Fome: a pandemia que compete com Covid-19 na população de rua
Expostos ao coronavírus e sem muitas alternativas de prevenção disponíveis, pessoas em situação de rua sofrem também com os efeitos da crise econômica
Publicado em 30 de março de 2020
Por Paula Betteli
Camile tem 17 anos, está há dois meses em situação de rua em Bauru com seu companheiro de mesma idade, Hugo. Pouco mais de uma semana atrás o casal acreditou que estava prestes a mudar de vida. Hugo conseguiu um emprego como lavador de carros e os dois começaram a buscar uma kitnet, para alugar assim que ele ganhasse seu primeiro salário.
No entanto, por motivos externos a eles, os rumos mudaram. Cinco dias depois de Hugo começar no trabalho, o prefeito Gazzeta decretou situação de emergência em saúde pública na cidade, por conta da pandemia do novo coronavírus.
As portas do lavacar em que estava trabalhando fecharam por tempo indeterminado e Hugo perdeu seu emprego. Sem alternativa, o casal continua andando pelas ruas dia a dia buscando local para dormir.
Junto deles está Denise. Ela tem 34 anos e veio de Pirajuí para Bauru há um ano, buscando melhorar de vida. “Eu estou sabendo pelos boatos dos outros que está morrendo muita gente, mas a gente que está na rua entrega sempre na mão de Deus. Acho que se for de Deus para pegar, eu vou pegar”, diz, se referindo ao novo coronavírus.
Quando questionada sobre estar se prevenindo, conta que lava as mãos com água sempre que encontra uma torneira, mas que não tem como evitar o contato com outras pessoas. “Tá no ar [o vírus], mas a gente vai correr para onde? Tem morador de rua em todo lugar, aqueles são, aqueles também são, em todo lugar tem”, diz, apontando para as pessoas sentadas nos bancos da praça Rui Barbosa.
Em dias normais, a praça é frequentada por trabalhadores no horário de almoço, por idosos que ficam sentados na sombra jogando cartas, por ambulantes e consumidores. Desde a semana passada, se encontra quase vazia. As únicas presenças são as das pessoas que não tem moradia para se abrigar durante a quarentena.
Posicionamento Oficial
Naihma Fontana, especialista em infectologia pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), esclarece que pessoas em situação de rua são muito mais vulneráveis ao vírus. “São pessoas que não tem acesso a produtos de higiene, invariavelmente sofrem desnutrição, são usuários de drogas e portadores de transtornos mentais, o que os torna especialmente vulneráveis”.
Em coletiva feita pelo Governador do Estado de São Paulo, João Dória, na quarta-feira (25), a Secretária de Desenvolvimento Social, Célia Parnes, também citou que “a população em situação de rua é a mais vulnerável do nosso Estado”.
Sem ter para onde ir, essas pessoas se espalham pelas praças da cidade. “Eles não admitem a gente entrar no albergue, sobra vaga e eles não aceitam a gente para dormir”, queixa-se Paulo Sergio.
Com 51 anos, ele assume não estar preocupado com a pandemia. Ainda assim, se indigna com a aparente falta de cuidado das instituições da cidade destinadas à assistência da população em situação de rua.
“Não deram nada, nada, nada. Apoio nenhum, orientação nenhuma. Nem albergue, nem Centro Pop, nem a sociedade em geral. Inclusive, às vezes eles não deixam você nem entrar aí dentro [do Centro Pop], viu. Te tratam pior do que cachorro de rua”, declara.
Segundo a assessoria de comunicação da Prefeitura, os serviços que estão atuando na prevenção do contágio da população em situação de rua são o Centro Pop, o Consultório na Rua e o Serviço de Abordagem Social, com atendimentos e orientações.
Todos os entrevistados afirmaram não ter recebido instruções para prevenção da transmissão, e nenhum deles foi atendido pelo Consultório na Rua nas últimas duas semanas, quando a Covid-19 se tornou assunto presente na cidade.
A médica infectologista Naihma afirma que os abrigos precisam realizar um trabalho contínuo e árduo. “Os abrigos precisam instituir treinamentos e educação contínua sobre hábitos de higiene pessoal, limpeza do ambiente, evitar o contato próximo”.
Além disso, alerta para a importância de desestimular o compartilhamento de cachimbos e piteiras. “E também disponibilizar roupas e enxoval limpos diariamente”, lembra.
Antes de Tudo, a fome
Adimilson, de Pirajuí assim como Denise, veio a Bauru três meses atrás para tratar uma fratura no mindinho esquerdo. Sem conseguir ser atendido pelos hospitais públicos da cidade, não recebeu tratamento. Hoje, além de continuar impossibilitado de movimentar o dedo, se encontra preso em Bauru em meio à crise do novo coronavírus.
Com 60 anos, Adimilson faz parte do grupo de risco e afirma que não se sente bem. “Ah, eu sei que eu não estou bom, não. Uma aguaceira no olho, uma aguaceira no nariz. Eu sei que eu não estou bom”.
Repete várias vezes durante a entrevista que quer voltar para sua casa. “Eu só quero voltar para minha casa em Pirajuí, ficar com minha família”, lamenta, sem previsão de quando será possível realizar seu desejo.
O ônibus circular de Bauru para Pirajuí, cidade de Adimilson, custa doze reais. Mas sem pessoas circulando pela rua fica difícil conseguir a passagem – todo o dinheiro que ele arrecada precisa usar para alimentação.
Denise conta que tem dias que passa fome. “Ainda bem que está tendo Bom Prato na hora do almoço. Agora, na janta é complicado”, desabafa. Diz se sentir sortuda por ter uma panela, porque assim consegue, “dia sim dia não”, cozinhar um miojo para disfarçar a fome.
Criado pelo Governo do Estado de São Paulo e desenvolvido pela Secretaria de Bem Estar Social, o Bom Prato é parte de um programa de segurança alimentar para pessoas de baixa renda, servindo diariamente refeições por 1 real. Desde a semana passada, para prevenção da Covid-19, as comidas estão sendo entregues em marmitas.
É o que tem aliviado a fome de pessoas em situação de rua na cidade. No entanto, sem janta, elas passam as 24 horas de intervalo entre um almoço e outro sem certeza de que conseguirão se alimentar.
Cássia, usuária do Centro Pop, afirma ter medo de ficar doente, mas teme mais ainda a fome. “Eu tenho bastante medo, para nós ficou difícil, porque as doações que tinha na rua, a maioria cortou. Estamos quase passando fome mesmo, está muito difícil para comer”.
Depois de ficar sabendo da pandemia pela televisão, Cássia passou a andar com um sabonete no bolso. “Eu carrego um sabonete no bolso, sabe, um pedaço de sabonete. Sempre que eu acho um lugar eu lavo a mão. Álcool em gel, às vezes quando eu acho em uma loja, eu passo. Mas aqui mesmo não tem para a gente usar”, conta, falando sobre o Centro Pop.
Apesar de estar se prevenindo, relata que seu companheiro e seus amigos em situação de rua não estão preocupados. “O povo não usa [álcool gel], viu. Estão mais preocupados com a fome”.
Naihma, que é especialista em Controle de Infecção, reforça que a contaminação de qualquer grupo prejudica a sociedade como um todo. “Acelera a epidemia, sobrecarrega o sistema de saúde e compromete a atenção aos casos mais graves”, afirma.
Mesmo com os riscos do coronavírus tão evidentes em todo o país, para pessoas em situação de rua essa é só mais uma das tantas questões que se deparam diariamente.
Denise, por exemplo, busca por um local em que consiga dormir com tranquilidade.
“Eu não tenho o que fazer, estou antes de tudo procurando um lugar. Está muito difícil de dormir aqui, muito difícil. Tem um outro aqui que já quer me pegar. Aqui é muito perigoso”, declara.