Ligações perigosas
A brisa da revolução começa a se sentir. O tempo dos furacões está chegando ao Brasil. E, para isso, é necessário que nos preparemos
Publicado em 15 de novembro de 2019
Por Roque Ferreira, colunista do Jornal Dois
Quando a editoria da TV Globo decidiu colocar no ar a notícia de que um dos porteiros do condomínio onde residem Bolsonaro e também um integrante da milícia (que é acusado de assassinar Marielle) teria reconhecido como sendo de Bolsonaro a voz e a casa que autorizou a entrada do outro miliciano no condomínio, talvez eles não tivessem consciência do quão grande seria o impacto disso.
Afinal, em termos jornalísticos a notícia, apesar de bombástica, continha uma salvaguarda para o presidente – a matéria noticiava que, no dia do fato acontecido, estava em Brasília. Mas Bolsonaro, cuja capacidade de perder a paciência é notória, engoliu a notícia “com farinha”, como se diz numa gíria antiga. Em uma transmissão pelo Facebook (“live”) ele gritava visivelmente tendo perdido a compostura, que nada tinha a ver com o assassinato da vereadora do Psol.
Contudo, as perguntas que não queriam calar em muitas pessoas voltaram à tona: Afinal, o presidente é vizinho de um assassino? Vários integrantes do chamado “Escritório do Crime”, grupo criminoso acusado de ser formado por assassinos de aluguel, já foram homenageados pelos filhos de Bolsonaro? Bolsonaro tem fotos com vários integrantes da milícia? O gabinete de Flávio Bolsonaro e de Carlos Bolsonaro empregavam familiares de milicianos? Como pode tudo isso? E por que Bolsonaro reage gritando tanto se bastaria dizer: a própria Globo já mostrou que eu não estava lá, é tudo fogo de palha de quem busca audiência?
A burguesia e sua representação política – deputados, senadores, governadores – assistiam a cena perplexos. E aumentava a confusão. Bolsonaro declara que já sabia da notícia, porque lhe tinha sido vazada pelo governador do Rio, Witzel, com o qual comunga a mesma veia política autoritária. Witzel, nada intimidado, declara pura e simplesmente que Bolsonaro mentiu. Demonstrando que a situação não está nada controlada, as divisões nas cúpulas, a sujeira que se desvela sobre a “corte presidencial”, leva a que centenas saiam as ruas de Brasília no dia seguinte à matéria gritando “Fora Bolsonaro”.
Porém, as ligações perigosas vão além disso. O velho ministro da ditadura militar, ex-conselheiro de Lula, Delfim Neto, vem a público declarar, do alto dos seus 90 anos, que as propostas de Paulo Guedes para a economia são as melhores que existem depois da ditadura.
O problema é que isso se faz logo após as manifestações que questionam tudo o que existe no Chile — o modelo econômico de Paulo Guedes para o Brasil. E, no Chile, na segunda-feira (4/11), centenas de milhares retornam às ruas. As tímidas medidas de Piñera para conter a crise são desprezadas pelas massas que querem mudar tudo. Afinal, são mais de 24 mortos, mais de 3 mil detidos que continuam nas cadeias e centenas de feridos, inclusive 200 que foram cegados. Tudo isso para nada? Mais de 88% querem que tudo o que foi feito durante a ditadura (e não foi revogado) seja modificado. Os “cabildos abiertos”, as “assembleias populares”, multiplicam-se. A falta de partido político revolucionário, que chame a unificação destes organismos, é o que mantém ainda de pé o governo, embora no momento tudo o que ele faça é reprimir.
Na última manifestação o povo mostrou o alvo: milhares se dirigiram ao Palácio de Governo, no centro de Santiago, com a intenção de invadi-lo. Piñera sabe que nada está resolvido e tenta a todo custo que o PS e o PC dêem apoio a algum tipo de medida para poder manter o governo de pé. Mas, cabe neste caso, a famosa pergunta que um tio do Czar de Nicolau em 1917 fez quando lhe ofereceram, todos os partidos reunidos, a coroa do czar:
“E quem dentre vós garante que eu não serei guilhotinado?”
Como ninguém respondeu, ele, prudentemente, tratou de buscar o exílio ao invés de aceitar a coroa tão amavelmente oferecida. Os partidos podem fazer a mesma pergunta a Piñera: “como você pode garantir que não queimaremos na mesma fogueira na qual hoje você assa em fogo lento?”
Contudo, Guedes, ao que parece, tem a visão bem mais curta que estes personagens históricos – ele propõe um novo pacote que, ao final, reduz mais direitos e corta verbas para saúde e educação. Medidas para “preservar” o Tesouro, incluem uma injeção direta de R$ 200 bilhões de fundos constitucionais para o pagamento de juros da dívida, da redução do horário com redução do salário de servidores públicos (o que levará a piora dos serviços públicos de saúde e educação), da contagem das aposentadorias e pensões de servidores nas despesas de saúde e educação etc.
Ao lado disso, a redução de direitos sociais para os trabalhadores jovens e de baixa renda (abaixo de 1,5 salário mínimo) o que favorece a redução de salários dos jovens e a demissão de trabalhadores mais idosos para contratação da “carne jovem” a ser praticamente escravizada sem direitos sociais.
Eduardo Bolsonaro, que não prima muito em inteligência, segundo os jornais, conclui algo que é óbvio, mas que a burguesia tem medo de dizer e desatar a fúria antes do tempo: se houver no Brasil manifestações como no Chile, precisamos de um novo AI-5. O problema é que no Equador, quando tentaram a repressão começou a divisão no Exército. No Chile, há notícias de guarnições de tanques interrompendo a repressão e confraternizando com manifestantes. E a burguesia tremeu nas bases quando Eduardo trouxe ao sol o segredo de polichinelo: alguma hora, para aplicar tudo o que Guedes propõe, vai ser necessária a força e a repressão.
A brisa da revolução começa a se sentir. O tempo dos furacões está chegando ao Brasil. E, para isso, é necessário que nos preparemos.
As colunas são um espaço de opinião. Posições e argumentos expressos neste espaço não necessariamente refletem o ponto de vista do Jornal Dois.
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