhão de habitantes, Bauru é a segunda que teve maior número de estudantes fazendo uso de nome social em escolas estaduais no período de 2015 a 2019, com 39 pessoas.
A cidade ficou atrás apenas de São Carlos na soma total. No entanto, enquanto de 2018 para 2019 a quantidade de estudantes com nome social cresceu 149,8% no estado de São Paulo, em Bauru houve queda de 38,4%, indo de 13 alunos em 2018 para 5 em 2019.
Carla Patrícia de Melos, professora de história e atuante no Mães Pela Diversidade, comenta que as dificuldades encontradas para permanência nas escolas vão muito além do nome para identificação. “O nome social é um pontapé, mas quando a gente fala de pessoas transgênero dentro das escolas a gente não está falando só disso. A gente está falando do respeito, da igualdade”. A professora ressalta a importância de fazer recortes de raça e classe quando se fala da questão trans.
Dia a dia na escola
Natalie Tutty, atualmente estudante de atuação teatral em São Paulo, terminou o ensino médio em Bauru e conta se sentir privilegiada pelo respeito e naturalidade com que a escola agiu em sua transição, tanto os coordenadores e professores quanto os colegas.
Ela alerta, apesar disso, ter uma amiga transexual que desistiu do colégio durante um ano. “Nessa questão eu era privilegiada, minha escola estava muito mais preparada, por mais que ambas estivéssemos em escolas públicas”, pontua.
A diretora da escola estadual Prof Eduardo Velho Filho, onde Natalie estudava, ao saber de sua transição, aceitou sem questionamentos. Afirmou à ela que informaria professores e funcionários e que respeitaria seus direitos. Ainda assim, não permitiu que a estudante usasse o banheiro feminino. “Disse que poderia ser um choque para algumas pessoas”, conta. Foi concedido à ela o acesso ao banheiro das professoras.
Natalie menciona uma única vez que se sentiu desrespeitada no ambiente escolar, quando uma aluna de outra sala a impediu de usar o banheiro destinado às meninas. “Ela proibiu meu acesso ao banheiro, falou que não achava correto”. Apesar do desconforto, ficou mais tranquila após ter sido apoiada e defendida por seus amigos.
Gael Monteith da Silva, atualmente aluno do terceiro ano de ensino médio, conta sofrer com comentários de outros garotos da sala. Ao contrário de Natalie em sua época de colegial, Gael não é assumido para toda a família, por isso seu nome na lista de presença continua feminino.
Para ele, o processo de autoafirmação tem sido difícil. “Desde os meus 12 anos eu já era bem moleque, chorei uma vez porque queria ser menino”, lembra. Percebeu, com o passar do tempo, um incômodo em relação à sua voz e a certas partes do seu corpo, e com 14 anos passou a conversar sobre a questão com amigos próximos.
Com caminhos parecidos, Patrick dos Santos, hoje estudante de design na IESB, conta que ter uma pessoa em sua escola que já havia se assumido foi muito importante para se sentir seguro ao decidir fazer o mesmo. Atualmente na faculdade, revela enfrentar resistência de dois estudantes do seu estágio em lhe chamarem pelo pronome masculino.
“Esses caras, não sei o que acontece, eles estão sempre me chamando de ‘ela’ e eu estou sempre corrigindo. Tem uma garota que faz estágio comigo e ela está sempre me chamando de Patrick na frente deles para ver se entendem, mas não sei o que acontece que nada dá certo. Eles não entendem nunca”, relata.
Em momentos como esse, em que nem o nome retificado no registro oferece amparo, políticas públicas de conscientização fazem falta. Patrick afirma que passa por situações constrangedoras diariamente. “Querendo ou não as pessoas do seu cotidiano são reflexo da sociedade, principalmente da cidade, e mostra como a informação chega para elas”.
Carteira de Nome Social
Bauru se destacou por ser a primeira cidade do Brasil a ter uma lei que regulamenta a emissão de documento com um nome não apenas diferente daquele designado no nascimento, mas com o qual a pessoa consiga se reconhecer e desenvolver sua personalidade. O documento tem validade apenas no âmbito municipal
Pioneira na cidade e no país, Luana Leon recebeu a Carteira de Nome Social número 001. Ela, inclusive, participou do processo de implantação da carteira e diz ter se surpreendido pela rapidez com que tudo aconteceu.
“A ideia partiu do CADS (Conselho de Atenção à Diversidade Sexual), eu era vice presidente na época. Levamos a proposta para o prefeito e mostramos a necessidade. Por incrível que pareça ele recebeu a proposta muito bem”, descreve. Explica que foi para licitação e em vinte dias foi aceita. “Depois só fomos atrás das parcerias”.
O prefeito que Luana menciona era Gazzeta, no primeiro ano de seu atual mandato, em 2017. A parceria foi encontrada junto à Cáritas Diocesana. A instituição apoiou a iniciativa e doou 150 carteirinhas para serem expedidas. É lá, na sede bauruense da organização católica, que pessoas interessadas devem se dirigir para obtenção do documento.
A possibilidade de realizar a alteração de nome e sexo no registro sem precisar de autorização judicial é uma reivindicação histórica do movimento LGBT brasileiro. A falta desse direito prejudicou por décadas o acesso da população trans e travesti à saúde, à Justiça e à educação.
Para Patrick, fazer a carteira de nome social foi marcante. “Foi o primeiro documento que eu tive com o meu nome. E é complicado, porque eu tenho cara de ser bem mais novo do que eu sou, quando eu vou comprar bebida sempre pedem minha identidade. Era bem constrangedor ter que apresentar outra, fez bastante diferença”.
Natalie nunca obteve a carteira de nome social. Quando tentou, aos 16, teve seu pedido negado por ser menor de idade. Na escola mudou o nome mesmo sem registro oficial, e foi a primeira pessoa a fazê-lo. Por falta de preparo do colégio surgiram obstáculos para que conseguisse ser identificada como Natalie.
“O problema do uso de nome social está justamente na logística. Para quê usar o nome social se você vai usar entre parênteses, num lugar pequeno, onde o nome de registro está em maior destaque e está na frente?”, questiona. “Nas provas do Estado parece, sei lá, que o Estado bugava”. Enviavam a prova de Natalie com seu nome de nascença, fazendo, consequentemente, com que os aplicadores a chamassem pelo nome errado. “Aí nisso eu ficava exposta de novo e de novo e de novo”
Estudante de design em Bauru, Davi Cabeça fez a carteira de nome social há três anos. Apesar de ter se sentido feliz em ver um registro físico com seu nome, também aponta falhas.
“Eu fui comprar uma passagem de ônibus e queria que eles colocassem meu nome. Aí o cara ficou um tempo olhando a carteirinha e falou ‘está fora da validade’. A carteirinha estava ali, a validade é mera formalidade. Eu acho louco isso, de como foi fácil para ele falar ‘não’”, reflete.
Essa questão Davi enxerga como fruto de um problema estrutural. Define a carteira de nome social como um “tapa buraco”. “Quando você tenta colocar uma coisa de cima para baixo a gente vai ter erros que nem esse”. Para ele, a importância está no “trabalho de base”, que significa a conversa direta com a população.
“Se a gente tivesse isso na escola, a base, seria diferente. A gente teria uma educação em relação a isso, seria uma coisa muito mais simples. Dentro do capitalismo você tem muitas barreiras”, lamenta.
Além da transfobia, o racismo
Luana Leon relata que além de transfobia, sofreu racismo na escola. Ela conta sobre uma professora que a marcou muito por tê-la agredido verbalmente com insultos racistas. “A professora me ofendeu, me xingou, e não tinha a quem recorrer”.
Além da professora, lembra que alunos do colégio a atacavam por ser pobre. “Me apontavam por eu estar de chinelo havaiana, me apontavam porque eu não tinha o livro que todo mundo tinha, sabe”, relembra.
Dessas experiências, diz que ficou nela a necessidade de estar sempre se esforçando, evidenciando sua capacidade. “Não é fácil ser pobre, preta e trans, porque você tem que estar sempre mostrando alguma coisa, você tem que estar sempre provando para que as pessoas te aceitem”.
O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo, posição que ocupa desde 2008, segundo levantamento divulgado pela Antra.
Em 2019, de acordo com a pesquisa, 82% das vítimas eram negras e apenas 8% dos casos tiveram suspeitos identificados. Entre 1 e 24 de janeiro deste ano foram registrados 14 assassinatos no país.
A ONG Transgender Europe, buscando explicar o motivo dos altos índices de violência a pessoas trans e travestis no Brasil e em países da América Latina cita, como uma das causas, a vulnerabilidade dessas pessoas ao trabalharem na prostituição.
Estimativa feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com base em dados colhidos nas diversas regionais da entidade, aponta que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição ao menos em algum momento da vida.
“A gente ouve muito assim: travesti ou é cabeleireira, ou é mãe de santo, ou é pai de santo, ou está na prostituição. Não, elas são médicas, elas são professoras, são professoras doutoras”, diz Carla com indignação.
As barreiras encontradas dentro da escola e na sociedade refletem na falta de oportunidade para pessoas trans e travestis no mercado de trabalho. Coordenadora do Centro de Referência de Moléstias Infecciosas de Bauru, Luana ressaltou, em vários momentos de sua entrevista ao Jornal Dois, a importância de pessoas trans terem oportunidades de trabalho formal. “Poucas que conseguem ter seu trabalho, trabalhar com liberdade”, lamenta.
Não se fala sobre transexualidade
Carla Patrícia de Melos entende que sua função, como mãe de mulher trans e professora, dentro de uma diretoria de ensino, é conversar. “Conversar dentro das escolas essa questão do banheiro, essa questão do nome social”.
Ela diz que, durante seus anos de experiência, presenciou professores ignorarem a existência de pessoas trans. “Tem professores que não assumem que não querem esses alunos, eles simplesmente, com o tempo, vão colocando esse aluno para escanteio, até o dia que ele desiste”.
Apesar de Bauru ser a cidade com a maior Parada da Diversidade do estado, ficando atrás apenas da capital, deixa a desejar no que se refere a políticas públicas efetivas para a população LGBT.
Luana participou, durante duas gestões, do CADS (Conselho de Atenção à Diversidade Sexual). Revela que os participantes só iam à reunião em agosto, mês da Parada. “Eu não vejo o grupo, a representatividade do grupo, no mais importante que tem que ser: a saúde desse grupo, a estabilidade que esse grupo poderia ter”.
Hoje com 55 anos, a decoradora alerta que é preciso lutar diariamente. “Me falam ‘Luana, você é muito corajosa’. Não é coragem, é que você tem que falar, se abaixar a cabeça agora vai voltar os velhos tempos. Eu venho de uma época que você era proibido até a por minissaia”, afirma. Luta não apenas contra o preconceito, mas por um desenvolvimento livre e saudável da própria identidade.
Conta que vez ou outra conversa com mulheres trans e travestis que fazem programa em busca de incentivá-las a voltar aos estudos. “Olha, quando eu estava no CEJA havia quatro [pessoas trans]. Bauru não tem só quatro, né, Bauru tem uma gama, uma população trans bem extensa que poderia voltar. É difícil, elas são muito machucadas”.
A falta de discussões sobre o tema dentro das escolas dificulta a volta e permanência dessas pessoas. Patrick, Natalie e Gael, alunos e ex-alunos de três escolas estaduais diferentes da cidade, afirmam que em nenhuma delas eram debatidos os temas de sexualidade e identidade de gênero.
Apesar dos coordenadores pedagógicos e professores relatados pelos entrevistados terem aceitado as transições, não adaptaram o espaço para que esses estudantes pudessem se sentir incluídos e confortáveis neles. Assim, a permanência segue sendo uma dificuldade grande.
“Quando a gente diz ‘tem uma pessoa trans na universidade’ é para a gente respirar fundo e falar ‘ufa, mais um!’”, desabafa Carla.