Grafiteiros em intervenção artística nos muros da Escola Estadual Ada Cariani (Foto: Divulgação/ Ada Cariani)

Por Letícia Sartori


O último dia de setembro amanheceu com o tempo fechado, domingo de chuvas constantes por toda a cidade. Na zona leste de Bauru não foi diferente, no bairro do Mary Dota as pancadas começaram antes da hora do almoço e se estenderam durante todo o dia.

Mas nem a chuva nem o tempo fechado foram suficientes para afastar dezenas de jovens da Escola Estadual Prof.ª Ada Cariani. Protegidos do aguaceiro no pátio interno da escola, estavam famílias, crianças, adolescentes e jovens adultos que aproveitaram o evento “Hip Hop no Ada.”

Inaugurado em 1991 o Mary Dota já foi considerado o maior conjunto habitacional da América Latina. Atualmente conta com uma população estimada em 18 mil habitantes, maior do que diversas cidades da região. Além de ser o principal bairro da zona leste, servindo de centro de comércio, atividades e entretenimento para outros bairros como o Núcleo Beija-Flor, Jardim Chapadão, Quinta da Bela Olinda e Núcleo Nobuji Nagasawa.

É preciso conhecer esse histórico para entender a importância da única escola estadual do bairro, a Ada Cariani, para a comunidade. E o reflexo que um evento deste porte tem para os estudantes e suas famílias.

O movimento Hip Hop no Ada é organizado desde 2017. Uma ação conjunta de alunos, ex-alunos e professores da escola. Sendo mais direta, por Marcela Gonçalves Educadora Universitária e ex-aluna do Ada Cariani. Pelo rapper e estudante do 9º ano Pedro Miranda, também conhecido como Drop. E pela professora de geografia Nilva Pereira, responsável pela gestão do programa Escola da Família.

Além de ser um simples entretenimento para a juventude do bairro e de outros lugares da cidade, o rap atua como um forte agente transformador da realidade, segundo Marcela. “Traz uma ideologia diferente pra eles, um conceito diferente sobre o mundo.” Não à toa o movimento Hip Hop em Bauru sempre foi muito ligado às escolas públicas da cidade.

Seja em eventos independentes como o Hip Hop no Ada e outras iniciativas como o Hip Hop Atitude, organizado pelo Coletivo Avanço Ação na Escola Estadual Prof.ª Marta Aparecida H. Barbosa, CAIC, na Zona Oeste da cidade. Ou então no momento de ápice da cultura hip hop na em Bauru, a Semana do Hip Hop. Em que sua programação há o Combo Cinco Elementos, no qual a Casa do Hip Hop organiza debates e apresentações da cultura hip hop nas diversas escolas públicas de Bauru.

O contexto da cultura hip hop, nascida diretamente da realidade da população negra a coloca em cheque com a política conservadora e racista dos seus primórdios até os dias atuais. Em um processo muito parecido com o Samba, que no início do século XX era criminalizado com diversos músicos presos por “vadiagem”. Assim como o Funk, movimento que enfrentou processos de criminalização na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e diversas instâncias políticas.

Além do grafite e shows, durante a tarde os jovens puderam aproveitar uma batalha de rima (Foto: Letícia Sartori/Jornal Dois)

E Bauru?

No começo de setembro, Benedito Meira (PSB), vereador e ex-coronel da PM, chamou em sessão na Câmara Municipal o antigo prédio da estação ferroviária de “reduto de nóia”. E que o prédio além de não servir de abrigo para a Secretaria de Educação, uma antiga proposta da prefeitura, abrigava “alguma coisa da deseducação, negócio de hip hop não sei o que, essa porcariada toda de funk.” O vereador seguiu ainda os comentários: “Isso não leva a nada, não educa ninguém. Isso deseduca as pessoas. Mas tá lá sendo usado. Ah! Cultura é legal. Legal o caramba, aquilo ali tem que ser usado para com finalidade educativa.”

Atualmente o prédio da antiga estação ferroviária abriga a Casa do Hip Hop, ponto cultural responsável pela organização de um dos maiores festivais de hip hop da América Latina e pelo Cursinho Popular Acesso Hip Hop, destinado a alunos de baixa renda e provenientes de escola pública. Ponto cultural cujos projetos e oficinas foram recentemente aprovados no Programa de Incentivo à Cultura do Estado de São Paulo (PROAC), destinado a programas ligados ao Hip Hop. Além disso, a estação ainda é casa da Orquestra Municipal, cursos de teatro, desenho e circo da Divisão de Ensino às Artes (DEA), ligado a Secretaria de Cultura de Bauru; da Academia Bauruense de Letras e outros diversos projetos artístico-culturais de cunho educacional.

Sobre o ataque do vereador Pedro coloca “Como que a gente é Nóia? A gente tá fazendo um movimento dentro de uma escola, um lugar pedagógico. Se tivesse um conteúdo pesado a gente não ia poder estar aqui. A nossa diretora não ia ceder o espaço pra gente. A gente veio trazer mais educação pras pessoas mesmo.” Com a experiência de quem com quinze anos já organiza eventos educacionais, ele é mestre de cerimônia de uma das principais batalhas da cidade (ZL) e tem consciência da importância de seu trabalho.

Marcela concorda com o rapper. “É o que ele falou. Pô, trouxe pra uma escola um evento desses. Completamente diferente trazer um conceito diferente de mundo, uma filosofia diferente pra qualquer um que tá aqui. Tanto que teve família aqui, com as crianças e bebês. Então todo mundo gosta quando tem esses eventos, a comunidade gosta.”

Cerca de 60 pessoas se reuniram para aproveitar o domingo e a cultura hip hop (Foto: Letícia Sartori/Jornal Dois)

Imagem e som como cultura

O evento começou logo cedo com a reunião de diversos grafiteiros redecorando o muro do Ada, mas a arte teve que ser interrompida pela chuva. Assim a pintura se transportou para o lado de dentro da escola, nas paredes e muros do pátio interno.

Já o som começou à uma hora da tarde, reunindo MCs e grupos da zona leste e diferentes bairros da cidade. Contando com nomes como Estrofe, Raízes da Alma, Xard, GRD e outros artistas locais, o Ada Cariani se tornou naquele momento o epicentro do mundo do hip hop em Bauru. Artistas que variam dos 15 aos 20 e poucos anos de idade, mas que independente da pouca idade lutam pelo hip hop no seu dia a dia.

O grafite continuava sendo produzido enquanto os MCs e grupos se apresentavam. Ao final das apresentações espera-se pela continuação do show: a famosa batalha de rima. Pra quem não conhece o andamento da coisa, formam-se as chaves de batalha de acordo com a quantidade de MCs que se inscrevem. E uma dupla por vez, os MCs devem batalhar entre si num combate individual, o voto para ver quem irá para a próxima fase da batalha é sempre da plateia.

No modelo da batalha escolhido, de sangue, os MCS devem se atacar e apontar falhas do seu adversário. Sejam elas físicas, de caráter, conhecimento, postura e mesmo cobranças de batalhas anteriores.

É nesse momento que se entende que o hip hop é uma cultura e universo próprio dentro da cidade de Bauru. Além de debater questões políticas da cidade e das eleições que estão chegando, os MCs presentes no palco se conhecem, jogam truco, bola, assistiram os mesmos filmes e muito provavelmente já se encontraram em outras batalhas. São jovens que além de estudar, trabalhar e viverem suas vidas cotidianas, transmitem seus pensamentos críticos sobre a realidade em forma de arte.

É de se pensar o peso que a cultura hip hop tem dentro da cidade, aquém de um reconhecimento político que há com certeza de vir, mas mais na vida material da juventude. Para mais que um final de semana de Escola da família, o que por si só já deve ser reconhecido como um projeto de extrema importância, o que se viu no Ada Cariane no último domingo do mês passado foi uma juventude crítica, atuante politicamente e para além de uma organização externa, reconhece a importância da arte e cultura dentro da comunidade.

Além de movimentar os laços de economia criativa locais. O ganhador da batalha, Estrofe MC, levou para casa um beat produzido pelo beatmaker ZZ Beats. Prêmio constante nas diversas batalhas que acontecem por Bauru. Para o segundo lugar, uma camiseta da grife do rapper Dom Black, uma referência musical para os diversos artistas que se apresentaram nessa tarde.

Com o fim da batalha, se anuncia o término do evento. Os jovens saem da escola em grupos e partem para aproveitar o final da tarde, num domingo que no fim do dia a chuva resolveu dar uma trégua e abrir um céu azul.

Classificação da Batalha de Rima (Arte: Letícia Sartori/Jornal Dois)