Com pagamento de até R$ 1 mil por pessoa, Aniversário de Bauru não gera lucro para artistas locais

O valor inclui despesas com produção; artistas de fora receberam cerca de 68 vezes mais em comparação aos locais

Publicado em 1 de setembro de 2023

Nove artistas de diferentes segmentos foram selecionados através de edital (Foto: Leonardo Oliveira/Jornal Dois)
Por Joyce Rodrigues e Paula Bettelli

No dia 1º de agosto, por volta das 17h, o Parque Vitória Régia estava tomado por uma multidão: no Anfiteatro, o tradicional bolo de aniversário estava nos últimos dos mais de 20 mil pedaços distribuídos, com uma fila de cerca de 160 pessoas que ainda aguardavam sua vez. Ao fundo, na região do gramado, um coro de centenas de vozes cantava a plenos pulmões, acompanhados da marcação de pandeiros, rebolos e palmas. O Encontro dos Sambistas, com duração de mais de 4 horas ininterruptas de clássicos do samba, reunia os últimos músicos bauruenses a se apresentarem no aniversário da cidade.

Durante cinco dias, o Parque Vitória Régia foi palco da comemoração oficial do aniversário de Bauru. Entre 28 de julho e 1º de agosto, o local recebeu shows musicais, DJs, espetáculo de palhaçaria, corte de bolo, feira de artesanato e outras atividades. As apresentações foram feitas por artistas e coletivos bauruenses e artistas de fora, contratados pela prefeitura. Ao todo, R$847 mil foram destinados ao pagamento dos shows.

Desta quantia, aproximadamente R$27 mil totalizaram o pagamento de nove nomes artísticos da cidade, selecionados através do edital ‘Cultura em Ação 2023’ e do Programa de Estímulo à Cultura (PEC). A remuneração de cada apresentação local variou entre R$1 mil e R$3 mil, a depender da quantidade de integrantes em cada grupo. Estes valores foram pagos para uma hora de performance.

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Luan Santana, maior nome a se apresentar no evento, recebeu R$410 mil da Prefeitura de Bauru pelo show. Em seguida, Padre Fábio de Melo foi pago em R$230 mil; Fernandinho, que abriu a programação na sexta-feira (28), recebeu R$120 mil, e o show infantil Mundo Bita, R$60 mil.

Somados, o dinheiro gasto pela gestão pública municipal para a contratação dos shows de Luan Santana, Fernandinho, Mundo Bita e Padre Fábio de Melo totaliza R$820.000,00 Os quatro estiveram por cinco horas e quarenta minutos no palco. Nesta conta, a prefeitura pagou o equivalente a R$151.851,85 pela hora de show de cada. 

Lolla Vaiola levou dançarinos ao palco para apresentar seu DJ set (Foto: Sarah Vitória/Jornal Dois)

Bauruenses no palco

 

No dia 30 de agosto, sábado anterior à data oficial de aniversário, o palco do Vitória Régia foi ocupado apenas por artistas de Bauru. As bandas Desmonte Analógico, Ricca Luz, Conexão 80 e Acústicos e Calibrados apresentaram repertórios de covers, passando por diferentes gêneros musicais. A programação também contou com o DJ set de Lolla Vaiola, artista drag queen e DJ residente do L’oppen Café Bar, acompanhada de três dançarinos durante toda a discotecagem.

Contemplada pelo edital ‘Cultura em Ação’, da Secretaria da Cultura, a escola de samba bauruense Estação Primeiro de Agosto se apresentou ao pôr do sol do sábado (30), com cerca de 50 pessoas no elenco. Tobias Terceiro, fundador da escola, conta que decidiram se inscrever no edital pela importância de ocupar o espaço e divulgar o trabalho da agremiação, e afirma que os R$3 mil oferecidos não geram lucro. Com o valor recebido, a escola precisou se desdobrar para cobrir todos os gastos – figurinos, instrumentos e ensaios de mais de 50 pessoas.

“É claro que nós montamos o espetáculo com o intuito de pagar as contas, gerar subsistência nas nossas atividades. Nesse caso, foi realmente para marcar presença, ocupar espaço, levar o trabalho carnavalesco para uma quantidade maior de pessoas. O valor disponibilizado cobriu apenas o investimento de produção, mas não nos rendeu lucro”, explica.

Com mais de 50 integrantes, Estação Primeiro de Agosto se apresentou no domingo (Foto: Leonardo Oliveira/Jornal Dois)

Roda de samba tradicional no aniversário da cidade, o Encontro dos Sambistas acontece há 12 anos, organizado pelo Coletivo Samba. Apesar da primeira participação do grupo no evento ter sido em 2009, apenas em 2022 eles passaram a ser remunerados pelas apresentações. Ivo Presidente, integrante do Coletivo, relembra que em 2011 a prefeitura começou a auxiliar na estrutura, mas de forma modesta.

“Antes, a gente se reunia cantando com instrumentos acústicos, batidas na palma da mão. Não tinha microfone. Em 2011, a prefeitura começou a ver esse movimento e a auxiliar em uma pequena parte de estrutura, como cadeira, mesa. A partir de 2022 nós fomos contemplados com o PEC”, conta Ivo sobre o processo pelo qual passaram até serem incluídos de forma oficial na programação da festa.

Segundo o sambista e um dos fundadores da roda, o dinheiro recebido por eles cobre todos os gastos com estrutura, marketing e também auxilia nos custos de parte da equipe. O Encontro é composto por mais de dez músicos.

Já Marisa Riso, artista circense de palhaçaria, explica que mesmo sendo uma performance solo, o dinheiro recebido não cobre todos os gastos envolvendo divulgação, produção, parte técnica e ensaios. Ela detalha a dificuldade de organização da logística em razão da maternidade. “Eu sempre preciso pensar em uma pessoa para ficar com o meu filho”, reforça.

 

“No mínimo, injusto”

De acordo com Paulo Eduardo Dias, secretário municipal da Cultura, as atrações de fora são selecionadas pela Administração Pública por meio de inexigibilidade de licitação – quando a contratação é feita de forma direta por não haver possibilidade de competição. Perguntada sobre os critérios utilizados para a escolha dos artistas de massa, a Secretaria da Administração não respondeu.

Ao Jornal Dois, Paulo Dias alega que a contratação de artistas locais, realizada através de diferentes editais municipais, é viabilizada com o orçamento da Secretaria da Cultura. “As contratações de artistas locais são contempladas em diferentes editais e a somatória desses editais tem um valor significativo frente às contratações de artistas de fora”, considera. 

Os editais responsáveis pelas contratações locais do evento – ‘Cultura em Ação 2023’ e Programa de Estímulo à Cultura, disponibilizaram para os pagamentos R$210.000,00 e R$ 475.000,00, respectivamente. Os valores são menores do que o investimento feito com os shows do Padre Fábio de Melo e Luan Santana.

Os quatro artistas convidados receberam, juntos, cerca de 30 vezes mais que os nove projetos artísticos de Bauru. Para Paulo Maia, presidente do Conselho Municipal de Cultura entre agosto de 2021 e agosto de 2023, as escolhas artísticas feitas para a programação do aniversário deveriam ser dialogadas com o Conselho.

“Sempre descobrimos [os artistas contratados e o valor do contrato] em publicações do Diário Oficial de Bauru. Nunca foi colocado em pauta pelo poder público em reuniões do conselho”, diz ele. E avalia: “Atrações de fora são mega valorizadas pelo ‘know-how’ do artista, produção artística e custo dessa produção. Neste ano, uma escola de samba se apresentou por R$3 mil. Com músicos, passistas, mestre sala e outros itens, colocando naquele palco um trabalho de horas de ensaios musicais, dança, construção de alegoria, enredo, repertório. No mínimo injusto”, conclui.

“Não sou contra ter os shows de massa, acho que isso faz parte também do acesso à cultura. Exatamente porque gira a economia, mas é injusto a aplicação desses recursos, um valor desse direcionado somente a artistas de grande porte“, declarou Paulo Maia.

Nelson Itaberá, cantor e escritor bauruense, alega que o problema não está, necessariamente, na contratação de grandes artistas para as festividades. “O grande público, que não tem lazer, que está na periferia sem acesso a grandes shows, tem direito de ter um grande artista de renome para compor esse calendário”.

Para o músico, um dos principais pontos a serem debatidos é a “defasagem absurda” nos valores pagos para artistas da cidade. “Para fomentar a economia criativa, é preciso de valorização através de cachês compatíveis, com um pagamento diferenciado, no sentido de ser mais justo”, analisa.

Da mesma forma, Tobias Terceiro, da Primeiro de Agosto, afirma reconhecer a importância de artistas de massa se apresentarem no evento para atrair público, mas critica “a diferença estratosférica”. “O artista local também deve ser valorizado dentro da proporção do trabalho que desenvolve. O piso do artista local deve ser aumentado e deve ser dada mais oportunidade para uma quantidade maior de artistas. Eu acredito que a programação do aniversário de Bauru pode ser mais extensa, mais democrática, mais descentralizada”.

Itaberá também pontua a “falta de diretrizes” na programação da festividade. Com todos os artistas bauruenses escalados para se apresentarem em um único dia, o músico acredita que a decisão causou uma “dispersão” de público. Para ele, o ideal seria formar o que denominou como “uma vitrine com os artistas locais”. Isso seria feito “colocando na mesma noite [de um dos shows de massa] abertura com banda local, em um horário antecedente, e aí sim o nome de renome da noite. Dá pra fazer isso pelo menos nas datas principais, para ter essa difusão e ajudar o posicionamento dos artistas”, sugere.

Tradicional bolo de aniversário da cidade teve mais de 20 mil pedaços distribuídos (Foto: Sarah Vitória/Jornal Dois)

Estrutura e bastidores

 

Para os cinco dias de programação, um palco foi montado na área lateral do Parque Vitória Régia, próximo aos pontos de abastecimento do DAE. A estrutura contou com três telões para o público: um centralizado na parte traseira do palco, acompanhado de dois telões laterais. Nos shows principais, os telões transmitiam imagens dos cantores e bandas no palco em tempo real. Durante as apresentações dos artistas bauruenses, no domingo (30), eram os logos das secretarias apoiadoras do evento que alternavam entre os telões.

Nos camarins, os artistas relatam que a produção atendeu a todas as necessidades, tanto alimentares quanto de infra-estrutura. “O pessoal foi me buscar onde eu estava, porque eu estava com cenário e tudo. Muito atentos para me acolher bem”, declarou Marisa Riso.

Encontro dos Sambistas reuniu milhares no gramado do parque (Foto: Joyce Rodrigues/Jornal Dois)

A artista, no entanto, menciona ter sido comunicada três vezes sobre mudanças no horário de sua apresentação. A última foi no dia de sua performance. “Às oito da manhã, me mandaram uma mensagem dizendo que ia ser às 14 horas. Essa questão incomoda”, se aborrece. Pela dificuldade de atravessar a multidão com os figurinos, Marisa conseguiu iniciar a apresentação às 14h30. “Teve gente que foi mais cedo pra me ver e não conseguiu. Eu divulguei às 13h e a prefeitura às 14h. Acho falta de respeito com o artista. A gente tem um investimento na divulgação”, desabafa.

Ainda assim, Ivo, Marisa e Tobias afirmam gostarem de realizar as apresentações para a população bauruense na festa de aniversário da cidade. “Apresentar no Aniversário é muito legal, fura a bolha, por ser um evento aberto. Furar a bolha, para mim, é fundamental. Importante não só no sentido de divulgar a arte, como ter contato e dar oportunidade para as pessoas descobrirem esse universo. Foi bem especial”, relata Marisa.

Apesar de atuar há 7 anos em Bauru, foi a primeira vez que a escola de samba Primeiro de Agosto se apresentou na cidade fora do período de carnaval. “Nós sentíamos falta de oportunidade para participarmos de um evento oficial, público, dentro da nossa cidade. O peso é outro. Nos apresentarmos em casa, com a possibilidade das nossas famílias, amigos assistirem, e pessoas que ainda não conheciam, mas passam a gostar do nosso trabalho, prestigiar. Se apresentar em casa é muito bom”, declara.

E conta que o resultado foi positivo, do ponto de vista da interação com o público: “Nós levamos um espetáculo, modéstia a parte, muito completo. É só ver o feedback das pessoas. Não esperavam a qualidade do espetáculo que nós apresentamos”. Ele reforça o esforço feito pela equipe para organizar o elenco de mais de 50 pessoas, e volta à questão da remuneração. “É um desprestígio”, lamenta.

No centro do samba, São Jorge é colocado como o padroeiro da roda (Foto: Joyce Rodrigues/Jornal Dois)

Para o Coletivo Samba, marcar presença no Aniversário de Bauru é um ato de resistência. “É importante ter o Encontro dos Sambistas, a gente tem que resistir com o nosso movimento, com o samba de raiz. E quando a gente fala do movimento Coletivo Samba, a gente coloca nele a vontade de resistir e principalmente atuar para que esse samba em Bauru continue existindo”, explica Ivo Presidente.

O Encontro dos Sambistas teve início às 14h do dia 1º de agosto, reunindo mais de 15 músicos que se revezavam entre os instrumentos disponíveis. “Quem não tem instrumento, bate na palma da mão”, puxava Ivo, convidando o público a fazer parte da roda. Uma imagem de São Jorge decorava a mesa no centro da roda. A cobertura instalada pela organização não era o suficiente para abrigar os mais de 3 mil presentes no gramado para acompanhar o show.

A roda acabou por volta das 18h, e o samba deu lugar ao DJ Baya. Com uma discotecagem-surpresa de black music, rodas de breaking se formaram nos arredores do espaço, encerrando as apresentações do último dia das festividades de aniversário da cidade. 

Por volta das 20h, a Polícia Militar utilizou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar o público que ainda circulava pelo Parque Vitória Régia. Em relato ao Jornal Dois, pedestres contam que ainda havia muitas famílias presentes no local. 

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