Estudante bauruense é alvo de racismo e machismo na Universidade Federal do Tocantins
“Você tá prenha?” foi uma das mensagens recebidas por Raquel de Abreu no Whatsapp; caso virou processo administrativo disciplinar e aluno denunciado à direção foi suspenso por 90 dias
Publicado em 2 de abril de 2020
Por Bibiana Garrido
Raquel de Abreu é moradora da zona leste de Bauru e foi estudar História na Universidade Federal de Tocantins (UFT) em 2017. À reportagem, ela conta que viveu a infância e adolescência mudando de um bairro periférico para outro, tendo morado com mãe e irmãos em uma barraca na ocupação que deu início ao Ferradura Mirim nos anos 1990.
Em março de 2021, seu último ano na graduação, recebeu mensagens racistas e machistas em um grupo de WhatsApp da moradia estudantil do campus de Porto Nacional, 52 km da capital Palmas (TO). A Casa do Estudante levou o caso à direção, que suspendeu o estudante autor das ofensas por 90 dias até a conclusão do processo administrativo disciplinar.
As mensagens mostram que o estudante perguntou a Raquel se ela estava “prenha”, com áudios chamando-a de “esquizofrênica”, “perturbada” e “louca”. Também disse que “foi só uma piadinha”, sugerindo “vai lavar um prato”. E ameaçou: “meu pai quando tentou me bater, levou um murro na boca. Meu pai que me criou. Vê se eu tenho medo de moleque de faculdade, pode fazer o B.O.”.
Em entrevista ao Jornal Dois, Raquel explica que isso aconteceu depois que ela e outros estudantes enviaram mensagens ao grupo sobre atividades de organização da moradia estudantil. No meio da conversa, ela falava sobre ter feito uma ultrassonografia quando o estudante começou com as ofensas.
“Um homem branco me perguntou se eu estava ‘prenha’, porque uma professora me ajudou a fazer ultrassonografia quando tive problemas de saúde”, relata a estudante. “Quando um homem pergunta para uma mulher se ela tá prenha, sendo que a palavra é grávida, ele está dizendo que ela é um animal. E quando um homem branco diz a uma mulher negra que ela está prenha, ele sugere que ela é um animal. Se dirigir a uma mulher negra como um animal é racismo há muito tempo”, completa.
Junto aos demais moradores da Casa do Estudante, Raquel entregou à UFT uma carta com prints das mensagens e transcrição dos áudios, solicitando providências – o estudante denunciado em questão também vivia no prédio coletivo. Por unanimidade, a moradia estudantil votou pela suspensão do universitário.
Etiene Pires Oliveira é a diretora do campus de Porto Nacional e comentou o caso ao J2: “Enquanto representante de uma instituição pública de ensino, que preza pela diversidade de forma ampla e democrática, não serão toleradas atitudes de desrespeito e ameaças, ainda mais revestidas pelo machismo e pelo racismo, grandes males da nossa sociedade”.
A diretora informa ainda que o estudante foi encaminhado para atendimento psicológico na própria universidade e que recebeu apoio para que pudesse se retirar da moradia. “O denunciado por meio de áudio ou mesmo textualmente expressa conteúdo racista e machista na tentativa de afirmar sua posição, ultrapassando os limites da discordância, não priorizando a boa convivência”, avalia.
Além do processo interno, Raquel fez um boletim de ocorrência na Polícia Civil e está sendo atendida pela Defensoria Pública para responsabilização jurídica do estudante.
“Eu entrei com 30 anos na universidade, sou uma que está aqui, mas tenho quatro irmãos negros que não entraram. Mesmo que a gente chegue aqui, não somos desejados. O corpo negro não é o corpo desejado”, critica.
Raquel lembra que, na época que ingressou, a moradia estudantil ficava longe do campus e isso dificultava a rotina dos estudantes. A conquista da moradia interna se deu graças à mobilização estudantil com ocupação de um bloco de prédios dentro da UFT em 2018.
“Como mulher negra e periférica, apliquei as ferramentas que aprendi com a minha mãe na infância e adolescência. Desde o começo lutando pela ocupação, pedindo estrutura e organização para superar aquela moradia precária. Estou ativamente nesse espaço, para que se revigore como casa, principalmente num momento que temos que ficar dentro de casa. E tudo pode retroceder se a gente não está em atividade, então não podemos deixar pensar que a luta acabou e que está resolvido”.
Em 2019, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que estudantes negros e negras eram maioria nas universidades públicas pela primeira vez na história do país. Um reflexo da lei 12.711 que instituiu as cotas raciais e sociais para entrada nos ensinos superior e técnico federais. O ingresso de Raquel na UFT foi por meio das cotas com o Sisu, utilizando suas notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
O racismo que se faz presente no ambiente acadêmico é uma faceta do que se configura como racismo estrutural fundante do modo de vida capitalista. Para que a desigualdades e violências pudessem ser naturalizadas – por meio de discursos como mérito e merecimento – seria necessário que algumas vidas fossem tidas como “menos valiosas” do que outras. Eis o ato discriminatório motivado pela raça.
Pichações racistas no campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) atacaram, em 2015, estudantes e professor do campus de Bauru. As frases, encontradas nas paredes dos banheiros, diziam: “Unesp cheia de macacos fedidos”, “negras fedem” e “Juarez macaco”, em referência ao professor doutor Juarez de Paula Xavier – hoje, vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação na universidade. Em 2019, o mesmo professor foi esfaqueado quando andava em uma avenida de Bauru, no Dia da Consciência Negra.
Segundo Silvio Almeida, que é advogado, filósofo, professor universitário e autor do livro “Racismo Estrutural”, o racismo presente nas estruturas da sociedade é um fenômeno que está ligado ao funcionamento e reprodução das bases que moldam a vida social: relações econômicas, políticas, jurídicas, constituição de ideologias e processos individuais como pensar e sentir. Na universidade, o racismo afeta, inclusive, a notoriedade dos conhecimentos produzidos por pesquisadores e pesquisadoras negras.
Trabalhando em seu projeto de conclusão de curso de História, Raquel administra o perfil @etnografiadascomunidades no Instagram para falar sobre o direito à cidade, a luta pela moradia e pela terra.