Call centers têm trabalho presencial na fase restritiva, relatam funcionários
Pelo menos três empresas em Bauru mantêm as atividades presenciais na fase emergencial do plano de combate à pandemia no Estado de São Paulo; “É triste trabalhar com clima de morte”, diz funcionário
Publicado em 5 de abril de 2021
Por Camila Araujo
Edição Bibiana Garrido
Na fase emergencial do Plano São Paulo 14 atividades comerciais, entre elas os call centers, tiveram o aumento de restrição “colocando mais 4 milhões de pessoas em restrições adicionais (entre pessoas empregadas e movimentadas)”, conforme governo estadual. Desde 15 de março de 2021 as atividades de escritório em geral estão obrigadas ao regime de teletrabalho para evitar a disseminação do vírus da covid-19 no estado de São Paulo.
Empresas do setor de call center de Bauru, segundo relatam e mostram funcionários ao Jornal Dois, seguem com trabalho presencial que provoca aglomerações e aumenta o risco de contágio com a doença.
Um decreto do governo federal aprovado em 20 de março de 2020 havia definido atividades essenciais da seguinte maneira: “São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. No documento, os serviços de call center estão, de fato, como essenciais.
Em abril passado, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, de número 6341, que deu competência aos Estados e Distrito Federal para legislar. É da União o poder de editar normas gerais, e as unidades federativas ficam aptas a suplementá-las conforme seus contextos locais e regionais, ou seja, podendo torná-las mais restritivas. Assim aconteceu na fase emergencial no estado de São Paulo, por exemplo.
“Estados podem limitar mais do que a União, desde que pautados em fundamentação técnica para essa limitação”, explica o advogado Thales Coelho. E lembra: “Mesmo que o serviço de call center seja considerado como essencial, pelo agravamento da crise, o Estado determinou a execução do serviço em home office, portanto, em tese, o funcionamento é irregular”.
Ao J2, o Governo de São Paulo reforçou que, segundo as normas da fase emergencial, “os escritórios de call centers e escritórios administrativos devem funcionar em regime de home office, com exceção para funções que não permitam trabalho remoto”.
Um grupo de trabalhadores da Paschoalotto, empresa de call center de Bauru, lançou um movimento na internet reivindicando “ações frente à irresponsabilidade da empresa”. De acordo com o manifesto, eles seguem trabalhando de forma presencial “sem a menor necessidade”.
“No momento atual da pandemia, em que as mortes diárias seguem aumentando, inclusive acometendo pessoas que não são do grupo de risco, devemos nos mobilizar para garantir nossa segurança”, afirmam.
E pontuam que “estamos trabalhando pela organização de um verdadeiro sindicato dos trabalhadores de telesserviços. Uma entidade que defenda as necessidades da nossa categoria. Para isso, encaminhamos uma carta pedindo apoio das principais entidades que se colocam em defesa de trabalhadores e estudantes”.
O que dizem as e os trabalhadores
“Faz mais de um mês que não vejo minha mãe”, desabafa André*, empregado na empresa de cobranças Nelson Paschoalotto em Bauru. Há meses trabalhando de forma presencial, ele conta que desde que a fase mais restritiva do plano de combate à pandemia começou no Estado de São Paulo, em 15 de março, pouca coisa mudou na empresa: “As normas de hoje são praticamente as mesmas de meses atrás” quando a pandemia estava se agravando.
Jéssica* trabalha na Concilig. Ela diz que na empresa o uso de máscaras é obrigatório e que “eles deram duas unidades”. As posições de atendimento (P.A.), locais onde os funcionários trabalham, estão intercaladas: uma pessoa sim, uma pessoa não. Além disso, ela aponta que o trabalho segue “normal”, de forma presencial, e diz que depende do emprego, por isso preferiu não dar mais detalhes para a entrevista.
Vanessa* é filha de uma funcionária da mesma empresa em que trabalha Jéssica. Ela conta que a mãe fica indignada com a atuação dos call centers frente ao “colapso da pandemia”. A mãe comenta: “do outro lado da rua, os funcionários estão aglomerados, sem máscaras e irão entrar pra trabalhar”.
Vanessa pontua que “é preciso tomar cuidado para não responsabilizar os funcionários” e que “a empresa tem que preservar a saúde das pessoas e colocá-las em home office”. Ela conta que já fizeram várias vezes uma lista de pessoas que estão em condições de trabalhar em home office, “mas só fica no papel”, lamenta.
Luana* trabalha na empresa HCosta. No dia em que a fase emergencial começou a ser adotada no estado, ela conta que a empresa chamou os funcionários para uma reunião, informando que o serviço de cobrança era uma atividade essencial e que, portanto, continuaria ocorrendo de forma presencial. A reportagem do J2 questionou se até os funcionários do grupo de risco estão frequentando o local de forma presencial. Ela disse: “eu sou e estou”.
Hipertensa e pessoa com deficiência, Luana sofreu um AVC há alguns anos. Ela conta que trabalha durante 6 horas sentada com “head” na cabeça, termo que designa um fone de ouvido com microfone, além de máscara e “supervisores gritando como se fosse um circo”. Entre seus colegas de trabalho, ela afirma que um deles teve o princípio de infarto, outro teve conjuntivite, “todos cansados, estressados e com problemas de saúde”, comenta.
Entre um turno e outro, ela calcula que tem 200 colegas de trabalho Alguns desses, ela diz, estão em home office com suspeita de covid-19. A limpeza entre os turnos ela avalia como “meia-boca”.
Onde trabalha, André comenta que os supervisores pedem para que os funcionários “não mosquem” sem máscara em frente ao estabelecimento. Ele afirma também que o distanciamento só é obrigatório quando a fiscalização está no prédio, e que o álcool em gel é disponibilizado em borrifadores no prédio.
“A Paschoalotto não foi à sua casa te buscar para trabalhar, você entregou o currículo no meio da pandemia porque quis”. Ele conta que um dos supervisores teria afirmado essa frase quando indagou se os trabalhadores iriam ser afastados para o home office, segundo ele. Em sua equipe, trabalham 30 funcionários no turno da tarde.
A reportagem do Jornal Dois conversou com André em dias diferentes no mês de março. Em cada um deles, o funcionário trazia uma informação nova sobre a possibilidade de fazer o teletrabalho, mas nada estava certo.
Ele comenta que alguns funcionários saíram de home office, mas, de acordo com o trabalhador, a escolha foi aleatória: uma pessoa com obesidade foi liberada para trabalho à distância. Mas “uma idosa que trabalha aqui não foi”, aponta.
“Uma pessoa que trabalhava no andar de cima do meu veio à óbito por covid-19”, disse. O nome do funcionário era Lucas, de 27 anos.
Em uma postagem aberta no Facebook, uma familiar se despediu com a seguinte mensagem: “Ele e a esposa foram contaminados. Ambos trabalhavam em uma famosa empresa de cobrança de Bauru. Os médicos acreditam que ele tenha pego a nova variante do vírus. Ele foi transferido para outra cidade porque em Bauru não tinha leito. Entre a internação e o óbito foram apenas 10 dias. Que Deus o receba em seus braços e ampare aqueles que ficaram”.
“É triste trabalhar com clima de morte”, desabafa André. Ele conta que “o trabalho presencial dentro da empresa acaba criando a ideia de que se a gente tá se aglomerando aqui dentro, porque não vou sair depois do expediente?”.
E aponta que a escolha de quem vai para home office depende da produtividade. “É sempre o primeiro do ranking”, comenta, e assume que “em casa realmente produzimos muito menos”. Por isso, “alguém que produz muito começando a produzir médio é melhor do que nada para eles”.
Garantias trabalhistas
O advogado Thales lembra que a contaminação em ambiente de trabalho está amparada na legislação da Consolidação das Leis de Trabalho, a CLT. Quando há o nexo causal, ou seja, quando é comprovada a contaminação por covid-19 em local de trabalho, o empregador deve garantir os seguintes direitos:
- Auxílio-doença pago pelo INSS em caso de afastamento maior do que 15 dias, sendo que estes primeiros 15 dias são de responsabilidade da empresa.
- Tendo em vista que o empresário assume o risco da atividade econômica, caso se comprove o nexo causal é possível pleitear indenização de natureza material (medicamentos, custos de internação), danos morais, estabilidade acidentária em caso de retorno do trabalho (por 12 meses), recolhimento do FGTS no período de afastamento e eventualmente, acaso ocorra o óbito, pensão paga aos dependentes pelo empregador e recebimento de eventual seguro de vida profissional (caso a empresa tenha).
A Perícia Médica Federal, que é o médico perito do INSS, segundo explica Thales Coelho, é quem deverá caracterizar tecnicamente a identificação do nexo causal entre o trabalho e a contaminação.
A abertura de eventual Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), documento emitido para reconhecer um acidente de trabalho ou de trajeto, em virtude de contaminação por covid-19, só será feita após a declaração de nexo causal.
O que diz a prefeitura
A Prefeitura de Bauru afirma ao J2 que os estabelecimentos citados executam serviços considerados essenciais, “pois estão ligados a serviços bancários, trabalhando com sistemas fechados e monitorados, o que impossibilita o teletrabalho”.
O comunicado justifica que “por esse motivo os colaboradores continuam trabalhando na empresa” e que “todas as empresas foram vistoriadas pela fiscalização, possuem e cumprem o protocolo sanitário, afasta todos funcionário sintomático, o qual retorna somente após o período de transmissão e fim do atestado médico”.
O que dizem as empresas
A reportagem entrou em contato com as três empresas mencionadas na reportagem em 24 de março. Até a publicação desta matéria, não houve nenhum pronunciamento por parte dos estabelecimentos. Abaixo, as perguntas enviadas:
A equipe do Jornal Dois recebeu relatos de funcionários da empresa que estão trabalhando em regime presencial. Gostaríamos de um posicionamento da empresa em relação ao caso e a resposta para alguns questionamentos:
Quantos trabalhadores permanecem em serviço presencial?
Quais os protocolos de segurança que foram adotados para esse modo de trabalho durante a fase emergencial do plano de contenção da pandemia?
A empresa recebeu autorização do município para continuar funcionando de forma presencial?
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das e dos entrevistados.