Ativismo ou militância? Entenda a diferença
Parece a mesma coisa mas não é; o ativista balança e gira conforme o vento; é preciso construir a casa pela base, tijolo por tijolo, antes de fazer o telhado
Publicado em 25 de maeço de 2021
Por Arthur Castro, colunista do J2
Desde a sua origem movimentos de esquerda e de viés socialista se dedicaram a organizar as classes populares em torno de bases fortes, ou, em outras palavras, organizações com bom funcionamento.
O modo mais popular foi a estratégia sindicalista, na qual trabalhadoras e trabalhadores se associam entre si para resistir à exploração dos patrões. Os sindicatos, no passado, forneciam espaços de convívio coletivo, auxílios financeiros, redes de apoio mútuo e até bibliotecas, escolas e centros culturais. Pertencer a um sindicato era construir uma vida plena com seus colegas de trabalho.
Essa não era a única forma, contudo, de se organizar politicamente. Em muitos países, existiam associações camponesas, que mobilizavam famílias inteiras de regiões rurais por autonomia e independência, na resistência contra os grandes fazendeiros e os governos.
No Brasil, não podemos esquecer da brava resistência de quilombos e aldeias contra o colonialismo europeu. Eram construídos laços de solidariedade em comum entre os setores oprimidos, laços esses erguidos sobre um terreno firme (local de trabalho, local de moradia).
Militantes eram essas pessoas – socialistas, comunistas, anarquistas – que se dedicavam ativamente na construção dessas estruturas sociais, nesse poder paralelo que confrontava o poder dominante.
Militante, portanto, é quem constrói a luta social no dia a dia. Pode ser no sindicato, tentando organizar seus colegas de trabalho. Pode ser no movimento estudantil, tentando organizar seus colegas de estudo. Pode ser na associação de moradores do bairro, tentando organizar sua vizinhança. Pode ser nos movimentos sem terra, sem teto, indígena, quilombola.
Já o ativista não constrói a luta em um lugar, é aquela pessoa que fica “pulando” de assunto em assunto pela cidade, atirando para todo lado. Hoje é a greve dos carteiros, amanhã é uma ocupação sem teto, depois um protesto estudantil. Não há construção de redes de apoio, de movimentos organizados, nada. Isso não pode ser confundido com um sindicato, por exemplo, que declara apoio a outro sindicato ou à uma mobilização de povos tradicionais, participando dessas lutas e dando suporte. O ativismo simplesmente balança e gira conforme o vento.
Os tipos de ativistas
Existem três: primeiro, tem aquela pessoa que nunca militou, não sabe como começar, e tenta participar de algo se integrando em tudo que aparece. Muitas pessoas são assim, e muitos militantes começaram assim. São pessoas que precisam ser acolhidas pela militância organizada.
O segundo tipo de ativista é o que acredita no movimento “espontâneo”, “autônomo”, ou outros nomes similares. Essa pessoa acha que militância, organização e trabalho coletivo são besteiras, e que a saída é ficar agitando revolta em todo lugar. Para esses ativistas, a população está preparada para uma revolução, faltando um empurrãozinho, e então tudo vai acontecer naturalmente, pois no fundo o socialismo mora no coração das pessoas. Eles querem ser o isqueiro que vai iniciar o incêndio. Na prática, não é isso que ocorre: a história nos mostra que o grupo mais organizado e mais preparado materialmente assume o controle das revoltas populares desorganizadas e as usa como escadas para o poder. Isso não impede o autonomista/espontaneísta de continuar tentando criar “sua revolução”.
Por fim, tem o ativista que quer se eleger. Participa de tudo o que aparece porque seu objetivo é se tornar conhecido para depois se candidatar nas eleições. Não há intenção de construir movimentos organizados, apenas a própria imagem. Um político eleito por movimentos sociais organizados já é um risco a esses movimentos, pois leva à burocratização, ao atrelamento das organizações populares às estruturas governamentais. Um político eleito por ativismo não presta contas a ninguém, a nenhuma base social, e acaba muito mais rapidamente sendo arrastado pelo sistema.
Não adianta só ficar agitando o refrigerante para depois perder o gás. É preciso começar a construir a casa pela base, tijolo por tijolo, antes de fazer o telhado.
Na era pós-moderna
Em meio à Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética (1947-1991), muitas pessoas de esquerda tiveram uma desilusão com as experiências socialistas do marxismo-leninismo.
O stalinismo soviético, o maoísmo chinês, o polpotismo cambojano e outros regimes fizeram com que muitos progressistas se desanimassem com a proposta de revolução. Lembremos que além de hierarquia e de um governo burocrático, muitos desses países mantiveram dominações étnico-raciais, imperialistas e patriarcais (com prisões de LGBT+).
Alguns intelectuais franceses apresentaram como alternativa o “pós-estruturalismo” ou “pós-modernismo”. Para eles, era inútil tentar construir um socialismo revolucionário, pois acabaria por terminar em campos de concentração. Não haveria, então, o que fazer. No máximo, uma resistência cultural e individual.
Nessa época, o ativismo existia como minoria, inclusive entre alguns subgrupos socialistas. Porém, o movimento pós-moderno cresce nos anos 1980 e 1990, principalmente nas classes médias, e torna as práticas ativistas cada vez mais presentes no campo da esquerda.
Essa leitura culturalista ganhou força em diversas universidades, entre professores e estudantes, fortalecendo uma atuação pessoal e particular, por assim dizer. Murray Bookchin, importante anarquista dos Estados Unidos, e bell hooks, famosa feminista negra, vão criticar quem substituía a militância clássica por um ativismo de “estilo de vida”, ou seja, uma “militância” individualista na qual bastava a pessoa se vestir diferente ou adotar certos gostos musicais para dizer estar lutando.
Na era digital
Se a militância clássica já vinha enfraquecendo, a situação piora com o aparecimento das redes sociais. Facebook e Twitter permitem o “ativismo virtual”, na qual basta a pessoa “lacrar” na internet para se dizer militante. A “militância” passa a ser definida por visualizações, curtidas e compartilhamentos, e não por poder concreto e organizado.
Caindo como uma luva para o capitalismo, empresas e bancos passam a cada vez mais comercializar e lucrar com símbolos de falso radicalismo, de falsa inclusão, de falsa representatividade. A juventude da última década busca mudar o mundo do conforto de sua casa.
Em partes, a velha esquerda tem sua parcela de culpa. Por motivos variados, não foram capazes de se adaptar, de se manter ativos e presentes. No Brasil, as antigas lideranças sindicais, estudantis e comunitárias se burocratizaram ao compor o governo petista, se afastando da população em troca de cargos. Nesse vazio, jovens não encontraram por onde começar sua militância e foram atraídos para a fluidez das redes sociais.
A direita, entretanto, não abandonou as bases populares, os territórios e as organizações de base. Por meio de currais eleitorais de políticos assistencialistas, de igrejas e do crime organizado, grupos conservadores se fizeram presentes organizando a juventude, a população que trabalha e as pessoas mais pobres. O apoio mútuo e a rede de proteção antes garantidas pelos movimentos sociais, hoje são oferecidos pela Igreja Universal e pelas milícias cariocas.
Enquanto a juventude de hoje vai da revolta virtual ao ato de rua e depois para a revolta virtual de novo, quem está na presidência é Jair Bolsonaro (Sem Partido). E ainda que Haddad (PT) ou Ciro (PDT) estivessem no governo, o que poderiam fazer contra os territórios organizados e estabelecidos pelo agronegócio, pelas igrejas, pelas milícias e pelo narcotráfico, mantidos e financiados pelo empresariado?
Por que ser militante?
Se os movimentos populares e as organizações de esquerda querem se tornar uma força importante no Brasil, é hora de romper com a cultura ativista das redes sociais e do pensamento pós-moderno. É preciso voltar ao trabalho de base, à organização de baixo para cima.
Quer ser militante? Então seja na prática, fortalecendo as lutas populares, pois só assim podemos realmente mudar o mundo.
Caso contrário, o destino da esquerda vai ser chamar de militância a torcida do Big Brother e a polêmica de Twitter, vendo “cancelamentos” e “empoderamentos” individuais da classe média substituir a libertação de milhões da classe trabalhadora, incluindo mulheres, pessoas não brancas e LGBT+.
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