Artistas negros resistem aos impactos da pandemia

Adaptações em meio digital mostram fortalecimento da comunidade negra, que luta para sobreviver ao vírus e tornar o combate ao racismo uma regra

Publicado em 31 de julho de 2020

Para os artistas negros, a expressão cultural é uma forma de militância e resistência antirracista (Foto: Rodolfo Lo Bianco/ Flickr)
Por Fernanda Rosário

A cultura é uma das áreas mais afetadas pelas consequências da expansão do coronavírus. O campo da música estima um prejuízo de mais de 480 milhões de reais, segundo levantamento do núcleo de pesquisa da Semana Internacional de Música de São Paulo (SIM São Paulo). Além disso, o cancelamento de eventos em todo o país coloca o emprego de mais de 3 milhões de pessoas em risco e traz uma perda média de R$ 1,16 milhão para empresas, de acordo com um estudo da Associação Brasileira de Promotores de Eventos (Abrape). 

O impacto econômico da pandemia afeta a cultura desde março, mas as movimentações digitais que ocorrem em meio ao distanciamento social mostram que pensar a sustentabilidade do universo artístico é fundamental para a manutenção da renda das pessoas. Ao abordar a produção cultural de pessoas negras, a rentabilização ganha um aspecto central: as pessoas pretas ainda são as que menos ganham e as que mais morrem por violência policial no Brasil.

Arte preta adaptada

O colagista, ator e performer Gael Gramaccio é uma das pessoas que teve seu trabalho impactado pelas mudanças provocadas pela pandemia. A sua mostra de colagens “Sub-Consciente Negro” foi cancelada no Centro Cultural USP Bauru até a volta das atividades presenciais.

Gael Gramaccio trabalha na divulgação e venda online de suas obras durante a pandemia (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu ainda estou tentando me adaptar a tudo o que está acontecendo. No início da quarentena, eu entrei em uma neura de que eu deveria criar a partir de uma ótica otimista e esperançosa. Passei por uma fase de tristeza profunda que me fez questionar o direcionamento do meu trabalho no meio de tudo isso. Minha família tem me ajudado em coisas essenciais enquanto eu estou tentando divulgar e vender meus trabalhos online”, pontua Gael. 

As adaptações tornam-se necessárias para superar os desafios impostos pela expansão do vírus. O setor cultural envolvia 5,2 milhões de trabalhadores em 2018, sendo que 45,7% desses profissionais eram pretos ou pardos, segundo dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais de 2019, do IBGE.

Uma das ferramentas usadas pelo Governo Federal para manter a movimentação econômica do setor foi a Lei 14.017, de 2020, batizada de Lei Aldir Blanc (em homenagem ao artista que faleceu vítima da Covid-19). Aprovada em 29 de junho de 2020, a lei prevê ajuda financeira de R$600,00 durante três meses para os trabalhadores da cultura. Serão repassados R$ 3 bilhões, que, além de ajudar os artistas, são destinados a manutenção de espaços culturais e ações de incentivo à produção cultural.  

Mesmo sendo positiva, a lei soa contraditória. Desde o começo da campanha eleitoral, Jair Bolsonaro se posicionou contrário aos movimentos culturais e incentivos aos artistas.  Até agora, o auxílio não foi entregue e as datas sequer foram definidas. Por conta de todo esse cenário, o espaço digital favorece o aumento de manifestações nas redes sociais (lives e gravações de apresentações) e a divulgação e venda de trabalhos artísticos.

Maisa Crespa é artesã e afroempreendedora. A divulgação digital como alternativa à venda física foi a saída encontrada por ela para manter a renda durante esse período: “Intensifiquei as frentes que eu não utilizava tanto, como marketing visual e vendas on-line, para trabalhar mais esta questão e manter viva a página. Não tem sido a mesma coisa, visto que sempre obtive resultados maiores trabalhando em eventos”, destaca Maisa.

Cultura preta como resistência

A manutenção da renda de pretos e pretas no contexto da pandemia é ponto chave para manter a economia em movimento. Em um cenário de movimentos antirracistas em todo o mundo, a atuação de artistas negros é parte ativa na sobrevivência e enfrentamento à política genocida do governo. A população negra é a mais pobre do país e a que mais é impactada pelo sistema político, social, sanitário e de segurança. Também são os mais atingidos pela letalidade do coronavírus

Andresa Ugaya, docente do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Unesp Bauru e coordenadora local do Nupe (Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão), afirma que a produção cultural sempre serviu para a sobrevivência, resistência e saúde da população negra: “Não acredito que a produção cultural aja diferente agora na situação da pandemia. O que nos mantém vivos até hoje é a cultura e a arte, senão a gente já teria sucumbido” relata a docente. 

“A cultura, mais do que uma forma de distração, de lugar de refúgio e fuga, é lugar da produção do conhecimento, da resistência e da comunicação. É isso que eu penso: sem cultura, a gente, as comunidades, os povos africanos e nós afrodescendentes, já teríamos sido dizimados” – Andresa Ugaya

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Para Maisa Crespa, trabalhar com arte e fazer o que gosta também é um caminho de resistência. Para uma pessoa negra, o percurso tem mais empecilhos e dificuldades. “Eu, como mulher preta, passei a vida inteira tendo que estourar portas e não podia esperar para que elas se abrissem para mim, assim como muitas de nós. Entendi cedo que devemos ir pelo que acreditamos. Eu consegui, acreditei e continuo acreditando que a arte pode quebrar barreiras e concretizar sonhos. Eu resisti naquela época e continuo resistindo para permanecer fazendo o que eu nasci para fazer”, pontua a artesã.

A representação cultural negra é um respiro no isolamento imposto a todos. É uma forma de refletir diante do cenário violento de racismo e genocídio, além de ser uma ferramenta importante de compartilhamento de saberes, ideias e afetos. 

“Fazer arte no atual momento do país é, para mim, a única forma de permanecer minimamente são. Além de ser a única forma que eu encontrei de me comunicar e gritar toda a revolta que me corrói por dentro a cada notícia diária. Não acredito que ser artista é uma escolha, mas penso que permanecer de pé tentando se cuidar e criar é de uma coragem imensa”, relata Gael Gramaccio. 

Projetos que inspiram e fortalecem

Diante do distanciamento social e do cancelamento de eventos impostos pela pandemia do coronavírus, projetos surgiram para divulgar o trabalho de artistas, entreter as pessoas, compartilhar saberes e arrecadar doações. Com o aumento massivo de produções digitais, algumas iniciativas se destacam pela criatividade e solidariedade. 

O Festival Multicultural Fuzuê é uma iniciativa que surgiu durante o isolamento com o objetivo de divulgar o trabalho de artistas, negros ou não-negros, na região de Bauru. Carolina Guerra Passianoto e Tiago Rosa são produtores executivos do evento e foram os idealizadores do Fuzuê. Para eles, contribuir com a produção artística na cidade por meio da divulgação é uma forma de ocupar um espaço vazio.

“Nossa motivação diária é promover cultura em nossa região, já que os órgãos públicos não estão atendendo a esse setor, deixando de lado a classe artística que, infelizmente, até o momento, não possui apoio, além de ajudar as famílias em estado de vulnerabilidade social”, relata a produtora Carolina Guerra. 

O Festival Fuzuê conta com ações solidárias e os organizadores estão recebendo doações de alimentos, roupas, produtos de higiene e limpeza para ajudar famílias em situação de vulnerabilidade. 

O Parada Pesada é outro projeto que também surgiu na região de Bauru e tem movimentado a cultura neste período. Com a proposta de ser um desafio de poesias online, a página tem trabalhado com temas importantes e atuais neste momento.

A criação da página foi inspirada por um poema do Daniel Minchoni, chamado “Literatura Ostentação” e pelo funk que foi produzido em cima do texto. “Propor um projeto de criação poética nesse contexto, um projeto em que qualquer pessoa pode criar sua poesia falando de algo relevante de forma criativa é muito importante. O tema da primeira temporada foi ‘Coronavírus’, da segunda foi ‘Carentena’ e o da terceira, ‘Necropolítica’”, explica Jorge Neves, educador e criador da página. 

O contexto de expansão da pandemia afeta pessoas de diferentes formas, o que é explicado pelo conceito de necropolítica, desenvolvido por Achille Mbembe e que se relaciona à política de morte adaptada pelo Estado, que escolhe quem deve viver e quem deve morrer. A vida das pessoas negras, há séculos, é atravessada pelas consequências dessa política e o assunto tem sido abordado com mais força nos meios de comunicação por conta dos movimentos sociais do “Vidas Negras Importam”. 

É interessante destacar que, apesar de não haver nenhum recorte racial nos temas, houve uma quantidade significativa e espontânea de pessoas negras mandando poesia e falando de racismo. “Claro que devemos criar espaços específicos para tratar dessas questões em um país escravocrata como o Brasil, com quase 400 anos de escravização de pessoas negras. No entanto, mesmo em espaços onde esse recorte não está dado, as pessoas negras estão participando e tratando das mais diversas questões a partir desse ponto de vista antirracista”, declara Jorge Neves. 

Prêmios também são entregues para os vencedores do desafio Parada Pesada. Na terceira temporada, os selecionados ganharam os livros “Palavra Oculpada”, do Renato RapNobre, e “O pôr do sol dos astronautas”, da escritora Carolina Bataier. A atual temporada já começou e traz o tema “E amanhã?”, dedicado a se pensar sobre os anseios para o futuro e mundo pós-quarentena. Os prêmios serão livros do Selo do Burro para os participantes selecionados pelo poeta Daniel Minchoni e a poeta Luz Ribeiro. 

Andresa Ugaya é professora da Unesp e participa dos coletivos Pavio de Candieiro e Batuque das Marias, grupos que debatem a valorização das culturas de matrizes africanas. Ela explica que as pessoas podem ajudar os artistas independentes, negros, populares de diferentes formas. Divulgando o trabalho, comprando um livro, um CD ou participando de uma vaquinha virtual. 

Antirracismo é contribuir para a [re]xistência

Valorizar a arte e a cultura negra também é uma maneira de se cuidar e se conhecer, pilares para o bem estar emocional que auxilia no combate à violência diária que o racismo inflige sobre a comunidade negra. “Essas manifestações são modos de viver. É por meio dessas expressões que eu me comunico, me expresso e digo quem eu sou. É isso que faz com que a gente consiga se manter forte e para as diferentes lutas. É a minha ancestralidade e tudo isso que eu herdei das gerações que me antecederam que fazem com que eu me fortaleça, reconheça quem eu sou para poder fazer o enfrentamento dessas diferentes opressões que surgem ao longo da história”, destaca a docente Andresa Ugaya. 

Contribuir para a sobrevivência dessa arte e de seus produtores é uma forma de colaborar com o antirracismo e o combate às opressões diárias, que estão não só nas questões materiais e físicas, mas também na psicologia. É uma maneira de divulgar trabalhos que decolonizam e ressignificam as formas de ser. 

“Talvez uma das mensagens primordiais dos meus trabalhos seja para que em meio ao caos as pessoas consigam encontrar um tempo para as várias questões psíquicas, emocionais, espirituais e ancestrais que permeiam nossas vidas. Principalmente quando se faz parte de alguma ‘minoria’ e tem que lutar diariamente contra diversos tipos de opressão”, finaliza o artista Gael Gramaccio.  

O projeto De grão em grão recebe doações de segunda à sexta, das 8h às 12h, na Rua Cussy Junior, quadra 3, número 40, em Bauru, ou por depósito bancário. A população pode continuar ajudando, mesmo se não puder sair de casa. Uma vez por mês, todo o dia 20, a organização do Fuzuê vai até o endereço dos doadores.

Esta é uma reportagem opinativa. A apuração e checagem das informações expressas seguem o rigor jornalístico orientado por uma hipótese elaborada pelos repórteres.

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