Call centers e a luta de classes
Muito antes da pandemia, as empresas de telemarketing já submetiam seus funcionários a uma enorme demanda de trabalho, cargas horárias excessivas, constante pressão e terror psicológico
Publicado em 27 de setembro de 2021
Por UJC Bauru*
“E como é a função hoje do senhor na empresa?
Hoje eu fico à toa, literalmente! (risos) Mas, apesar da minha carga horária ser menor, a minha responsabilidade é maior. Eu levanto mais tarde, vou embora mais cedo, mas tenho uma responsabilidade maior. São quase 8.000 pessoas! São milhares de famílias envolvidas, pessoas que vão receber o salário e vão pagar as contas, seu aluguel, sua água, sua luz. Pessoas que são arrimo de família. Essa responsabilidade social que era pra ser do governo, acaba sendo nossa. Com isso eu tenho mais responsabilidade, mesmo dedicando menos tempo.
O atual presidente da empresa é Rodrigo Paschoalotto, seu filho. Como foi a transição dessa diretoria?
Foi uma coisa que aconteceria naturalmente. Aconteceu que uma hora não dava mais para eu acompanhar tudo sozinho. Nem ele vai ficar eternamente no cargo. Ele já está há cinco anos, então, daqui a pouco, ele também vai sair. É tão estressante que pode acontecer com ele o que aconteceu comigo e ter a saúde prejudicada.
Qual sua rotina fora da empresa?
Eu faço exercícios todos os dias, gosto muito de tevê também. Vejo noticiários, filmes e faço muita caminhada. Mas gosto de ficar à toa no final de semana, tomar minha cerveja ou meu vinho com os amigos e conversar. Durante a semana, eu mantenho uma rotina. Gosto de acordar cedo, tomar café e almoçar no horário certo, fazer exercícios todos os dias. Acordo, olho no espelho e sigo em frente”.
O fragmento acima é parte de uma entrevista de Nelson Paschoalotto, co-fundador da empresa de call center que leva seu nome, de 2014.
Na época, a Paschoalotto contava com cerca de 8.000 funcionários. Desde então, o setor de call center não parou de crescer na cidade de Bauru. Hoje, a rede já ultrapassa a faixa de 10.000 trabalhadores. Estima-se que, do início de 2020 até setembro do mesmo ano, a empresa obteve uma receita líquida de $418,3 milhões de reais, com lucro de $27, 5 milhões reais (1,1% a mais que no ano anterior). Não à toa, a companhia cogitou abrir capital na Bolsa de Valores.
Durante a pandemia, os serviços de call center foram considerados essenciais pelo governo federal. Os números acima foram alcançados enquanto o país enfrentava a maior crise sanitária da história. Fato que nos faz questionar: afinal, são serviços essenciais para quem?
Além da Paschoalotto, atuam em Bauru as empresas Concilig e HCosta. São milhares de trabalhadores convivendo com uma rotina muito diferente daquela do senhor Nelson Paschoalotto, de exercícios e vida saudável.
“Hipertensa e pessoa com deficiência, Luana* sofreu um AVC há alguns anos. Ela conta que trabalha durante 6 horas sentada com “head” na cabeça, termo que designa um fone de ouvido com microfone, além de máscara e “supervisores gritando como se fosse um circo”. Entre seus colegas de trabalho, ela afirma que um deles teve o princípio de infarto, outro teve conjuntivite, “todos cansados, estressados e com problemas de saúde”, comenta”.
Esse é o relato de uma funcionária (nome fictício) das redes de call center de Bauru ao Jornal Dois em reportagem sobre as jornadas de trabalho presencial durante a fase restritiva da pandemia no ano passado.
Muito antes do coronavírus, as empresas de telemarketing já submetiam seus funcionários a uma demanda de trabalho exorbitante, cargas horárias excessivas, alta pressão e terror psicológico. Condições estas que, desde sempre, fragilizaram a saúde dos jovens trabalhadores do setor. Há relatos de trabalhadores que têm suas idas ao banheiro cronometradas e horários de descanso e almoço extremamente reduzidos.
Através de um sistema de recompensas, as equipes são designadas para vencer metas diárias em troca de brindes, dias de folga ou remuneração variável. Os funcionários podem atingir altos níveis de ansiedade ao buscar atingir suas metas e alimentar um sentimento de culpa quando falham.
Ao serem divididos em equipes, um clima de competição e retaliação é instaurado, o que pode dificultar a colaboração entre os trabalhadores. Não suficiente, os funcionários estão sujeitos à pressão imposta por seus supervisores e gerentes, com quem nem sempre mantêm uma boa relação.
Ao persistirem em alcançar as metas, alguns dos funcionários poderão ser expostos a uma sobrecarga de trabalho, sem ao menos receber uma promoção. Sem mencionar a instabilidade que expõe os trabalhadores a possíveis demissões e cortes inesperados.
Não é novidade que a população detesta receber ligações de telemarketing e ter seus dados expostos por essas empresas. No entanto, toda a revolta é descontada nos funcionários na linha de frente. É muito comum que estes sejam recebidos pelo tratamento hostil e agressivo dos clientes.
Com a pandemia, a situação agravou-se. Felizmente, alguns funcionários conseguiram entrar em regime de home office. Porém, os que ficaram ou retornaram ao trabalho presencial ainda lotam as sedes e permanecem horas em um espaço com pouquíssima ventilação. Apesar da presença tímida de álcool em gel e o uso obrigatório de máscaras, muitos foram acometidos pelo vírus durante os meses de pandemia que ainda perduram.
Apesar de tudo, não há por que reclamar. Desde a sua contratação, o trabalhador deve “vestir a camisa” e abraçar as missões e os valores da empresa. O trabalhador deve doar-se integralmente à expansão de um negócio que, à medida que cresce, mais enxuga os direitos e mais fragiliza a estabilidade e saúde do empregado.
Pesquisas sustentam que determinados serviços automatizados e repetitivos, como o call center, se utilizam dos mecanismos de defesa do trabalhador para intensificar seu desempenho. Muitos funcionários, para diminuir o desgaste e a exaustão, tendem a “robotizar” seu trabalho e acelerar o ritmo de atuação na tentativa de fazer com que o tempo passe mais rápido e que o trabalho passe mais despercebido.
Mesmo diante de tais condições, ao adentrarmos as sedes de call center iremos nos deparar com milhares de jovens trabalhadores. Muitos deles encontram ali o seu primeiro emprego remunerado e a esperança de adquirir experiência para se inserir no mercado de trabalho. Muitos dependem daquele serviço para sustentar a família ou complementar a renda da casa. Muitos entram por aquela porta antes mesmo de adentrar a uma universidade, por exemplo. Outros já estudam, mas precisam do salário para bancar a faculdade e/ou a estadia na cidade. Com o agravamento da crise, mesmo aqueles que já se formaram tentam uma vaga nos call centers, porque ainda não encontraram trabalho em suas respectivas áreas.
Além disso, muitas redes de call center costumam ter uma política aberta à diversidade, uma vez que quaisquer indivíduos aptos a expandirem os lucros das empresas poderão ser contratados. É o local onde muitos jovens LGBTQIA + encontram sua fonte de renda. Não deixam, no entanto, de sofrer com a precarização. Somado ao preconceito sofrido nesses espaços, muitos acabam adoecendo lá dentro.
São diversos os motivos que levam os jovens trabalhadores a adentrarem o ramo de call centers e muitos resistem às circunstâncias do trabalho por medo do desemprego e da insegurança financeira. Além da pressão interna aparentemente intrínseca à atividade, os jovens trabalhadores são pressionados externamente pela sucessiva redução de direitos trabalhistas e oportunidades de trabalho justo. A burguesia segue sufocando os trabalhadores até o ponto em que não haverá outra alternativa senão aceitar quaisquer que sejam as condições de trabalho contanto que consigam o mínimo para se sustentar.
Muitos trabalhadores já perderam seus empregos ao tentarem se organizar para reivindicar melhores condições.
A política do medo presente nesses ambientes só faz adoecer a nós, juventude trabalhadora. Prova-se necessário a existência de um espaço seguro e acolhedor para que os trabalhadores de call center possam lutar pelos direitos da sua categoria. Basta de precarização do trabalho! Basta de flexibilização dos direitos trabalhistas! Basta de exploração dos jovens trabalhadores de Bauru e de todo país!