A morte do bebê Leonardo sob acolhimento familiar. E a história por trás do caso
Com dois meses de vida foi retirado da família biológica pelo Conselho Tutelar e encaminhado às famílias acolhedoras da Fundação Toledo. 17 dias depois, deu entrada no Hospital Estadual com um afundamento na cabeça e faleceu. Investigação corre na Delegacia de Direitos da Mulher
Publicado em 30 de junho de 2019
Por Bibiana Garrido e Lucas Mendes
Leonardo Theodoro Rodrigues de Oliveira tinha 2 meses e 12 dias de vida quando morreu no Hospital Estadual de Bauru às 10h52 de 25 de junho deste ano. 16 horas antes ele tinha sido levado ao hospital com “afundamento da calota craniana” e “vazamento de líquido” pelo ouvido.
Junto de seu irmão Vitor, de um ano e dois meses de idade, ele estava sob os cuidados de uma família acolhedora designada pela Fundação Toledo, a Fundato. As crianças foram retirados da casa dos pais no dia 7 de junho pelo Conselho Tutelar sob alegação de negligência. Estavam com escabiose, a sarna humana.
“Quando chegamos no andar [do hospital], reuniram eu e minha esposa numa salinha e deram a notícia de óbito da criança”, conta Adriano de Oliveira, pai de Leonardo. “Como assim? A criança saiu de casa pra ser tratada, porque vocês acreditaram que ia ser melhor pra ela. E vocês me entregam dessa forma?” questiona ele. A mãe, Delma Rodrigues, compartilha as palavras que ouviu naquele momento: “O médico perguntou se eu tinha derrubado ele. Meu filho nem tava comigo”.
Assim que saíram do hospital, os pais contam que a criança foi levada para o Instituto Médico Legal. “Chegamos no IML e reconhecemos o corpo, todo deformado. Não autorizaram de maneira nenhuma que a gente visse o corpo inteiro. O rosto tava totalmente inchado”. De noite, às 21h30, foi realizado o velamento de Leonardo, que terminou na manhã seguinte.
“Não fecharam o corpo do meu filho pro velório. Tava lá com a cabeça aberta”, protesta Delma, encostada na parede de sua casa, de braços cruzados. Adriano, sentado no sofá, ressalta: “Que fique bem claro que nem o Conselho Tutelar, nem a Fundato, compareceram ao enterro”.
Segundo os responsáveis, a família só foi comunicada da internação de Leonardo no Hospital Estadual quando o bebê já estava morto. No Guia de Encaminhamento de Cadáver, documento da Secretaria Estadual de Saúde, consta que Leonardo chegou à unidade com “choro inconsolável e febre”, além do afundamento no crânio e vazamento de líquido no ouvido.
Foram ao todo quatro crianças levadas da mesma casa: Leonardo, Vitor, Adrian e Emily. Os irmãos Leonardo e Vitor são filhos de Adriano e Delma. Seus primos, Adrian e Emily, com cinco anos e oito meses, respectivamente, são filhos de Adriely de Oliveira, tia do bebê que faleceu. As crianças viviam junto dos três adultos, mais um tio e uma avó e se mudaram para a Vila Industrial há um mês. Todos, inclusive os responsáveis, foram diagnosticadas com escabiose.
Adriano conta que no dia do acolhimento pelo Conselho Tutelar as crianças passaram por uma bateria de exames de saúde. “Saíram daqui e foram direto pra UPA do Geisel. Qualquer coisa que tivesse além da escabiose, teria que ter sido passado pra gente. Não tinha nada”. E desabafa: “Como que uma criança pode sair de um lar biológico diagnosticada com escabiose e falecer de afundamento da calota craniana? Era responsabilidade de quem no momento?”, pergunta.
A mãe, Delma, relata que antes do afastamento familiar as crianças faziam acompanhamento na Unidade Básica de Saúde do Jardim Europa. “O Leonardo tinha comparecido a uma pediatra e ela viu umas bolinhas no corpo dele, mas ela disse que era alergia”. Adriano cita o tratamento indicado pela médica: “ela sugeriu lavar as roupas do bebê com sabão de coco para curar a alergia, disse que era normal”.
Negligência
Guilherme Melo é o conselheiro tutelar responsável pelo encaminhamento das crianças. Em entrevista ao Jornal Dois, ele conta que teve conhecimento do caso por um ofício do Centro de Referências de Moléstias Infecciosas de Bauru (CRMI). “O CRMI fazia o acompanhamento da Adriely e da filha dela, e [recebemos o ofício] dizendo que ela estava com acompanhamento irregular, inclusive que a criança estava com estado de desnutrição e escabiose”, diz ele.
O endereço no cadastro de Adriely levava à uma casa no Parque Santa Edwiges, mas a família havia mudado de residência quando Guilherme foi fazer a visita. Uma semana depois, Adriely compareceu ao CRMI com a filha. A instituição entrou em contato com o Conselho Tutelar para atualizar o endereço da família. Segundo o conselheiro, nesse momento também foi informado sobre as outras crianças e adultos que moravam na casa e que estavam doentes.
“Nós nos dirigimos até lá, eu e a conselheira Cristiane, e verificamos uma total situação de negligência por parte dos genitores e da avó. A casa estava muito suja, o quintal com acúmulo de lixo e as crianças com muitas feridas pelo corpo”, relata Guilherme. Adriano, pai de Leonardo, conta que haviam se mudado para o local há dois dias. “Estávamos numa situação financeira muito complicada. O terreno tava ruim, a gente fez o básico, limpeza, tirar entulho. Mas mesmo assim ainda levava um tempo pra arrumar”.
Realizada a primeira visita, os profissionais retornaram para a sede do Conselho Tutelar. “Deliberamos pelo acolhimento emergencial das crianças por conta da situação que se encontravam”, fala o conselheiro. No dia seguinte, voltou à casa para fazer a retirada das crianças, acompanhado da Polícia Militar e do SAMU.
A lei
Pelo que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é emergencial o acolhimento de crianças que estejam sob ameaça de violência física ou abuso sexual. E como exposto no parágrafo 2° do art. 101, o afastamento da criança ou adolescente é de competência exclusiva da autoridade judiciária. Se verificada a hipótese de maus-tratos, essa autoridade poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Nesse texto, o afastamento da família é analisado por Murillo Digiácomo, promotor do Ministério Público do Paraná. Ele o pontua que não cabe ao Conselho Tutelar promover acolhimentos “com base unicamente num relatório”, e defende que profissionais habilitados devem realizar uma “avaliação técnica interdisciplinar criteriosa”, para então ingressar com ação no Ministério Público.
“Nós avaliamos que as crianças estavam em risco”, afirma Guilherme, conselheiro responsável do caso, “a partir daí temos 24 horas para comunicar o juiz qual foi a nossa atitude, e ele valida ou não o que a gente fez. Nós realizamos o acolhimento emergencial na sexta e informamos o juiz no mesmo dia”.
O art. 136 do ECA define, em parágrafo único, as atribuições do Conselho: “Se, no exercício de suas atribuições, o Conselho Tutelar entender necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará incontinenti [imediatamente] o fato ao Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família”. O promotor Digiácomo argumenta que “o objetivo da intervenção estatal em matéria de infância e juventude não é ‘punir’ os pais por eventuais violações de direitos de seus filhos que tenham praticado, mas sim evitar que continuem a agir dessa forma”.
“Aceitamos nossa situação financeira e entendemos que elas tinham sim que ser acolhidas naquele momento”, reconhece Adriano. “No CRAS, comparecemos. CREAS comparecemos. À unidade de saúde, também comparecemos. Fomos diagnosticados todos com o mesmo problema da sarna, passamos por tratamento. Cumprimos com todas as exigências. A gente fez o nosso papel porque a gente queria que as crianças pudessem voltar pra um ambiente saudável”.
O Centro de Referência da Assistência Social, CRAS, e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social, CREAS, são duas das organizações para as quais a família foi encaminhada pelo Conselho Tutelar. Também tiveram que ir à defensoria pública para requerimento da guarda dos filhos – perdida momentaneamente até o julgamento.
Digiácomo avalia que o afastamento das crianças é uma medida drástica, e “potencialmente mais prejudicial à criança/adolescente que a própria violação de direitos originalmente sofrida”. E reforça que o princípio da prevalência da família deve ser respeitado para promover a reintegração familiar o mais rápido possível. “Hoje foi a primeira vez que vimos as crianças”, conta o pai em entrevista concedida ao Jornal Dois no dia 27, quinta-feira, 20 dias depois de seus filhos e sobrinhos terem sido acolhidos. Na véspera, a família havia sepultado Leonardo ainda sem saber a causa da morte.
“Foi realmente um acidente?”, pergunta o pai de Leonardo. “Eu não poderia dizer também que foi por maus tratos da parte deles? A criança faleceu por negligência deles”.
Adriano trabalha como músico e sustenta as nove pessoas da casa. “Oito agora, né?”, lembra a tia, enquanto contavam nos dedos os membros da família. Diariamente, enviavam mensagens pelo WhatsApp à Fundação Toledo para acompanhar as crianças.
“Ele já tava internado aí”, conta Adriely, mostrando a tela do aplicativo no celular. Ela é tia do bebê que faleceu horas depois das mensagens trocadas com a Fundato no dia 24 de junho. “O pessoal da Fundato me respondeu isso e ele já tava internado”.
Investigação
Guilherme Bispo, advogado da Defensoria Pública que cuida do caso de Leonardo e Vitor, aponta os próximos passos. “A gente não sabe quem é a família ainda”, comenta, em referência à família que acolheu os dois meninos. “Essa criança morreu por alguma negligência, algum erro, então isso tem que ser investigado. Já foi aberto o inquérito policial e eu tô recolhendo provas pra enviar pro Ministério Público e requerer a abertura de um inquérito civil que apure a Fundato. O doutor Ubirajara pediu também uma apuração contra essa instituição. E vamos ver o que dá, a gente vai ter que achar o culpado”. Ubirajara Maintinguer é o juiz titular da Vara de Infância e Juventude de Bauru e acompanha os casos de Leonardo, Vitor, Emily e Adrian.
Irmão de Leonardo, Vitor foi retirado da família acolhedora pela Fundato e repassado aos cuidados de outra família por outra instituição acolhedora. “Mas vai saber quando eles vão entrar em contato? Quando que a gente vai poder ver?”, indaga o pai do menino.
A Fundação Toledo e o Pequenos Obreiros de Curuça (POC) são as duas entidades responsáveis pelo Programa da Família Acolhedora no município. “A Fundato tem 30 vagas de famílias acolhedoras e o POC tem 15, atualmente não sei te dizer quantas famílias elas têm cadastradas de fato. Isso quem fornece é a Fundato ou POC”, explica Guilherme, do Conselho Tutelar. “Entre crianças no serviço de acolhimento em abrigos normais e nas famílias acolhedoras, hoje a gente tá com mais ou menos 120 crianças acolhidas, porque esse número é muito sazonal”.
Tanto Adriely, quanto Adriano e Delma estão com datas marcadas para tentar recuperar a guarda dos filhos no final do ano. “Todas as entidades foram intimadas pra depor na delegacia com isso que aconteceu”, constata Adriano, que aguarda o audiência no dia 5 de setembro. “Mas a voz deles é mais forte que a nossa, né?”, pondera o pai, em referência ao Conselho Tutelar e à Fundação Toledo, instituições que enfrentará na justiça.
Procurada pelo Jornal Dois, Débora Vendimiatti, coordenadora do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora da Fundato, afirma que a instituição não vai comentar o caso. “Nós vamos aguardar a conclusão das investigações”, disse, por telefone. Em seu site oficial, a fundação soltou uma nota que lamenta o óbito de Leonardo. A reportagem não conseguiu contato com Priscila Bianchini, delegada responsável pela investigação na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).
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