Comer, rezar e pedalar: a viagem do marroquino que passou por Bauru (e gostou)

Zakaria Es-sfari viaja de bicicleta há mais de um ano e 5 mil quilômetros pelo Brasil

Publicado em 30 de outubro de 2020

Comer, rezar e pedalar: os preceitos básicos para a viagem do jovem marroquino (Foto: Camila Araujo/Jornal Dois)
Por Camila Araujo 

Era dia 10 de setembro de 2019 quando o viajante marroquino de 23 anos, da capital Rabat, desembarcou para uma viagem pelo Brasil. Ele chegou de avião por Salvador, onde comprou sua primeira bicicleta, e de lá fez seu trajeto descendo no sentido sul do país, com destino a Porto Alegre.

Formado em Direito e Economia, ele desacreditou no emprego formal e decidiu se aventurar naquilo que ele chama de “segunda escola” ou ainda “escola da vida”. Pouco mais de um ano pedalando, depois de passar por Bahia, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, São Paulo, e atravessar uma pandemia que ainda não dá mostras de se encerrar, Zakaria chegou a Bauru, com um português que se faz entendido. Quando perguntado o por quê de ele estar passando pela cidade, a resposta foi na lata: “estrada!”

Aqui, a intenção era só passar. Ficar uns dois dias e depois seguir viagem. Chegou no dia 26 de setembro. Recebido com calor e gentileza, ficou até dia 19 de outubro, quando seguiu para Birigui.

Sobre o calor, vale lembrar que o mês de setembro registrou recorde de temperatura no município: no dia 29, Bauru havia batido a marca de temperatura mais alta registrada desde 2001, com 39,9 graus, segundo monitoramento feio pelo IPMET.

No início de outubro, já no dia primeiro, os termômetros atingiram 40,2 graus. A própria Defesa Civil emitiu um alerta no dia 29 do mês passado para os cuidados com as altas temperaturas. Uma das orientações era de evitar exercícios físicos em horários com maior incidência de sol.

Zakaria aceitou o conselho e ficou aqui por quase um mês.

Das boas-vindas

A gentileza foi por conta das recepções: a primeira, no Espaço Gentileza, do músico bauruense Nel Marques, que recebeu o viajante por lá. Trata-se de um sítio localizado na região da Avenida José Vicente Aiello, destinado a ações culturais e ao contato com a natureza em território urbano. De acordo com Nel, o espaço está aberto para todos os viajantes que estiverem passando pela cidade.

O músico esteve por muitos anos fora do país. Mesmo aqui, morou em diversos locais do Brasil. É costume estar na companhia de viajantes e mochileiros, e segundo ele, receber Zakaria foi maravilhoso. “Ele falou bastante sobre o Marrocos, sobre sua religião, fez pães pra gente e compartilhou um pouco de sua cultura”, conta o anfitrião.

Em um segundo momento, o marroquino esteve em uma casa vizinha ao Espaço Gentileza. A família Graça o acolheu como parte da família. “Peguei amizade com eles, me consideraram como um filho”, declara o viajante.

Chegar em uma nova cidade para ele é também sinônimo de conhecer novas bicicletarias e fazer os reparos necessários em seu meio de transporte. Em Bauru, o primeiro lugar que esteve foi na loja De Bike, que o auxiliou e trocou algumas peças de sua bicicleta por outras melhores.

Depois desse primeiro contato, voltou mais vezes ao estabelecimento. Não somente pelos reparos, mas também pela amizade e pelo passeio no pedal que fez pela cidade com um grupo de ciclistas em certa quarta-feira.

Em busca de manutenção, Zakaria bate ponto nas bicicletarias por onde passa (Foto: Arquivo pessoal)

Para o viajante, a vida é pequena e é preciso aproveitar: “dinheiro não vale nada na frente da saúde”. Na bagagem, ele leva uma barraca e um fogão de acampamento. Para dormir, quando não está nas cidades, ele se ajeita perto de florestas, rios ou mesmo postos de gasolina.

Do nosso município, vai levar boas lembranças e acolhimentos. “Agradeço muito ao povo de Bauru”, diz Zakaria.

O viajante partilha um pouco de sua cultura através de músicas e comidas (Foto: Camila Araujo/Jornal Dois)
Do café da manhã à janta, "tio" e "tia" Graça o acolheram como membro da família (Foto: Arquivo Pessoal)
Ramadan e a pandemia

No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarava que a covid-19 já estava espalhada por todos os continentes, o que caracteriza uma pandemia.

Não estava no planejamento de ninguém que 2020 fosse tomado pelo coronavírus. Isso não desanimou o marroquino. Nesse momento ele estava em São Paulo, onde ficou parado por quatro meses, trabalhando em uma marcenaria.

Apesar do contexto da pausa em sua viagem por conta da pandemia, ela não veio em má hora. Zakaria, que é muçulmano, já pararia o pedal para o Ramadan, o mês sagrado de sua religião. O início desse mês é calculado todo ano de acordo com o calendário lunar – que é diferente do calendário gregoriano, este de origem europeia e atualmente utilizado na maioria dos países do mundo.

O momento em que a lua nova desponta no céu é quando se inicia a prática religiosa do jejum, um dos pilares do islamismo. Os fiéis não devem ingerir bebidas e alimentos, nem praticar relações sexuais, entre a alvorada e o pôr do sol. Os praticantes também devem intensificar as práticas de generosidade e afastar as más ações, que já são pilares da religião para o ano todo.

Em países de maioria islâmica, como por exemplo a Argélia, a Palestina, o Egito, e o próprio Marrocos, o desjejum diário no ramadan costuma ocorrer em encontros comunitários que reúne vizinhos e familiares, ou mesmo nas mesquitas. A isso chama-se “iftar”, que geralmente envolve uma abundância de comida.

As práticas de caridade também são promovidas com o fim do mês sagrado: o Zakat Al-Fitr, por exemplo, é uma obrigação de famílias com condições financeiras para doar alimentos. Desse modo, multiplica-se 2 quilos de alimentos pela quantidade de membros da família. Esse montante deve ser doado pelo chefe da família para quem está em situação de vulnerabilidade, até dois dias antes do final do ramadan.

Em 2020, o mês sagrado iniciou-se em 23 de abril, quinta-feira, e se encerrou no sábado, 23 de maio.

Conforme foi ocorrendo a flexibilização da quarentena por parte do governador do estado, João Dória (PSDB), em junho, o viajante voltou pro pedal.

Abaixo, alguns registros da manutenção na bicicleta, que o viajante faz a cada 300 km pedalados. 

Zakaria não teme a doença nem se convence de sua existência. Segundo ele, não conheceu ninguém que tenha falecido ou contraído a covid-19. 

Os números contam outra história: Marrocos possui um total de 212.038 casos, dos quais 3.572 mortos da doença. No mundo, foram 45.126.200 casos confirmados, e 1.182.368 mortes registradas. Em Bauru, são 15.751 casos confirmados e 246 óbitos. 

Rota

Seu lugar favorito no Brasil foi aquele que primeiro o abrigou: Salvador, Bahia. De acordo com o IBGE, a cidade detém a maior população negra do país. É também o local fora da África com a maior comunidade afrodescendente do mundo.

Lá ele ficou dois meses e meio, encantado pela cultura e pelas praias. Comeu acarajé, tapioca com manteiga e cuscuz. Gostou, mas em sua percepção, falta variedade nos pratos brasileiros. “No meu país, se você ficar uma semana na casa de alguém todo dia vai comer alguma comida típica diferente”.  

Seu destino, ao sair de Bauru, foi Birigui, onde estava sendo esperado por anfitriões. Saindo da fronteira do estado de São Paulo, tem hospedagem garantida em Três Lagoas, onde deve recuperar o fôlego para os próximos 300 km até a capital do Mato Grosso do Sul, Campo Grande.

A "escola da vida" motiva uma vida feita de viagens (Foto: Camila Araujo/Jornal Dois)

Apesar de não ser adepto a muitos planejamentos, ele já tem pontos fixos em sua rota: o destino final no Brasil é Porto Alegre, antes de se deslocar ao Uruguai. No caminho, passará por Dourados, Cascavel, Santa Catarina, Curitiba, e finalmente a capital do Rio Grande do Sul, onde deve ficar uns dias para descansar, e na sequência, extrapolar as fronteiras para o país vizinho.

Veias abertas 

“É preciso coragem”, diz Zakaria sobre sua empreitada. Para ele, a viagem se trata de uma segunda escola, em que você faz quase tudo sozinho e precisa ficar forte. “Descubro muitas coisas sobre mim, e percebo a diferença quando volto pra casa”, conta. 

Veio à América do Sul motivado por aquilo que não é exibido na televisão e no youtube sobre o continente. Sua missão é mostrar que o Brasil, assim como são os países próximos, é “bom”. “Me senti seguro até agora”, declara. Por esse motivo, ele mantém um canal no youtube onde compartilha vídeos de suas viagens.  

O que facilitou sua vinda foi o fato de que o país não exige visto de marroquinos para a entrada no território. São 99 nacionalidades do mundo que não precisam do documento de permissão. Isso totaliza quase a metade da população mundial, aproximadamente 3,5 bilhões de pessoas. 

As últimas nacionalidades que foram autorizadas a entrar no país para turismo sem a necessidade do visto foram Austrália, Canadá, Estados Unidos e Japão. O decreto foi assinado por Jair Bolsonaro em 18 de março de 2019. Meses mais tarde, no dia 24 de outubro, o presidente, em viagem à China, anunciou a isenção de visto de negócios para chineses. Depois voltou atrás e a medida não entrou em vigor. 

Política se discute

Quando perguntado sobre o Brasil de Bolsonaro, ele bufa: “não pesquiso sobre política”. Depois daqui, ele passará pela Bolívia e pelo Chile – onde dificilmente sairá ileso do assunto. 

Afinal, “el condor pasa”: o Chile vive uma convulsão popular que luta contra os estragos de um sistema – neoliberalismo – que ocorrem desde o governo ditatorial de Pinochet. Outra demanda da maior parte da população chilena é a elaboração de uma nova constituinte. O resultado do plebiscito no último domingo, 25, contou com 78% da população aprovando a construção da Carta.

A Bolívia, por sua vez, acaba de passar por eleições nacionais, onde foi reeleito o Movimento Para o Socialismo (MAS) para o cargo máximo do executivo. 

Ano passado, Evo Morales, do MAS, renunciou de seu quarto mandato de presidente devido à pressão de setores conservadores da sociedade boliviana, apoiados pelas forças armadas.

São certamente momentos históricos para ambos os países. 

Segue viagem 

Atravessando a realidade, ele viaja tranquilo. “Agradeço a Deus que me protege na estrada”, diz o viajante. 

Sem pressa e sem muitos planos, Zakaria não tem data para finalizar a empreitada. Sua única certeza é de que, quando voltar ao Marrocos, o próximo plano é continuar viajando. 

Em sua bagagem, o peso é de experiências (Foto: Camila Araujo/Jornal Dois)
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