“Foi negligência do hospital”, diz cacique sobre covid em aldeia de Avaí

Primeiro caso foi registrado no início de agosto e comunidades das quatro aldeias indígenas se mantêm vigilantes

Publicado em 20 de agosto de 2020

“Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre e descompunha a carne?”

Eduardo Galeano

Por Camila Araujo

Já são 146 povos indígenas afetados pela pandemia do novo coronavírus, de acordo com os dados registrados na plataforma Emergência Indígena. Nessa contagem, dos mais de 24 mil casos confirmados, está a contaminação na Reserva Indígena de Araribá, no município de Avaí, a 50 km de Bauru. 

Uma mulher da aldeia de Kopenoti sofreu um acidente doméstico, com queimaduras de terceiro grau, e passou vinte dias no Hospital Estadual de Bauru. Quando recebeu alta, voltou para casa sem ser testada para a covid-19. Três dias depois, sentindo dores de garganta que persistiam e falta de ar, fez o teste com a equipe de saúde multidisciplinar da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que atua na comunidade, e deu positivo. O fato ocorreu no dia 2 de agosto, quando ela fez o primeiro teste rápido, repetido no dia seguinte pela Prefeitura de Avaí que confirmou o resultado. A mulher de 49 anos sofre de diabetes e hipertensão, e teve contato com outros dez membros de sua família. Já testados, eles também permanecem em isolamento. 

Para Edenilson Sebastião, o cacique Chicão da aldeia Kopenoti, o hospital cometeu uma falha em não testar a mulher antes de ela ir embora. “Foi negligência do hospital”, avalia o cacique, preocupado com a contaminação dos 700 indígenas que vivem na Kopenoti, uma das quatro aldeias da Reserva de Araribá. As demais são Ekeruá, Nimuendajú e Tereguá, ocupadas por populações Terena e Guarani.

A equipe de saúde atendeu os membros da família que tiveram contato com a mulher contaminada. Nenhum deles testou positivo para o coronavírus. De acordo com o cacique, a equipe de saúde sofre com a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), os quais deveriam ser fornecidos pela Sesai. Outra carência na comunidade são materiais de higiene, também de responsabilidade da secretaria.

Testagem na Reserva

O início dos testes em massa na população das comunidades indígenas ocorreu no dia 19 de agosto, duas semanas após o primeiro caso de covid-19 ter sido confirmado na Reserva. Os testes serão feitos em parceria com o Instituto Butantã. O pedido, do cacique Chicão Terena para o Ministério da Saúde por meio da Sesai, é de que todos os moradores das quatro aldeias sejam testados. 

O primeiro dia de testagem foi feito na aldeia de Kopenoti, onde moram mais de 200 indígenas. Na sequência, serão testados os moradores da Ekeruá, na quinta-feira, dia 20. No dia 21, os testes ocorrem na aldeia Nimuendaju. E por fim, na segunda, dia 24, é a vez da aldeia Tereguá.

Genocídio viral

Aquilo que diz Eduardo Galeano no livro “As Veias Abertas da América Latina”, o qual que constata a colonização dos países latino-americanos perdura até os dias de hoje, é também endossado pelo Comitê Nacional Pela Vida e Memória dos Povos Indígenas, para explicar a análise dos dados de contaminação por coronavírus da população indígena. “Milhões de indígenas foram dizimados pela livre circulação de doenças, como na época da invasão portuguesa ou durante a ditadura militar”, explica o comitê, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Os dados coletados pela organização fazem frente aos dados “oficiais” do governo, estes por sua vez, subnotificados. O número de óbitos de indígenas registrados na plataforma Emergência Indígena é de 690, pertencentes de 102 populações diferentes. 

O Ministério da Saúde informa, a partir de dados coletados pela Sesai, o número 346 óbitos de indígenas em todo o país, até o momento da publicação desta matéria. Ou seja, mais da metade dos dados contabilizados pela APIB não foram registrados nos dados do governo. O Conselho Indígena Missionário (Cimi) contesta:Secretaria não dá assistência nem contabiliza casos ocorridos em contexto urbano”. Segundo o texto do Cimi, a Sesai defende que esses casos devem ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), algo que vai contra uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), e também as próprias reivindicações de organizações indígenas.

Indígenas protestam contra a extinção da saúde indígena (Foto: Bibiana Garrido e Lucas Mendes/Jornal Dois)

No ano passado, em 28 de março, indígenas se manifestaram contra a municipalização da saúde indígena proposta pelo Ministério da Saúde. A marcha histórica contou com quatro mil indígenas nas ruas Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foi uma mobilização nacional e os protestos ocorreram em 22 estados do país, além do Distrito Federal.

Da reserva de Araribá, cerca de 200 indígenas fizeram um ato no quilômetro 339 da Marechal Rondon, interditando a pista por trinta minutos no sentido interior-São Paulo, no qual a reportagem do Jornal Dois esteve presente. Apesar disso, Bolsonaro impôs o decreto  de número 9.795, que na prática integra a Sesai com os municípios, preparando o terreno para uma mudança definitiva. 

Manifestação dos indígenas da Reserva de Araribá no quilômetro 339 da Marechal Rondon (Foto: Bibiana Garrido e Lucas Mendes/Jornal Dois)
Conscientização

No início da pandemia professores indígenas das comunidades fizeram um trabalho nas escolas, com as crianças das aldeias, para orientá-las quanto aos cuidados com o coronavírus. Tiveram apoio e acompanhamento da equipe multidisciplinar de saúde. Em seguida as aulas foram paralisadas, e os pedidos para evitar as saídas e as visitas em Araribá foram se intensificando. Logo a covid-19 passaria a avançar pelo interior de São Paulo. 

As reuniões nas aldeias também foram cessadas, apesar de festas, grupos de danças e eventos sociais serem parte cultural das famílias. Esse ano, por exemplo, a comemoração do Dia do Indígena, que ocorre na Aldeia de Ekeruá no dia 19 de abril, não aconteceu. De acordo com o cacique Chicão, os jogos indígenas marcados para setembro também foram cancelados.

Plano emergencial

Nesse momento mais do que nunca, as famílias têm dificuldade em manter uma economia sustentável. Vivendo da agricultura familiar, com o cultivo de batata doce, mandioca, abobrinha, e outros alimentos, Araribá enfrenta dificuldades de gerar renda com o isolamento social. “Precisa fazer o escoamento dos produtos, mas também tem que controlar a entrada de atravessadores, né? Então, a gente tem dificuldade de vender eles”, explica Chicão. 

Para quem vive do artesanato, o cenário não é diferente. Com a interrupção da visita das escolas e da ida a eventos, não é possível apresentar a venda dos trabalhos artesanais. “Isso tem trazido um efeito negativo pras famílias nossa comunidade”, conta o cacique.  

A Articulação dos Povos Indígenas da região Sudeste (Arpin Sudeste), encabeçada pela Comissão Guarani Yvyrupa, organizou um plano emergencial de combate à pandemia de covid-19 entre os povos e territórios indígenas da região Sudeste. Entre os coordenadores da organização, está o cacique Chicão. Ele explica à reportagem que o plano tem estratégias para as aldeias do estado de São Paulo e Rio de Janeiro. 

No plano, a problemática da renda das comunidades indígenas é colocada da seguinte forma: “A maioria dessas etnias sobrevivem apenas da produção e venda de artesanatos, como única fonte de renda. E com o avanço da Pandemia no Brasil, estes tiveram sua fonte de renda extintas, uma vez que os eventos realizados em Feiras, Encontros, Festas, bem como as atividades realizadas em ONG’s; Escolas, Universidades e/ou Ações promovidas junto às Secretarias e Governos estão suspensas pela Covid-19”.

Densidade demográfica da população indígena nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro (Fonte: Equipe Cartográfica do Plano regional de combate à pandemia de COVID-19 entre os povos e territórios indígenas da região sudeste | Técnico Responsável Edmilson Gonçalves)

O documento será enviado a órgãos governamentais, de acordo com o cacique, entre os quais estão a Funai, a Sesai, o Governo Federal, os governos estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro e os municípios ligados às terras indígenas. “Nesse plano, a gente mapeia as terras indígenas no estado de São Paulo, no Rio de Janeiro, em que estão localizados os escritórios da Funai, os escritórios da Sesai, e apresentamos as demandas relacionadas a pandemia, em relação a educação, a saúde, a  atividade produtiva e espiritual das plantações das ervas medicinais”, detalha Chicão.

Dia do Indígena é comemorado tradicionalmente na Aldeia Kopenoti (Foto: Edenilson Sebastião/Acervo Pessoal)

Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, de acordo com o plano, tem população total de 19.206 indígenas de diferentes etnias, fazem parte dos territórios de abrangência administrativa do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do litoral sul, dentro do subsistema de saúde indígena vigente.

E na política nacional 

Dia 19 também ocorreu a votação no Congresso para derrubar os vetos do presidente Bolsonaro ao Projeto de Lei 1142/20, o Plano Emergencial para o enfrentamento à covid-19 em territórios indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais.

O PL de autoria de Rosa Neide (PT-MT) foi apresentado em maio, e representa uma resposta em nível nacional dos povos em vulnerabilidade durante a pandemia.

Bolsonaro vetou 22 pontos do projeto enviado para sanção, no que diz respeito ao acesso a água potável, distribuição gratuita de materiais de higiene e limpeza, oferta emergencial de leitos hospitalares, de terapia intensiva, compra de ventiladores, entre outros.

“O objetivo é destruir a única resposta que o governo poderia dar por meio do parlamento no atendimento aos povos indígenas e povos tradicionais do Brasil” aponta Letícia Camargo, ativista socioambiental, em sua página no Instagram.

A partir de um acordo entre líderes dos partidos, foram retirados alguns dos vetos, dentre os quais, segurança alimentar e nutricional, pacote orçamentário de apoio ao projeto, e orçamento extra para apoio de povos e comunidades tradicionais.

Dos 22 vetos iniciais, 16 foram derrubados. “O caso é de genocídio, é gravíssimo o que o governo tá fazendo, alguma resposta tem que ser dada”, critica Letícia.

Solidariedade

A solidariedade nesse momento tem sido fundamental para as famílias nas aldeias. Campanhas tentam amenizar os obstáculos da conjuntura, já que o auxílio do Governo Federal é insuficiente: de acordo com Chicão, a cesta básica da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) não é enviada todo mês. 

Um dos “parceiros de luta”, nas palavras de Chicão, é a organização Araci Cultura Indígena, cujo presidente Irineu Nje’a Terena tem ajudado na arrecadação de alimentos para a comunidade. Irineu conta que Araci se consolidou em 2014, e desde então trabalha na preservação da cultura e da história dos povos indígenas.

O Terena, historiador e antropólogo, comenta que sempre fomentou campanhas de apoio para a aldeia Kopenoti, onde residem seus familiares e na qual lidera a construção de uma casa de reza Koixomuneti. O objetivo do projeto é mobilizar e resgatar a espiritualidade indígena e xamânica da comunidade. Irineu lembra que essa tradição quase foi enterrada com o falecimento de sua avó, a última xamã da aldeia. 

 

Desde março as aldeias recebem doações de alimentos graças à campanha de arrecadação. Irineu divulga as necessidades dos moradores de Araribá em suas redes sociais e convida quem puder a colaborar. Além de manter diversas páginas voltadas a propagandear a cultura indígena, ele também participa conversas ao vivo, as popularizadas “lives”. Com esse canal aberto, diversas pessoas tem se sensibilizado em apoiar a causa indígena e prestar mais atenção nesse contexto. O antropólogo passa o recado: quem quer se engajar na luta da população indígena, basta “chegar junto” com aquilo que pode oferecer.

Vale mencionar uma ação coordenada entre a Conab e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que enviou duas cestas alimentares por família, em doze aldeias do estado de São Paulo, em junho desse ano. A campanha de caráter emergencial visava mitigar os efeitos negativos da covid-19, isto é, amenizá-los nas populações em situação de risco nutricional e alimentar.

 Já a campanha “A Fome Não Pode Esperar” de arrecadação de alimentos para populações indígenas do estado de São Paulo, promovida Frente de Apoio da APIB, arrecadou 50 toneladas de alimentos em quatro meses. A iniciativa conseguiu atender, até o dia 3 de agosto, 62 aldeias das 93 existentes no estado. “Com entidades, com artistas, arrecadando os fundos, recursos, para ajudar as comunidades indígenas no enfrentamento da pandemia… e tem muitas famílias precisando”, pontua Chicão. Para fazer uma doação, acesse o site da campanha.

São diversas maneiras de apoiar a causa indígena, a primeira delas é entrando em contato com a cultura (Foto: Informações de contato e agência bancária)
Jupira, presente

A indígena Jupira Terena faleceu no dia 31 de julho na cidade de Bauru. Nascida em Araribá, filha da aldeia Kopenoti, tem em seu obituário problemas cardíacos como causa da morte. “Foi uma grande guerreira”, admira o cacique, e comenta a importância de seus trabalhos a frente da Associação das Mulheres do Centro Oeste Paulista, que fundou em 1995. 

Jupira trabalhou na Funai desde 1979, participou do Primeiro Seminário das Mulheres Indígenas e foi coordenadora do conselho de articulação dos Povos e Organizações Indígenas no Brasil. Estava filiada ao PSOL, sigla pela qual disputou eleições para deputada federal em 2018. 

Em 2017, a Comissão das Mulheres Indígenas foi criada com o objetivo de aproximar anciãs e jovens líderes, para revitalizar a cultura e fortalecer a defesa do território. Todos os anos diversas mulheres dos territórios indígenas de Araribá se reúnem em uma grande plenária, para trocar saberes tradicionais e discutir as principais reivindicações das comunidades. Também ocorrem reuniões periódicas de articulação entre as aldeias.

“A mulher indígena precisa ter força, voz, expressão de seu sentimento, para poder contribuir na organização social da comunidade”, diz cacique Terena (Foto: Chicão Terena/Acervo Pessoal)
Avanço do agronegócio

Plantios de monoculturas têm ganhado há algumas décadas o terreno das propriedades rurais do interior de São Paulo. No entorno das terras de Araribá não é diferente. “O uso dos agrotóxicos que são utilizados pelas empresas afeta diretamente a comunidade”, critica o cacique Chicão, a respeito do avanço da citricultura na região. 

Jaime Amorim, assentado e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), resgata dados do Censo Agropecuário de 2017: 72% do que consumimos vem da agricultura camponesa. Na aula “A Luta pela Terra no Nordeste” do curso Questão Agrária e Agroecologia, promovido pelo Centro de Formação Paulo Freire, ele ressalta que o agronegócio concentra 92% das terras do Brasil, ainda que 80% de sua produção seja composta por ração animal para exportar a países como China e Estados Unidos.

As terras de Araribá estão perto de plantios de laranja e de eucalipto. “Hoje nós temos uma grande área de plantio de eucaliptos, vizinho da terra indígena, que indiretamente vai impactar no solo e contaminar a água”, lamenta Chicão. 

Por conta disso, o cacique avalia que há um desequilíbrio que acarreta em prejuízos para a comunidade indígena. “Não tem como você falar diante de quem só pensa na economia, só pensa no lucro, né?”, indaga ele. “Ficamos nesse meio, buscando formas de sobreviver nesse espaço, preservando o rio, a mata e a floresta”. 

Território em luta

Homologada em 1991, a área de dois mil hectares da Reserva de Araribá resiste. E a vigilância deve ser constante. No mesmo momento em que se escrevia essa reportagem, as famílias do Acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio, MG, eram despejadas, depois de mais de 21 anos vivendo no local. 

Um dos primeiros atos da Polícia Militar do governo de Romeu Zema (Partido Novo) na manhã do dia 13 de agosto foi destruir a escola da comunidade, cujo nome era, coincidência ou não, Escola Popular Eduardo Galeano.

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