Tratamento precoce, negacionismo e defesa da vida: como foi a audiência sobre lockdown em Bauru
Infectologistas, representantes de categorias trabalhistas e do poder público participaram da discussão; encontro foi marcado por divergência de argumentos; teses já descartadas pela ciência foram defendidas, como o tratamento precoce da covid
Publicado em 15 de abril de 2021
Por Camila Araujo
“Nós temos obrigação moral de não infectar outras pessoas”, afirmou Carlos Magno Fortaleza, médico infectologista e membro consultor do Comitê de Contingência Contra a Covid-19 no Estado de São Paulo, em audiência pública sobre ‘lockdown e estratégias de enfrentamento da pandemia’. A reunião foi promovida pela Câmara Municipal de Bauru, nesta quarta-feira, 14 de abril, por iniciativa de Estela Almagro (PT) e Coronel Meira (PSL), ambos vereadores.
Convidado, o infectologista, que também é professor livre-docente do curso de Medicina da Unesp de Botucatu, fez uma apresentação sobre o comportamento da covid-19 e as evidências científicas em torno das estratégias de isolamento horizontal restritivo. “A ideia do lockdown é evitar que as pessoas contaminadas possam transmitir a doença”, lembrou Magno.
O professor apontou que locais que adotaram o lockdown, como Reino Unido e Austrália, apresentaram melhora no número de casos de contaminação. Araraquara, cidade tida como contraponto na gestão da pandemia em relação a Bauru, também apresentou um quadro semelhante. A evidência foi apontada no gráfico abaixo, exibido por Carlos na audiência. Quando o lockdown foi aplicado, a tendência de contaminação diminuiu.
“O objetivo não é enaltecer o município, mas avaliar uma realidade mais próxima da nossa”, afirma ele. Em sua avaliação, a medida aplicada em Araraquara foi “boa”, mas não ótima. Isso porque, segundo ele, durou pouco: foram 10 dias de confinamento mais restritivo. E opina que “Bauru se beneficiaria de um lockdown rigoroso, de 14 a 21 dias”. A “pancada” no vírus seria grande de forma que provavelmente seria possível abrir o comércio inteiro em seguida. O infectologista também apontou que medidas mais restritivas seriam melhores para a economia. Segundo estudo, a recessão econômica é pior em locais com menor restrição à pandemia.
Carlos Magno disse também que leitos de UTIs não são bens infinitamente disponíveis. “Quanto mais leitos disponíveis, mais você vai enchê-los”, pontuou. Bandeira de luta contra a pandemia, a prefeita de Bauru,Suéllen Rosim (Patriota) tem reforçado a necessidade da ampliação de leitos na cidade como contrapartida para a abertura do comércio. Para o professor, “não adianta só ter leitos de UTI, é preciso evitar que as pessoas adoeçam”.
Diferentes pontos de vista
Ex-ministro de Saúde, médico infectologista e deputado federal, Alexandre Padilha (PT) também participou da audiência como convidado. Ele repudiou a “tese da imunidade de rebanho”, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), de que a pandemia seria superada quando 70% da população tivesse tido contato com o vírus. Afirmou que se trata de uma “tese furada do ponto de vista técnico e científico” e que “infelizmente ainda é endossada por representantes públicos, como membros do judiciário e do legislativo”.
“Para covid-19 não existe imunidade de rebanho e sim mortalidade de banho. Deixar as pessoas se infectarem significa que muita gente vai morrer porque as pessoas podem se infectar mais de uma vez”, argumentou o ex-ministro. E completou: “Quem estiver incentivando que as pessoas se encontrem, que andem sem máscara, que façam aglomeração, estará colocando a população brasileira e bauruense no corredor da morte, e vai ser responsabilizado mais tarde”.
Walace Sampaio, representante do Sindicato do Comércio de Bauru e Região (Sincomércio), que também falou em nome da Associação Comercial e Industrial de Bauru (Acib), tinha em seu plano de fundo duas placas escritas “Reage, São Paulo”, seguidas das frases “pelo direito ao trabalho digno” e “comércio aberto e responsável”. Ele rebateu o deputado dizendo: “Nunca ouvi o presidente afirmar que a imunidade de rebanho era por contaminação e sim por vacinação”. O ex-ministro da Saúde enviou um link que compila as situações em que Bolsonaro expressou publicamente concordância com a tese.
Sampaio disse também que os dados apresentados no início da reunião por Carlos Magno tratavam-se de “arte” que poderiam ser analisados por diferentes pontos de vista, para defender aquilo que fosse conveniente ao pesquisador. O professor contrapôs o argumento de Sampaio dizendo que “os números não dizem o que a gente quer ouvir” e explicou que quem faz pesquisa a princípio não quer ouvir nada em específico, mas sim descobrir algo novo.
O representante do Sincomércio afirmou ainda que Bauru vive um ‘lockdown’ desde 9 de fevereiro, data em que a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo julgou inconstitucional uma lei aprovada pelo poder Legislativo municipal que aumentava os tipos de comércio e serviços que poderiam ser considerados como essenciais na cidade. A legislação tinha ficado conhecida como ‘lei do comércio’ e incluía bares e shoppings como atividades essenciais. “Somos contra lockdown irresponsável, sem compensação para o empresário e somos a favor do comércio aberto de forma responsável”, expressou Walace.
Em sua fala, Katia Valérya, presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos, afirmou que “nunca existiu lockdown nesta cidade e sim cartilha para enfrentar a fiscalização” em referência a um passo a passo, publicado na página do facebook ‘Reage São Paulo’, intitulado de “Manual de Orientação para enfrentar a fiscalização”.
Eduardo Rollo, dentista que falou em nome da categoria, opinou que “pessoas que estão acima do peso sofrem mais com a pandemia” e defendeu que a variante P1 da covid-19, identificada pela primeira vez em Manaus, teria sido gerado dentro de casa, no período em que ocorreram medidas mais restritivas na cidade.
Rollo também defendeu tratamento precoce com vitamina D, ivermectina e hidroxicloroquina inalável. “Eu tenho mais de 50 artigos sobre ivermectina para provar que funciona”, argumentou o dentista. Os medicamentos citados não têm eficácia comprovada contra covid-19, não são recomendados pela Organização Mundial da Saúde, e podem trazer riscos à saúde.
O infectologista Carlos Magno pontuou que a fala do dentista “está equivocada da primeira à última linha cientificamente” e lembrou que a farmacêutica Merck Sharp & Dohme, que fabrica a ivermectina, não recomenda a utilização no tratamento da covid-19. Ele apontou que foram registradas mortes de pessoas submetidas ao tratamento com cloroquina inalatória.
A conselheira Katia lembrou que a Câmara Municipal moveu em 29 de março de 2021 uma moção de apelo à Prefeitura de Bauru pela adoção do tratamento com ivermectina na cidade. O documento, cujo relator é Coronel Meira, sugere a “distribuição de maneira gratuita nas UBSs de ivermectina aos munícipes que tenham interesse em realizar o tratamento preventivo”. Assinaram os vereadores: Sérgio Brum (PDT), Marcelo Afonso (Patriota), Junior Rodrigues (PSD), Pastor Bira (PODE), Lokadora Junior (PP), Edson Miguel (Republicanos), Beto Móveis (Cidadania), Guilherme Berriel (MDB), Carlinhos do PS (PTB) e Eduardo Borgo (PSL).
Finanças
Em sua fala, o ex-ministro Alexandre Padilha afirmou que a ampliação de R$40 bilhões no orçamento do Ministério da Saúde no início da pandemia foi um esforço que partiu do Congresso Nacional e que o ministro da Economia Paulo Guedes teria dito, à época, que apenas “4 bilhões a mais era suficiente para aniquilar a covid-19”.
O orçamento na pasta de saúde foi de R$160,9 bilhões em 2020, e R$122,2 bilhões no ano de 2019, quando não havia pandemia. Em 2021, o orçamento apresentado pelo governo federal é de R$ 148,7 bilhões, uma diminuição de R$20 bilhões em relação ao ano anterior.
“Com o fim do auxílio emergencial em 2021, pessoas começaram a se expor mais. Precisam e clamam que os negócios fiquem abertos”, disse Padilha, pontuando que nesse desespero, os trabalhadores acabam aderindo a carreatas da morte.
A diminuição de recursos para a manutenção de leitos que tratam covid somado da diminuição do estoques de medicamentos que compõem o chamado “kit intubação” é a receita para o colapso do sistema de saúde, opina o ex-ministro. Ele lembra que o governo do Estado de São Paulo está cobrando do Ministério da Saúde a aquisição dos medicamentos para intubação.
“Além da cobertura vacinal, é preciso que haja solidariedade a pequenos e médios comerciantes, que precisam ser apoiados pelo governo federal, estadual e a prefeitura”, argumenta. Medidas provisórias para que a categoria possa manter empregos, revisão de taxas de cobranças municipais, auxílio emergencial local e a oferta de créditos são algumas das propostas elencadas pelo deputado.
O que diz a prefeitura
Suéllen Rosim não esteve presente na audiência. O Jornal Dois entrou em contato com o poder público para saber qual o posicionamento da gestão em relação à medida de lockdown. Em nota, a assessoria informou que “a posição da prefeitura é a que foi passada na audiência pelo secretário de Saúde e vice-prefeito Orlando Costa Dias, e pelo diretor do Departamento de Saúde Coletiva (DSC), Ezequiel Santos”.
Na reunião, Orlando Costa (Patriota) afirmou que não há casos de covid-19 nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e que “graças a Deus os leitos no Posto Avançado Covid-19 (PAC) têm dado conta”. Ele pontuou ainda que “essa semana, mesmo sem lockdown, estamos tendo uma diminuição de casos, mas ainda tem o número de mortes”. Segundo ele, de 5 a 6 mortes por dia. Como mostrou o J2, no entanto, a média móvel de óbitos registrada no dia 12 foi de 8,57, o patamar mais alto registrado desde o início da pandemia.
Ezequiel por sua vez afirmou que houve um aumento expressivo na taxa de letalidade e que é necessário apoio financeiro estadual ou federal para continuar com a vacinação.
Para Alexandre Morales, diretor do Sindicato dos Bancários de Bauru e região, “o Executivo municipal parece não ter acordado para a realidade” e que “é muito trágico ver a Secretária Municipal de Saúde falar que as coisas estão melhorando”.
Moisés Cristo, diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais (Sinserm), discordou da posição do secretário de Saúde, e disse que existe sim covid nas UPAs, cenário verificado nas fiscalizações que participa enquanto representante dos servidores públicos. “A secretaria espera chegar na situação de ter que amarrar os contaminados para conseguir intubá-los?”, indagou o diretor.
“Bauru está realmente sem limites: para democracia e para a defesa da vida”, lamentou Katya.
Covid-19 em Bauru
Como informado pelo J2, a semana de 6 a 12 de abril registrou o maior número de mortes na cidade desde o início da pandemia: 60 pessoas perderam a vida. No dia 12, um bebê de oito meses faleceu com a doença e no dia 13 de abril, uma jovem de 24 anos também veio a óbito. A semana registrou 1.232 novos casos.
Veja a audiência na íntegra: