Como o desmatamento influencia no clima bauruense – e por que a Praça Portugal está no centro desse debate

A ocupação da praça depois do corte de parte das árvores por determinação da prefeitura levantou o debate sobre a conservação ambiental; o Jornal Dois conversou com especialistas para entender como o desmatamento impacta no clima e na oferta de água em Bauru

Publicado em 14 de outubro de 2021

Praça Portugal depois do corte das árvores pela prefeitura; retirada de vegetação pode afetar o microclima do entorno (Foto: Michel Amâncio/Jornal Dois)
Por Michel Amâncio
Edição Bibiana Garrido

A ação da Prefeitura de Bauru de retirada de 54 árvores da Praça Portugal no dia 8 de setembro chamou a atenção de diferentes setores da sociedade bauruense: ambientalistas, urbanistas e especialistas em clima e meio ambiente criticaram o poder público pela medida, que tinha como objetivo ligar as avenidas Getúlio Vargas e Comendador José da Silva Martha retirando uma parte da praça.

Em protesto, ativistas ambientais e militantes ocuparam a Praça Portugal entre os dias 16 e 19 do mesmo mês como forma de levantar o debate público sobre o desmatamento. No terceiro dia do acampamento “Levante Pelas Raízes”, indígenas da aldeia Tereguá realizaram uma roda de conversa no local, evento que contou com a presença de Priscilla Teles de Oliveira, meteorologista do Instituto de Pesquisas Meteorológicas (IPMet) e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Priscilla é especialista em mudança climática e conversou com o Jornal Dois sobre o impacto do desmatamento no clima bauruense. A professora disse ter ido ao evento na praça por ser contra a ação da prefeitura, que caracterizou como “insensível”, e porque considera que “poucos meteorologistas são chamados para falar sobre meio ambiente”.

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A pesquisadora, que também é ativista do coletivo Comitê pelo Clima – Bauru, explicou que há uma “grande diferença” entre um solo coberto por vegetação e outro desmatado: “Num local com plantas, a temperatura é mais agradável pelo fato delas refletirem melhor a energia solar e devido à evapotranspiração”.

Já em ambientes em que predominam o asfalto e o concreto, “há uma absorção de quase toda a energia solar”. Priscilla exemplificou: “Se você passa no centro da cidade uma da tarde, é impossível andar descalço no asfalto por causa dessa absorção”. Quanto mais energia solar for absorvida pelo solo, maior vai ser a liberação de calor para a atmosfera, o que eleva a temperatura do ambiente, explica a pesquisadora.

Ela ressalta que a alteração na temperatura local não é a única consequência do desmatamento em uma região. Uma área arborizada tem grande capacidade de absorção de água, “porque as raízes fazem com que a chuva infiltre no solo”. Essa infiltração é indispensável para o abastecimento dos aquíferos, que é de onde vem a água dos poços explorados pelo Departamento de Água e Esgoto (DAE). 

Vale ressaltar que o município vive uma crise hídrica pelo menos desde 2013 e que o uso desenfreado dos poços, sem o devido tempo para reabastecimento dos aquíferos, pode tornar a captação de água do subsolo inviável até 2034, como apontado por reportagem do J2.

Priscilla lembra que “se a gente tem um solo nu, só com terra, a água vai escoar, já que são as raízes que afofam o solo e fazem ele absorver mais”. E o problema tende a piorar se a superfície for impermeabilizada: “Se tiver muito asfalto, isso vai intensificar as inundações, como as que acontecem sempre aqui na Nações, que é uma avenida que ainda tem o agravante de ter sido construída no local do rio”.

Ao ser questionada sobre as consequências da retirada das árvores da Praça Portugal, a pesquisadora afirmou que, do ponto de vista do clima de Bauru, provavelmente “não vai ter impacto climático”, já que aquela é uma área pequena em comparação ao município. Mas pontuou que deve haver um “maior impacto no microclima, em relação ao conforto térmico daquela região”.

“Conforto térmico é um estado total de bem-estar físico e mental que expressa satisfação com o ambiente térmico ao seu redor”, de acordo com o Laboratório de Eficiência Energética da Universidade Federal de Santa Catarina

De acordo com José Xaides, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo na Unesp em Bauru, a Prefeitura Municipal poderia ter implementado uma alternativa mais “saudável e sustentável” na zona sul, que favorecesse “o pedestre, o uso maior de bicicletas e outros transportes alternativos em detrimento dos automóveis”.

Um estudo de 2012, das arquitetas Carla Cristina Amaral e Maria Solange Gurgel de Castro, demonstra o impacto do “intenso uso de veículos motorizados nos corredores urbanos” em Bauru, que “degradam o ambiente e, consequentemente, a qualidade de vida dos pedestres”, de acordo com as autoras.

As pesquisadoras calcularam o índice de conforto térmico na avenida Rodrigues Alves e concluíram que “as condições de tempo quente são as mais críticas” para os pedestres que circulam pela região central da cidade. Além da alta temperatura, o trabalho destaca os baixos índices de umidade relativa do ar, que também piorou o conforto térmico das pessoas.

Em outra pesquisa envolvendo o município, publicada em 2017, as pesquisadoras Marina Piacenti da Silva e Fernanda Rodrigues Diniz e o pesquisador Gustavo Santos Miranda compararam os índices de conforto térmico das cidades de Bauru e São Paulo. De acordo com o estudo, “Bauru é termicamente menos confortável do que a cidade de São Paulo” devido a uma série de fatores naturais locais.

Bauru está localizada numa região naturalmente quente e seca do estado, por isso o risco de aumento da temperatura local – e consequentemente maior desconforto térmico – pode ser agravado com o desmatamento de regiões arborizadas.

Priscilla destacou que, apesar de não acreditar que o corte das árvores da praça altere todo o clima bauruense, se “a gente vai cortando a vegetação de pouquinho em pouquinho, no final dá uma diferença drástica”. O bioma do Cerrado, que já representou 14% do estado de São Paulo, hoje ocupa menos de 1% de todo o território, como consequência do desmatamento gradual desde o século passado.

Como já publicado pelo J2, desse restante de vegetação preservada do Cerrado em território paulista, Bauru, Agudos e Pederneiras concentram a maior parte. Entre os fatores de importância do bioma está o fato de que oito das 12 bacias hidrográficas do Brasil nascem no Cerrado. Seu solo poroso, graças às raízes profundas da sua vegetação, faz com que o local seja a fonte de recarga de aquíferos que abastecem grande parte do país.

Ainda sobre a praça

O ex-prefeito Clodoaldo Gazzetta (PSDB) defendeu a conservação da vegetação da Praça Portugal e criticou a ação de desmatamento por parte da prefeitura. Ao J2, Gazzetta disse que “talvez tenha sido um erro a gente não tombar todas aquelas árvores”, em referência ao período em que esteve à frente da gestão municipal.

Ele também afirmou nunca ter imaginado “que algum dia essa obra pudesse acontecer”, e que não esperava “que alguém em sã consciência podia fazer algo assim”. O ex-prefeito disse ter acreditado que “a Praça Portugal, assim como o Bosque da Comunidade, ficaria preservada para as gerações futuras de Bauru”.

Suéllen Rosim (Patriota) reforçou que “Bauru precisa se desenvolver”, discurso que vem sendo repetido desde a sua campanha eleitoral em 2020. A prefeita afirmou que, para interligar as avenidas Getúlio Vargas e Comendador José da Silva Martha, “não tem outro jeito, a não ser suprimir essas árvores”.

Da esquerda para a direita: Diogo Zopone, diretor da empresa responsável pelo projeto de interligação viária que atravessa a Praça Portugal; o secretário de Planejamento, Nilson Ghirardello; e a prefeita Suéllen Rosim. Encontro aconteceu em agosto deste ano (Imagem: Reprodução/Prefeitura de Bauru)

Suéllen disse que a supressão das árvores seria compensada com o plantio de 550 mudas na região da praça. De acordo com a Prefeitura de Bauru, “o plantio da compensação ambiental da Praça Portugal será feito pela Secretaria do Meio Ambiente (SEMMA), a partir de novembro, época das chuvas”.

As obras na praça foram retomadas depois de terem sido paralisadas por liminar concedida pela juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello no dia 16 de setembro, como resposta a uma ação popular movida pelo advogado Edilson Nogueira. No dia 27 daquele mês, a magistrada revogou a própria decisão, autorizando a retomada da obra de interligação das avenidas. Segundo Tiago Camargo, professor de geografia e militante no Coletivo Ação Libertária (CAL), a decisão da juíza foi motivada por “pressão dos grandes empresários”.

O poder público não informou quais espécies de árvores serão plantadas, tampouco apresentou estudos de avaliação do impacto ambiental dessas mudas. Depois de nossa equipe de reportagem solicitar essas informações, a prefeitura informou que “a seleção das espécies foi feita considerando a caracterização ambiental” e que o plantio será realizado “com base em uma lista com mais de 150 espécies”.

De acordo com Priscilla, a compensação proposta pela prefeitura “só vai ser suficiente a longuíssimo prazo, porque 50 árvores têm uma quantidade de gás carbônico armazenada que nem se compara a mil mudinhas”. A meteorologista destacou que as árvores cortadas eram altas e com copas muito densas, e que por isso absorviam a energia solar e deixavam o local mais fresco. “Por mais que plantem muitas mudas, elas não vão absorver energia naquela mesma quantidade”, frisou a especialista em mudança climática.

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